16/04/2024 - Edição 540

Especial

As mesmas vítimas

Publicado em 21/11/2014 12:00 -

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Uma em cada três mulheres é vítima de abusos físicos em todo o mundo, indica uma série de estudos divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Entre 100 milhões e 140 milhões de mulheres são vítimas de mutilação genital e cerca de 70 milhões se casam antes dos 18 anos, frequentemente contra a sua vontade. Os dados indicam que 7% das mulheres correm o risco de sofrer violência em algum momento das suas vidas.

A violência, exacerbada durante conflitos e crises humanitárias, tem consequências dramáticas para a saúde física e mental das vítimas. “Nenhuma varinha de condão vai eliminar a violência contras as mulheres. Mas a prática revela que é possível realizar mudanças nas atitudes e nos comportamentos, que podem ser conseguidos em menos de uma geração”, afirmou Charlotte Watts, professora na Escola de Higiene e Medicina Tropical em Londres e coautora dos documentos.

A OMS apontou que 38% das mulheres vítimas de homicídio no mundo foram mortas por seus parceiros, e 42% das vítimas de violência física ou sexual praticada pelo parceiro sofreram lesões como consequência. Segundo a Organização, a violência contra mulheres é uma epidemia de saúde global e  uma das causas para uma variedade de problemas de saúde agudos e crônicos, que vão desde lesões imediatas e infecções sexualmente transmissíveis, como HIV, a quadros como depressão e outros transtornos de saúde mental. As mulheres que sofrem violência de seus parceiros são 1 vez e meia mais propensas a ter sífilis, clamídia ou gonorreia. E, em algumas regiões, incluindo a África Subsaariana, têm 1 vez e meia mais probabilidade de serem infectadas com o vírus da aids.

Em um comunicado que acompanha o relatório, a diretora-geral da OMS, Margaret Chan, disse que a violência causa problemas de saúde com "proporções epidêmicas". "Os sistemas de saúde do mundo podem e devem fazer mais pelas mulheres que sofrem violência", afirma.

Os investigadores apuraram que mesmo nos casos em que existe legislação forte e avançada de defesa das mulheres, muitas continuam a ser vítimas de discriminação, violência e falta de acesso adequado a serviços jurídicos e de saúde. É o caso do Brasil.

No Brasil

A Lei Maria da Penha completou oito anos em agosto passado em um País no qual 10 mulheres são vítimas de violência a cada hora, cuja Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 registrou em 2014 mais de meio milhão de atendimentos com relatos de violência contra a mulher e onde o Sistema Único de Saúde (SUS) é obrigado a desembolsar milhões para cuidar destas vítimas anualmente. Estes números são apenas uma mostra sucinta de uma realidade que coloca o Brasil entre os países que mais desrespeitam a integridade feminina.

Entre os tipos de violência relatados pelo Ligue 180 a física permanece a mais frequente, seguida pela psicológica, moral, sexual e patrimonial. Em 70% dos registros, o agressor é o companheiro ou o cônjuge da vítima. Acrescentando os demais vínculos afetivos, como ex-marido, namorado e ex-namorado, o número sobe para 89%. Cerca de 10% das denúncias mostram agressões cometidas por parentes, vizinhos, amigos e desconhecidos.

Mais de 67% das mulheres que ligam para a central têm entre 25 e 50 anos. Em 72% dos casos de violência, as mulheres relataram que vivem com o agressor – 38% das mulheres informaram que vivem com o agressor há mais de dez anos. Em mais da metade dos casos, as mulheres dizem correr risco de morte e 57% relatam agressões diárias.

Quase 70% das mulheres que fizeram denúncia no Ligue 180 afirmaram não depender economicamente do agressor e 68,1% informaram que os filhos presenciaram a violência (16,2% sofreram agressões junto com a mãe). Quanto ao perfil dos agressores, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) informa que 73,4% são homens entre 20 e 45 anos; e 55,3% têm o ensino fundamental como escolaridade.

Medo

O medo tem sido apontado por especialistas como principal razão para que muitas mulheres deixem de denunciar agressores. Para a ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, Eleonora Menicucci, a denúncia é vital para a efetividade da lei e a punição a quem comete violência contra as mulheres. “Se as mulheres não denunciarem, não existe crime. Como podemos acabar com a impunidade sem a denúncia?”, questiona.

Menicucci também aponta a demora do Judiciário em expedir medidas protetivas em favor das mulheres como um dos gargalos a ser resolvido. Ela lembra que, em alguns casos, a medida para determinar que o agressor se mantenha a distância da vítima é expedida quando a mulher já foi agredida ou até morta. “A medida protetiva salva mulheres. E eu conclamo todos os juízes a olhar com cuidado e severidade, mas com determinação para a violência contra as mulheres expedindo, o mais rápido possível, as medidas protetivas”.

Ney José de Freitas, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) avalia que a redução da violência contra a mulher é um longo processo por não se tratar apenas de medidas legais, mas também de uma mudança de comportamento. “Não é necessário apenas a alteração legislativa, é necessário também uma mudança de comportamento. É um processo de mudança demorado”.

Terror em casa

Dados do “Mapa da Violência 2012: Homicídio de Mulheres no Brasil” apontam que é principalmente no ambiente doméstico que ocorrem as situações de violência contra a mulher. A taxa de ocorrência no ambiente doméstico é 71,8%, enquanto em vias públicas é 15,6%.

A violência física contra a mulher é predominante (44,2%), seguida da psicológica (20,8%) e da sexual (12,2%). No caso das vítimas que têm entre 20 e 50 anos de idade, o parceiro é o principal agente da violência física. Já nos casos em que as vítimas têm até nove anos de idade e a partir dos 60 anos, os pais e filhos são, respectivamente, os principais agressores.

Para a secretária de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, ainda há muito a fortalecer no sistema de proteção à mulher. Ela citou as delegacias especializadas como um dos pontos a ser aprimorado. “A efetividade da lei caminha lenta. Não temos delegacias especializadas em todo o país. Temos delegacias especializadas que ficam fechadas nos finais de semana e à noite, horários em que as mulheres mais precisam ter referências sobre aonde ir”, disse.

Percebendo a realidade

Uma pesquisa feita para mensurar a opinião da sociedade sobre a violência doméstica e assassinatos de mulheres revelou que 98% da população conhecem a Lei Maria da Penha e que para 86% as mulheres passaram a denunciar mais os maus-tratos depois da existência da lei. Os dados mostram ainda que sete em cada dez entrevistados acreditam que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos e que 50% analisam que a mulher se sente mais insegura em casa do que fora.

A pesquisa Percepção da Sociedade sobre Violência e Assassinatos de Mulheres foi feita pelo Data Popular e pelo Instituto Patrícia Galvão com 1.500 homens e mulheres, maiores de 18 anos, em 100 municípios do país, entre os dias 10 e 18 de maio deste ano.

De acordo com a pesquisa, 54% dos entrevistados conhecem uma mulher que foi agredida pelo companheiro e 56% conhecem um homem que agrediu a parceira, mas 57% acreditam que, apesar de atualmente haver mais punição para os agressores e assassinos, a forma como a Justiça pune não reduz a violência contra a mulher. O medo se reflete na pesquisa quando 85% das pessoas disseram que mulheres que denunciam seus maridos correm mais risco de serem assassinadas.

Quando avaliado o nível social, a pesquisa indicou que 69% acreditam que violência contra a mulher não acontece só em famílias pobres. Entre os motivos para maior risco à vida da mulher foram apontados o fim do relacionamento (43%) e a denúncia sobre o agressor, seja namorado ou marido (85%). Para 92%, as agressões frequentes podem terminar em assassinato.

A diretora do Instituto Patrícia Galvão, Fátima Jordão, ressalta que as medidas para mudar a realidade da mulher que se sente insegura dentro de casa porque mora com o agressor já estão sendo tomadas. A questão é aperfeiçoá-las ou aumentar a disponibilidade dos instrumentos para a população feminina, entretanto ela colocou que a imprensa deve colaborar para mudar o rosto e a personalidade dessa violência, mostrando que esse é um problema tão grave quanto outros da sociedade.

“Quando vemos notícias sobre agressão, vemos o agressor personalizado, o monstro que emparedou a mulher. Passa-se a ideia de que existem doentes na sociedade, mas temos que passar a compreensão de que a sociedade é atrasada com essa questão e não entendeu que esse problema atinge graus de perversidade enorme competindo à mídia lidar com isso como um problema de uma sociedade machista”.

Membro do Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais, David Eduardo Dpiné Filho observou que, enquanto a percepção da violência contra a mulher foi ampliada, a confiança no serviço público não aumentou na mesma medida e há ainda um deficit na qualidade do serviço prestado para essa mulher vitimizada. “Ela acaba sendo revitimizada quando procura uma Delegacia da Mulher e a burocratização do sistema ainda impede que essa mulher tenha no serviço público uma referência que lhe dê segurança para denunciar e não encontrar o agressor em casa para novamente a agredir”, analisa.

O SUS espelha o drama

A violência contra mulheres no Brasil sangra os cofres públicos. Mais de R$ 5 milhões são gastos anualmente somente com internações. Segundo o Ministério da Saúde, o número de mulheres internadas no SUS em decorrência de agressões anualmente tem variado de 5 a 7 mil.

Somente em 2011, 37,8 mil mulheres entre 20 e 59 anos precisaram de atendimento no SUS por terem sido vítimas de algum tipo de violência. O número é quase 2,5 vezes maior do que o de homens na mesma faixa etária que foram atendidos por esse motivo, conforme dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

A socióloga Wânia Pasinato, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), destaca que além dos custos financeiros, há “enormes prejuízos sociais” gerados pela violência contra a mulher. Ela citou estudos que indicam, por exemplo, que homens que presenciaram cenas de violência doméstica durante a infância tendem a reproduzir, com mais frequência, características de dominação e agressividade em suas relações afetuosas.

“Os danos para a sociedade são enormes, com perdas em diversas esferas. Além de impactar a forma como os filhos dessas relações vão constituir suas próprias relações no futuro, as mulheres vítimas de violência deixam de produzir e de se desenvolver como poderiam no mercado de trabalho”, explicou, acrescentando que também é comum que as vítimas incorporem a violência e a agressividade em seus relacionamentos e nas formas de comunicação.


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