25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Ameaçados por fome e fogo, animais no Pantanal são salvos por ação de ONGs

Publicado em 24/09/2020 12:00 -

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O Pantanal de Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul abriga cerca de 1.200 espécies de animais vertebrados e a região tem o maior número de onças pintadas do mundo. Com o incêndio criminoso no local, algumas organizações não-governamentais se tornam responsáveis por parte do salvamento da fauna local.

A diretora de comunicação da ONG Ampara Animal, Raquel Facuri, que esteve na linha de frente no Pantanal, explica que bombeiros não têm especialidade no resgate e outros entidades federais que poderiam fazê-lo, como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), estão com pouca mão de obra.

“Nós pedimos intervenção aérea para impedir mais incêndios, mas não ocorreu até hoje. Há dois aviões pequenos do ICMBio no local, mas que nunca vão terminar com as chamas no Pantanal. Então, as ONGs estão se mobilizando, trabalhando com voluntários e sendo mais efetivas. Nós tivemos ações para levar animais de grande porte, como duas onças pintadas, para outros locais e dar tratamento”, relata.

Ela conta ainda que os animais do Pantanal buscam sobrevivência a qualquer custo. “Tivemos cenas tristes de animais andando sem rumo, porque não há mais vegetação. Tem jacaré se empilhando em rio para se esconder do fogo. É uma situação devastadora, nunca vimos algo tão triste”, acrescentou.

Duas onças-pintadas foram resgatadas no local. Uma fêmea, batizada de Amanaci, é uma das diversas vítimas do incêndio criminoso no Pantanal. Ela foi levada a uma fazenda de Goiás, administrada por uma ONG que se dedica a proteger felinos selvagens ameaçados de extinção. Raquel explica que o animal é tratado com medicina veterinária avançada, recebendo injeções de células-tronco que aceleram a recuperação de tecido queimado e a regeneração de novos tecidos.

“Ela chegou nesse estágio de terceiro grau porque ficou buscando o filhote dela. Ela ficou até o último minuto tentando salvar a cria dela”, conta, emocionada. “Com esse tratamento de células tronco, é possível que ela tenha uma vida com o mínimo de bem-estar. Estamos dando antibióticos de ponta para não pegar infecção, ou seja, estamos dando o melhor tratamento”, explicou a ativista.

A outra onça-pintada resgatada é um macho adulto, batizado como Ousado, e também recebe tratamento especializado e está com as patas enfaixadas. “Ele estava com queimadura de terceiro grau e recebe tratamento a laser. A expectativa é que volte para a natureza, porque é bem selvagem, porém, antes de fazer a soltura, precisamos fazer uma análise do local, porque temos um grande percentual do Pantanal que queimou”, afirmou Raquel.

Os danos do fogo, segundo a integrante da Ampara, são irreparáveis em curto prazo para fauna e flora. Milhares de animais morreram incinerados e a mata precisa de tempo para se regenerar. As espécies que ainda não foram resgatadas, recebem cuidados no local.

“Já compramos 300 bebedouros para animais e estamos colocando por todo o Pantanal. Eles não têm onde buscar alimentos, então temos que prover também essa alimentação. Temos uma equipe de voluntários, com caminhões e caminhões-pipa, para socorrer os animais que ainda estão lá”, finalizou.

Veterinários e voluntários trabalham no resgate em MS

O Conselho Regional de Medicina Veterinária de Mato Grosso do Sul (CRMV-MS) em parceria com o Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD) enviaram para o Parque Estadual da Nascente do Taquari, uma equipe com 20 pessoas, entre profissionais e voluntários para salvar animais vítimas das queimadas que atinge a região.

Segundo o presidente do CRMV-MS, Rodrigo Piva, a mão de obra qualificada para socorrer os animais que sofreram algum tipo de trauma e também dar assistência àqueles que sofrem com a falta de comida e de água.

“Como o conselho tem recebido inúmeras demandas para atender as necessidades de apoio técnico e de mediação de mão de obra qualificada para fazer frente às vítimas dos desastres ambientais decorrentes da baixa umidade associada a incêndios ocorridos em polos ambientais estratégicos, decidimos começar a atuar na região do Parque Estadual do Taquari”, explicou.

Segundo o órgão, o parque foi escolhido pois, exige resposta urgente ao desastre com controle de incêndios florestais em áreas legalmente preservadas, conservadas e não conservadas.

De acordo com o médico veterinário Aldair Junior de Minas Gerais, a ação em Mato Grosso do Sul conta com 12 pessoas, sendo essas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, que compõem o Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD).

“Irão comigo outros médicos veterinários, bombeiros e estudantes que possuem experiência em resgate de animais vítimas de desastre”, ressalta.

Conforme o médico veterinário, a equipe possui ainda outros 8 profissionais sul-mato-grossenses que serão coordenados pela Comissão Estadual de Animais Silvestres (CEAS): “Teremos ações distintas, que compreendem o resgate, atendimento clínico e assistencialismo” explicou.

De acordo com o conselho, o resgate será composto por equipe capacitada em avaliar o estado do animal encontrado e de realizar a ação com segurança na região do desastre, sendo composta por médico veterinário, bombeiros e colaborador treinado para a situação. Todos os membros obrigatoriamente estarão com os equipamentos de segurança completo.

O Atendimento Clínico Veterinário será composto por médicos veterinários em estrutura de urgência e emergência de campanha ou em clínicas veterinárias da região. Podendo o animal ferido ser transferido para outra cidade caso seja necessário. Compete ao setor destinar o paciente para soltura ou local adequado para a recuperação.

Em dez dias, 17 animais silvestres receberam atendimento da equipe do CRAS

Entre os dias 13 e 22 de setembro, 17 animais silvestres receberam atendimento da equipe de médicos veterinários do CRAS (Centro de Reabilitação de Animais Silvestres), na sede em Campo Grande (MS) e na unidade móvel destacada para o Parque Estadual das Nascentes do Rio Taquari e região.

A maioria dos animais atendidos neste período sofreu ferimentos em decorrência das queimadas que atingem o Estado.  Na unidade de Campo Grande passaram 12 animais, dos quais sete morreram e cinco estão em recuperação.

Os animais que não resistiram aos ferimentos são um preá (de Campo Grande), uma anta (de Rio Verde), um filhote de Jandaia (de Alcinópolis), um filhote veado campeiro (de Alcinópolis), um curiango (de Campo Grande), um macaco prego e um tatu.

Seguem em atendimento dois filhotes de arara, um veado campeiro jovem e um tamanduá mirim, de Campo Grande. E um gavião-asa-de-telha vindo de Rochedinho. A veterinária Aline Duarte, coordenadora do CRAS, explica que os animais silvestres vítimas de queimadas ficam muito debilitados pela desidratação causada principalmente pela fumaça e o calor. E em caso de filhotes a situação se agrava por terem perdido as mães e serem mais vulneráveis.

A unidade móvel do CRAS enviada para o atendimento aos animais vítimas de incêndios florestais no Parque Estadual das Nascentes do Rio Taquari e região, atendeu cinco animais desde dia 13 de setembro. Dois morreram, dois seguem em atendimento e um já retornou à natureza.

Um filhote de gato mourisco e um filhote de cateto não resistiram aos ferimentos, enquanto dois filhotes de cateto foram atendidos e passam bem e um tamanduá mirim foi solto após receber tratamento. Além do atendimento emergencial aos animais feridos, a equipe do CRAS também prepara alimentação a base de frutas e verduras, que são levados aos locais que já estão livres do fogo, para auxiliar na recuperação das espécies sobreviventes, que já enfrentam escassez de alimento na mata.

Na região de Corumbá e Ladário a recepção contará com apoio da PMA (Polícia Militar Ambiental, onde será montado um centro de atendimento. Na região a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) disponibilizou a base de pesquisa na estrada-parque também para receber animais atingidos pelo fogo.

Fome

Com a cauda queimada e as patas muito feridas, o jupará que acaba de chegar ao Centro de Medicina e Pesquisa de Animais Silvestre (Cema), na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), é mais uma vítima das queimadas no Pantanal.

Sandra Ramiro, coordenadora do centro, diz que o caso é bastante grave. "É uma fêmea, chegou muito desidratada e ainda está se estabilizando", comenta a médica veterinária sobre o animal, também chamado de macaco-da-meia-noite em algumas regiões. Foi Ramiro quem recebeu na madrugada desta terça-feira (22/09) o jupará resgatado e levado da zona do fogo a Cuiabá pela Polícia Ambiental.

Três antas gravemente feridas e encaminhadas ao hospital da universidade, infelizmente, não sobreviveram. Um filhote de veado-catingueiro que teve as quatro patas queimadas ainda resiste sob os cuidados dos veterinários e com amamentação artificial.

"A grande dificuldade é a gravidade de cada lesão. São queimaduras de segundo e terceiro graus que comprometem ligamento e causam exposição óssea, já que a pele é consumida pela queimadura", comenta Ramiro. 

O estresse que o atendimento gera nesses animais silvestres também complica o tratamento. São necessárias bandagens por longo tempo nas regiões afetadas e uso de pomadas específicas.

"Quando existe possibilidade de tratamento alternativo, a gente trabalha em parceria com instituições", afirma a veterinária. Foi o que aconteceu com duas onças pintadas que a UFMT acolheu e logo encaminhou à NEX, ONG que trabalha com felinos ameaçados de extinção. Chamados de Amanaci e Ousado, os animais recebem aplicações de células-tronco, e o quadro de saúde tem evoluído, segundo a equipe.

Mas as cenas de terror geradas pelo sofrimento dos animais no Pantanal permanecem. Dados atualizados pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estimam que pelo menos 22% do bioma foram perdidos para o fogo em 2020.  

"O mais difícil é a todo momento encontrar cadáveres carbonizados. E pensar no sofrimento que o animal teve. Eram jacarés e outros que estavam ali, vivendo em equilíbrio", lamenta Carla Sassi, veterinária que atua no Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD).

De Poconé a Porto Jofre, no Mato Grosso, as equipes voluntárias, que contam atualmente com nove pessoas, ajudam a matar a fome e a sede da fauna que sobrevive às chamas.

Depois da devastação provocada pelos incêndios, a ameaça crescente é a da chamada fome cinzenta. "Os animais perambulam desorientados em busca de água e comida. O fogo acabou com quase toda a reserva [de comida], eles não têm o que comer", explica Sassi.

Para trazer um pouco de alívio, os voluntários montaram 72 pontos de abastecimento. Eles têm servido de refúgio para animais como lontra, jabuti, iguana, serpentes, entre outros.

Mesmo os que são encontrados vivos e aparentemente saudáveis já começam a emagrecer devido à escassez de alimento, segundo os voluntários. "Não dá para imaginar, para mensurar, quantos morreram e quantos ainda vão morrer neste período. Estamos arrasados, mas a equipe tenta se manter firme e forte", diz Sassi.

À base de doações, o GRAD foi formado em 2011 e já atuou em diversas situações, como a tragédia naquele ano provocada por deslizamentos de terra em Nova Friburgo; após o colapso das barragens de mineração em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019; durante as queimadas no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros; e após enchentes.

"Mas nunca vimos nada como o que está acontecendo no Pantanal. É muito surreal", afirma Sassi, que também destaca os desafios logísticos, como a falta de diversas pontes na estrada que foram consumidas pelo fogo.

Além do GRAD, outras organizações estão de plantão no Pantanal e atuam sob coordenação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, que ativou no fim de agosto um posto de atendimento emergencial para os animais silvestres resgatados.

Desde então, foram atendidos espécies como tuiuiú (a ave símbolo do bioma), garça, iguana, jabuti, jaguatirica, queixada, anta, maritaca, cachorro-do-mato, veado, paca, gavião, ariranha, coruja, quati, lontra, tamanduá.

Até a chuva chegar

Em Poconé, Fernando Tortato, biólogo e pesquisador da ONG Panthera, que trabalha com pesquisa científica e monitoramento de onças-pintadas no Brasil, fez de tudo para proteger o maior trecho possível do habitat desse felino ameaçado.

Na fazenda usada para pesquisa, que tem 10 mil hectares, as equipes tentaram impedir a propagação do fogo na área de natureza preservada onde as onças vivem. "Tentamos defender de 5 mil a 6 mil hectares, mas supomos que conseguimos garantir 3 mil", diz Tortato.

Um dos momentos mais difíceis, relata o biólogo, foi quando as chamas "pularam" de uma margem à outra do rio Cuiabá, vencendo 150 metros de água, e queimaram um terreno considerado importante.

O que foi preservado pode garantir a sobrevivência de algumas espécies. "Até a chuva chegar, até a vegetação começar a se recompor, será um período muito triste, porque muitos animais vão morrer de fome ou terão muita dificuldade. Cada hectare que conseguimos proteger fará uma diferença muito grande", justifica o biólogo. 

Em média, uma onça fêmea precisa de 10 km² para viver, o macho percorre até 30 km². Alguns, por outro lado, ocupam até 100 km². Essa área pode ser compartilhada com fêmeas e alguns outros machos num sistema hierárquico.

O fenômeno da destruição da temporada de queimadas mais severa já registrada no Pantanal ainda se desenrola. "Ainda é cedo para dizer quantos animais morreram. Tudo ainda está acontecendo. Respostas mais claras só virão no ano que vem", finaliza Torato.


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