29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Na mira do progresso, os índios isolados brasileiros

Publicado em 24/09/2020 12:00 -

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No Sul da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, os indígenas isolados do Cautário costumam subir na Serra de Uopianes. Do cume do morro, de 600 metros de altitude, os isolados podem avistar São Francisco do Guaporé, a cidade mais próxima, e observar a civilização não indígena que os rodeia, com a qual não mantém – e nem querem manter – nenhum contato.

Rieli Franciscato, um dos principais nomes do sertanismo brasileiro e atualmente coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau encontra frequentemente vestígios no alto da serra. Por isso, tem a certeza que ali é um lugar visitado pelos isolados. “Eles sabem de tudo que está a volta. Então se não estabeleceram contato, é porque não tem vontade e a gente tem que respeitar a vontade deles”, conta.

O grupo da região do Cautário circula pelo centro e sul da Terra Indígena, e é o maior dos três grupos de indígenas isolados na área – que constam como registros confirmados pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Deles, muito pouco se sabe. “A gente não sabe que língua esses indígenas falam, e a que grupo linguístico pertencem. Quanto mais a gente conhece sobre eles, mais se distancia dos outros povos que vivem no entorno e do que tem descrito na literatura”, explica.

Segundo Franciscato, o grupo evita se expor. Relatos de contato visual são muito raros. “Não dá para saber se são sobreviventes de algum contato, algum massacre. A estratégia deles é não fazer enfrentamento”, diz. Antes da demarcação da TI, em 1991, conta Franciscato, a preocupação dos seringueiros era maior com os isolados do norte da Terra, do grupo linguístico Kawahiva, que flechavam quem adentrasse sua área.

No livro Etnodicéia Uruéu-Au-Au, Mauro Leonel aponta que, em 1976, a Funai registrava interações entre os indígenas do Cautário e seringueiros que trabalhavam na região, muito antes da demarcação.

“Os índios manifestaram-se também no seringal do senhora Miranda Cunha, também no Rio Cautário. Três seringueiros deixaram-lhe presentes, um machado e um terçado em sua trilha. Receberam frutas silvestres em retribuição. Um fiscal do Banco da Amazônia relatou à Funai que outros seringueiros destruíram armadilhas para peixes ‘jiquis’, feitas pelos índios no Cautário [Funai, 7.12.1976, proc 3057/80].”(LEONEL, 1995).

O seringal na área teria sido aberto em 1943. Segundo relatos, sempre existiram índios na região “mas nunca procuravam se aproximar de suas barracas, por muito tempo nenhum seringueiro foi morto por índios e nenhuma barraca daquela foi saqueada”. A resistência por meio da violência só surgiu quando os seringueiros começaram a se aproximar demais das cabeceiras dos rios. Também há relatos de que os indígenas apareciam com frequência no seringal Parati. “Em 5 de agosto de 1978, o chefe do PI Guaporé, Luiz Henrique Dias Ferreira, comunicou novamente à Funai, em um relatório, as perambulações dos índios pelo Rio Cautário. No seringal Parati, visitaram as colocações Primeira Terra, Barracão, Canindé e Esperança. Todas as ações dos índios eram pacíficas, embora derramassem tigelas de seringa e fechassem estradas indesejáveis, com cipós e árvores”.

Segundo Franciscato, por essa postura de evitar o enfrentamento, esses isolados não sofreram tanta perseguição como em outros casos. Mesmo assim, eles vivem em sobressalto, alertas para a presença de invasores em suas terras. É uma situação de fuga constante.

Os outros registros se referem a grupos que vivem em dois pontos distintos da Terra Indígena (Rio Muqui e Bananeiras). Ambos são Kawahiva – fazem parte do mesmo grupo linguístico que os Uru-Eu-Wau-Wau e os Amondawa, povos contatados que vivem na TI. Franciscato monitora sobretudo os isolados do Rio Muqui.

Esse grupo teve um momento de separação bem distante com outros kawahivas que hoje são contatados, segundo Rieli. Awapu Uru-Eu-Wau-Wau, liderança do povo Uru-Eu-Wau-Wau, compartilha algumas histórias sobre o tempo do contato, que chegaram a ele por seus parentes mais velhos. “Antes do contato, todo mundo era unido. Mas aí, na troca de tiros, foi separando, porque eles (os isolados) achavam que era índio com índio que tava se matando”, diz. “Por isso se afastaram, fizeram o grupinho deles e ficaram para lá. Não quis mais falar com nois, nem a gente quis se aproximar deles”. Antes do contato, havia trocas esporádicas com os isolados, uma vez que língua era muito parecida, segundo Awapu. Depois, nunca mais se encontraram.

“Antes do contato, os isolados e os Amondawa conviveram, tiveram uma relação mais forte. Quando chega o segundo período da borracha, os Amondawa se sentem acuados e deixam essa região, vão para as cabeceiras do Rio Branco e só retornam no processo de colonização de Rondônia, no tempo do contato”, relata.

A partir do contato, descreve Franciscato, ocorre o esvaziamento no interior da TI. “Antes, as malocas dos Amondawa ficavam na cabeceira do Rio Cujubin, partilhando território com o grupo de isolados. No contato, foram removidos para o Norte da TI, assim como os Uru-Eu-Wau-Wau. Aí esvaziou o interior da TI, e hoje não tem mais relação, o espaço que eles ocupam é bem distinto de onde estão os isolados”, explica.

Em 1945, o Serviço de Proteção ao Índio faz um relato sobre os registros de vários grupos kawahivas nas cabeceiras dos Rios Marmelos, Maicy, Ipixuna e Machado. Essa área de ocupação alcançava a região do Pacaás Novos, área hoje ocupada pelos Uru-Eu-Wau-Wau. Já nessa época, os indígenas sofriam com a exploração dos seringalistas.

Ao longo das próximas décadas, todos esses grupos – Uru-Eu-Wau-Wau, Parintintin, entre outros – foram vítimas de massacres decorrentes da ocupação não indígena, tanto por meio da violência quanto pela contaminação por doenças. Mas foi a partir da década de 1970, com o Programa de Integração Nacional (PIN) e posteriormente, na década de 1980, com o Polonoroeste, que o governo militar implementou uma política ativa de ocupação da área. Entre 1970 e 1985, cerca de 40 mil famílias receberam lotes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Rondônia (TÜBIGEN, 1987) .

Os projetos tinham como base a abertura de lotes para agropecuária no meio da floresta amazônica, levando trabalhadores pobres do sul e centro do país. Foi uma tentativa de fazer a reforma agrária sem tocar nos interesses (e nas terras) dos grandes proprietários. O problema é que a Amazônia não estava vazia, mas ocupadas pelos povos originários – além de outros trabalhadores da floresta, como seringueiros e extrativistas. Já massacrados por séculos de invasões, os povos indígenas foram dizimados por essas frentes migratórias. Indígenas como os Piripkura ou o índio do buraco, da Terra Indígena Tanaru, são sobreviventes de massacres registrados nesse período.

Awapu Uru-Eu-Wau-Wau relata histórias assustadoras desses tempos que chegaram à ele por meio de seus parentes mais velhos.“Meu pai já viu os brancos pisando na barriga de mulher grávida para colocar a criança para fora”, relata. “E o pai da minha avó conta que um invasor tirou o couro um indígena, a pele com faca completa e deixou estendida no pau, para ficar duro igual tira couro de boi”.

Junto com a violência, veio a derrubada da mata para a agropecuária. É só olhar os mapas de Rondônia: sobrou floresta nas Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Ainda assim, as áreas protegidas de Rondônia estão entre as mais desmatadas da Amazônia.

Para piorar o cenário, em 1981, o Incra concedeu indevidamente 131 títulos de terras numa área da Terra Indígena conhecida como Projeto Burareiro, contra um parecer da Funai que já indicava a área como parte da TI. Desde então, essa é uma frente de invasão na Terra Indígena e se destaca nas imagens de satélite pelos buracos abertos na mata. “O fato de existirem ali um grupo de titulados, embora os índios tivessem impedido a ocupação de fato do terreno, transforma os titulados em escudo para os grandes interesses que disputam essa terra, como se verá. Toda campanha feita contra os direitos dos Uru-Eu-Wau-Wau tem esses titulados em epígrafe”.(LEONEL, 1986).

Rieli Franciscato

A história de Rondônia, e de sua colonização violenta, se confunde com a história do próprio Rieli. Nasceu no Paraná e, ainda criança, migrou para o Mato Grosso. Em 1985, mudou-se para Rondônia. “A maioria das pessoas que vinha para cá era em busca de terras”, explica.

Os assentados muitas vezes caíam no meio da floresta, distantes das cidades, com poucos recursos dos brancos. Foi o caso de Rieli, que adquiriu uma terra próxima à Terra Indígena Rio Branco. “Era uma época de difícil acesso, e acabamos estabelecendo uma relação legal com os índios de lá e outros”, conta. “Essa relação foi se estreitando, a gente se ajudava porque era um local muito difícil. Tinha uma boa relação com eles e com as pessoas da Funai”. Foi a partir dessa aproximação que, em 1988, Rieli foi chamado para um trabalho de localização na área que se tornaria a Terra Indígena Massaco. “Fui chamado por conhecer bem a região e dominar bem a mata. Aí foi adaptar essa questão do rastreio de vestígios”.

A Terra Indígena Massaco foi a primeira terra demarcada sem estabelecer contato com os indígenas, respeitando o isolamento do grupo. “Foi um trabalho sistemático de levantamento, igarapé por igarapé, toda a área de ocupação do grupo”, diz. Desde então, Rieli passou por várias áreas da Funai – trabalhou com os contatados Uru-Eu-Wau-Wau e Amondawa, na Frente do Purus, no Vale do Javari – a segunda terra indígena demarcada sem estabelecer contato com os grupos. Em 2010, Rieli assumiu a Frente de Proteção na Uru-EU-Wau-Wau, onde está até hoje.

Ameaças e vestígios

As maiores ameaças à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau se concentram na região norte do território, constantemente invadida por grileiros. Dados do Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento (Sirad) da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA), mostram que, apenas em abril de 2019, 225 hectares foram desmatados. Abril é o primeiro mês do período seco, que se estende até outubro – e quando se registram os maiores desmatamentos. Em 2018, o desmatamento na Terra Indígena foi de 692,34 hectares.

Denúncia da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e encaminhada ao Ministério Público Federal aponta que 180 invasores entraram na Terra Indígena em abril. Ao todo, são cerca de mil invasores no território, consumindo seus recursos e ameaçando a vida dos povos indígenas que vivem ali.

Esses invasores ameaçam sobretudo os povos indígenas isolados do Rio Muqui e Bananeiras, que ficam mais ao norte da terra. No sul, onde vivem os isolados do Cautário, a situação é mais tranquila. Rieli atribui isso à presença constante da Funai, por meio da sede da Frente de Proteção Etnoambiental, que ele coordena.

“A presença da Funai aqui faz com que minimizem esses impactos”, afirma ele. “No norte, se perdeu o controle com a retirada dos postos indígena de dentro da Terra Indígena”.

Rieli conta com a colaboração da Polícia Federal sediada em Ji-Paraná.”Teve um caçador que abateu uma anta e teve que pagar uma multa de R$ 30 mil. Isso mexeu no bolso dele e repercutiu em toda região, outros caçadores ficaram receosos de entrar”, afirma.

São cerca de quatro expedições anuais realizadas pela frente. Algumas tem um perfil de fiscalização, e contam com a parceria da polícia. “Por exemplo, tem muita caça noturna. Entramos três ou quatro dias depois da lua cheia, que é quando os caçadores estão entrando, aí montamos a cabana para esperar os caçadores saírem. Isso tem reduzido a caça”, explica.

Outras expedições são feitas em parceria com os Amondawa, índios contatados da TI Uru-Eu-Wau-Wau, em busca de vestígios dos isolados.

“Tem uma diversidade muito grande de vestígios que a gente encontra, desde uma quebrada de perambulação, uma região de caças, um varadouro (trilha na mata) mais estruturado, coleta de frutos, de material para confecção de artefatos (cestarias etc)”, conta Franciscato.

Esses vestígios conduzem para as áreas onde os isolados vivem. “A gente vai se aproximando até chegar a um acampamento que eles deixaram, e isso deixa uma série de informações, como eles comem, o que comem, os frutos que são consumidos por eles”.

A partir desses vestígios, Rieli pode estimar algumas informações sobre esses povos. “Aí a gente sabe que eles se dividem em quatro grupos que se encontram em determinados momentos do ano, mas que vivem em regiões diferentes e que tem características diferentes até na forma de coletar o mel, de cortar madeira. Tem grupo que resíduo alimentar é queimado, outro que deixa de qualquer jeito.

Rieli reforça que o propósito é nunca estabelecer contato e evitar colocar os isolados numa situação de sobressalto, para que eles não se sintam ameaçados com a sua presença. “Tem que ter muita atenção, quando a gente vê o perfil a gente recua”, diz. “A gente está pensando em desenvolver uma forma de comunicação com eles, para que eles possam associar um vestígio nosso ao de pessoas que tratam eles com respeitos”, conta. “Desenvolvendo algumas formas de comunicação com eles, para dar tranquilidade quando eles veem nossos vestígios”.

“Eu acho que a nossa sociedade ainda não está preparada para receber o índio no meio dessa sociedade tão perversa. Quem sabe um dia lá no futuro a gente possa estar preparado para receber esses povos”, conclui.

Referências Bibliográficas

Verbete Uru-Eu-Wau-Wau. Povos Indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental, 2019. Disponível em: . Acesso em 27 de mai. de 2019.

Frente de Contato Guaporé
1999-2000. Índios isolados na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. pp. 3-6.

LEONEL, Mauro
1995. Etnodicéia Uruéu-Au-Au. São Paulo, Edusp.

LEONEL, Mauro
1986. Relatório sobre a necessidade de homologação e efetiva demarcação da área conjunta de preservação A.I. Uru-Eu-Wau-Wau e o Parque Nacional de Pacaás Novos (IBDF). São Paulo, Polonoreste-Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, pp. 3-27.

TÜBIGEN, Martin Coy
1987. “Rondônia: frente pioneira e programa polonoroeste. O processo de diferenciação socioeconômica na periferia e os limites do planejamento público”. In: Homem e Natureza na Amazônia nº 95. pp. 253-270.


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