28/03/2024 - Edição 540

Brasil

O sucesso dos Waimiri-Atroari no combate à covid

Publicado em 24/09/2020 12:00 -

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Um menino sonha com ariranha ou gavião real ou que recebe uma lança do cantor. Enquanto a humanidade segue num pesadelo pandêmico, um menino está sonhando, neste exato momento. Um sonho que, segundo os Waimiri Atroari, fortalece o seu corpo e aumenta sua sabedoria. Eles chegam para os meninos Waimiri Atroari após seu Maryba, evento muito importante, dias de dança, cantos e abundância de alimentos. É no Maryba que os Kinja, autodenominação dos Waimiri Atroari, fazem a iniciação das crianças, casamentos e fortalecimento de alianças entre parentes, inclusive de outras aldeias.

Enquanto os Kinja faziam Maryba, a Covid-19 se espalhava por Terras Indígenas em todo o Brasil. Já foram contabilizados 31.851 casos, e 806 óbitos entre indígenas, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O descaso do governo foi o principal motor para que a doença se espalhasse. Falta de informação, nenhuma ação para conter invasores, pouco apoio para profissionais de saúde, que muitas vezes foram os vetores da doença nos territórios e a implantação do auxílio emergencial sem qualquer especificidade para os povos indígenas. O benefício, que deveria ajudar os brasileiros a atravessar o período da pandemia, acabou levando muitos a sair de suas aldeias e irem até a cidade, que se contaminaram e levaram o vírus de volta para suas aldeias.

Mas nem em todos os lugares foi assim. A Covid-19 nunca chegou na Terra Indígena Waimiri Atroari. É uma história de sucesso sobre como uma comunidade conseguiu efetivamente se isolar e impedir que o novo coronavírus chegasse ali. Foram apenas seis casos entre os Kinja, mas todos eles aconteceram fora do território, em indígenas que estavam na cidade para tratar outros problemas de saúde e foram contaminados em Hospital em Manaus. Todos eles ficaram em isolamento antes de retornar para a comunidade, o que impediu que o vírus entrasse por esse meio.

Para impedir que a Covid chegasse em seu território, os Waimiri Atroari se organizaram. Suspenderam os deslocamentos às cidades, salvo emergências e urgências de saúde. O Programa Waimiri Atroari (PWA) cancelou as compras de itens não emergenciais dos núcleos urbanos, minimizando o risco das mercadorias chegarem contaminadas. Além disso, foram tomadas medidas de higiene padrão, segundo a doutora Irineide, do Programa de Saúde dos Waimiri Atroari. Outro diferencial é que os Waimiri Atroari contam com equipes de saúde do próprio povo, o que evita que profissionais de saúde externos tenham que entrar nas aldeias para cuidar da saúde dos kinja.

“Só vamos para a cidade em caso de emergência, acidente ofídico, fratura e só se precisar mesmo, se não a gente trata na aldeia. Manaus circula muita gente, tem avião, navio, viatura. Muito perigoso. Então a gente fica trabalhando na aldeia. Enquanto kaminja não fizer vacina vamos ficar fazendo assim. Nós ficamos preocupados com a equipe do PWA, na cidade”, afirma Joanico Tuwadja.

Já em março, os kinja suspenderam o controle seletivo de tráfego no período noturno do trecho da BR-174 que passa pelo seu território. Os Waimiri Atroari fazem essa fiscalização conforme direito estabelecido por decisão judicial. Mas, neste momento, eles identificaram que esse contato poderia trazer a Covid-19 para dentro das comunidades. Os kinja se isolaram em suas aldeias e impediram outras pessoas de entrarem nelas. O trânsito de funcionários do Programa Waimiri Atroari (PWA) não indígenas também foi suspenso, mantendo-se apenas os deslocamentos estritamente necessários, como nos postos de fiscalização, em que eles, inclusive, substituíram os kinja.

Nos escritórios e pontos de apoio do PWA foram implementadas medidas preventivas no dia a dia dos funcionários, como o distanciamento social, higienização das salas e equipamentos e realização rotineira dos exames disponíveis para detecção de Covid-19, adquiridos pelo próprio PWA.

O Programa Waimiri Atroari foi criado em 1988. Fruto de um acordo entre a Funai e Eletronorte, é uma compensação da Usina Hidrelétrica de Balbina, uma das obras de infraestrutura do governo brasileiro que impactou o território dos Waimiri Atroari. Além de ser formado por uma equipe multidisciplinar longeva, comprometida e familiarizada com os Kinja, o PWA mantém ações específicas na linha de educação, apoio à produção, proteção ambiental, vigilância, documentação e memória e saúde. Os Waimiri Atroari sabem o que são as doenças dos brancos. Na década de 1970, durante a ditadura militar, além da violência, epidemias levadas pelos brancos dizimaram muitos do povo Waimiri Atroari.

As ameaças continuam. O governo pretende construir um linhão de transmissão cortando a TI, e causando prejuízos ambientais. Os kinja lutam para serem escutados no processo e terem seu protocolo de consulta respeitado e suas demandas atendidas. Mesmo assim, em plena pandemia, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e Ministério de Minas e Energia (MME) pressionaram os indígenas para seguir no processo de licenciamento, realizando as etapas por videoconferência.

O Subprograma de Saúde do Programa Waimiri Atroari tem mais de 30 anos e é responsável pelas ações de saúde direcionadas para prevenção e controle de doenças além da cobertura vacinal de 100% da população. O atendimento é realizado por uma equipe de 19 funcionários composta por uma médica coordenadora, duas enfermeiras, duas odontólogas, seis técnicos de enfermagem, seis técnicos de saúde, um farmacêutico bioquímico e um motorista que acompanha a saúde das crianças, mulheres, homens e idosos.

Além disso, há 72 Kinja que atuam como auxiliares de saúde e 42 como microscopistas, realizando exames de malária, parasitológicos de fezes e urina. A detecção rápida de malária é muito importante, pois identifica os casos em que se faz necessária a remoção imediata para tratamento na cidade, salvando vidas. Ao longo dos anos, os Kinja aprenderam a técnica de microscopia, atuando após serem diplomados por cursos em Manaus.

“A participação dos agentes de saúde indígenas tem sido eficiente, diminuindo a necessidade de se contratar novos profissionais. O atendimento primário feito pelos Kinja é mais eficiente pelo domínio da língua materna e da cultura, reduzindo os custos com a assistência à saúde e aumentando a autonomia do povo Kinja”, Dra. Irineide, coordenadora do Subprograma de Saúde do Programa Waimiri Atroari.

Os únicos seis casos de Covid entre os kinja foram de pacientes ou acompanhantes acometidos de outras doenças que precisaram de atendimento emergencial no hospital em Manaus, e que lá se contaminaram. Para garantir sua recuperação plena antes de retornar às aldeias, os Kinja cumprem um protocolo rígido, permanecendo no escritório do Programa Waimiri Atroari em Manaus, em quarto isolado, até finalizar quarentena, e depois ainda repetem outra fase de isolamento nos pontos de apoio antes de retornar às aldeias. Ainda, são submetidos a uma sequência de testagem durante essa fase.

Assim, os mais de 2.230 kinja que habitam as 62 aldeias seguem suas vidas, plantando, colhendo, banhando e cantando. A orientação de baixa circulação até mesmo entre as aldeias vem sendo respeitada e os Marybas são realizados regionalmente.

Os Waimiri Atroari seguem em suas aldeias em segurança pois tem sua soberania territorial e alimentar garantida: em seu território plantam, caçam e festejam conforme seus usos e costumes. Como complementa Joanico Tuwadja: “Esse coronavírus é muito ruim para vocês que ficam na cidade, perigoso, mas nós estamos na aldeia trabalhando, pescando e fazendo roça”. Como dizem: ‘Sem território, sem comida, sem fartura de recursos naturais, não há festa, não há ritual. Segundo os Kinja, o Maryba também é necessário para que o menino cresça trabalhador, bom caçador, bom pescador e um forte guerreiro; para que esse menino seja uma pessoa de decisão.

Mês passado os Kinja fizeram Maryba.

Falta informação

Depois de mais de seis meses do início da pandemia no Brasil, o país ainda não conhece a real extensão do impacto da Covid-19 entre sua população indígena. Isso acontece porque ainda falta transparência nos dados divulgados pelas secretarias municipais e estaduais de saúde. Um a cada quatro casos de Covid-19 e SRAG suspeitos ainda não informa raça/cor, apesar de ser item obrigatório. A omissão dos dados de etnias indígenas é bem maior quando comparada a outros indicadores de raça/cor – apenas 57% dos estados e 15% das capitais brasileiras divulgam o dado. As informações são de relatório especial da Open Knowledge Brasil (OKBR), publicado no último dia 22.

Nesta primeira edição de uma série de boletins especiais sobre a Amazônia, a OKBR aponta os problemas de gestão da informação e de falta de transparência que dificultam o atendimento a essas populações. A série tem apoio da Hivos, por meio de sua iniciativa Todos os Olhos na Amazônia.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) contabiliza 426 mortes, mas não considera indígenas que vivem fora de terras homologadas. Na base de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que inclui os casos graves de Covid-19 que levaram à hospitalização, estão registrados 529 óbitos de pessoas registradas como indígenas em todo o país, em 183 municípios. Há, ainda, 106 mortes por SRAG de tipo “não especificado” entre indígenas, ou seja, pessoas que tiveram sintomas semelhantes aos provocados pela Covid-19, mas não houve testagem para confirmar a doença.

Ainda que somados, esses números oficiais podem estar subestimados por pelo menos três motivos: (i) não consideram óbitos existentes entre as notificações registradas no eSUS-Notifica, onde estão os casos inicialmente considerados leves e sem hospitalização; (ii) os registros de Raça/Cor podem ser inconsistentes (por exemplo, um indígena pode ser classificado como “pardo”); (iii) um quarto da base completa de casos (25%) ainda não tem especificado o campo Raça/Cor, seja por falta de preenchimento ou por classificar o caso como “ignorado”.


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