27/04/2024 - Edição 540

Poder

Os EUA acima de tudo, Trump acima de todos

Publicado em 18/09/2020 12:00 -

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Jair Bolsonaro adora dizer que falta patriotismo à sociedade civil brasileira. Usa a manjada teoria da conspiração de que a defesa dos direitos dos povos indígenas às suas terras abre caminho para a internacionalização da Amazônia. Mas é ele que, novamente, deu provas que seu fetiche político-ideológico nos guia para "America First, Brazil later".

O governo brasileiro renovou a cota de etanol dos Estados Unidos que pode entrar no Brasil sem pagar imposto de importação, um mar de 62,5 milhões de litros por mês. Acima disso, o valor é a tarifa comum do Mercosul, 20%. A cota havia expirado em agosto.

Mas para ajudar Donald Trump, que busca votos nos estados produtores de milho (matéria-prima do etanol por lá), Bolsonaro dificultou a vidas dos produtores brasileiros, que estão com estoques para gastar devido à redução no consumo na pandemia.

E isso logo depois dos Estados Unidos terem reduzido a cota de aço semiacabado que o Brasil pode vender a eles sem tarifas – o total caiu de 350 mil para 60 mil toneladas para o quatro trimestre do ano. O motivo também foi pressão da indústria dos EUA sobre Trump, candidato à reeleição, por causa da queda de demanda devido à pandemia.

Ou seja, após levarmos um pescotapa de alguém que Bolsonaro chama de amigo e aliado, servimos a ele um chazinho e fizemos massagem nos seus pés. O chanceler Ernesto Araújo pode chamar isso de diplomacia, mas por aqui tem outro nome: paga-lanche.

No debate que levou à renovação da cota, o Ministério da Agricultura foi contra. Acabou vencido sob a justificativa de que isso abre caminho para facilitar a exportação de açúcar para os EUA. Fontes ouvidas pela coluna afirmam que é mais fácil o tal camelo passar pelo buraco da tal agulha do que isso ocorrer no curto prazo.

Além disso, a renovação da cota dura apenas três meses. O produtor de etanol de milho nos Estados Unidos tem que ser muito otário para não perceber que isso vai funcionar como uma jogada eleitoral, pois muito provavelmente o Brasil vai elevar a cota novamente após as eleições presidenciais de novembro nos EUA.

Mas o que a história nos mostra é que tem gente que gosta de ser enganada. Lá, aqui, em todo o lugar.

A questão que está em jogo aqui não é o livre comércio de etanol, de açúcar, de álcool. Você pode ser a favor de que Brasil e Estados Unidos tenha uma relação de compra e venda sem tarifas para vários produtos – como já aconteceu com o etanol até os EUA darem um salto no total exportado para cá.

A questão é que tudo soa como subserviência bem crua mesmo, inclusive na opinião de negociadores. Bolsonaro teme que Trump saia do poder, o que fragilizaria a posição da extrema direita internacionalmente. E, por conta disso, aceita fazer o que for necessário. Inclusive agir como poodle do norte-americano, passando por cima dos interesses dos brasileiros.

Nos últimos meses, Trump usou o Brasil de Bolsonaro até como exemplo negativo no combate à covid-19. Mas nosso presidente segue firme e forte na arte de lamber botas.

O atual governo não é muito bom de trocas. Tanto que abandonou uma tradição de mais de um século de uma diplomacia independente em nome de amigos imaginários.

Análise

Sob Jair Bolsonaro, o Planalto vangloria-se de manter relações preferenciais com a Casa Branca. Esse relacionamento vem propiciando dois tipos de negociação diplomática: as ruins e as muito piores. Na mais recente, o Itamaraty entrou na discussão de cócoras. E saiu de joelhos.

Negociava-se a renovação de uma cota de importação de etanol dos Estados Unidos sem imposto. Em troca, o Brasil queria isenção para exportar açúcar para os americanos. A diplomacia de Bolsonaro, como de hábito, rendeu-se sem conquistar nenhuma contrapartida.

O etanol exportado para o Brasil paga tarifa de 20%. Mas havia uma cota anual que entrava sem taxação. Coisa de 750 milhões de litros. Essa cota expirou em 31 de agosto. A Casa Branca pediu a renovação —uma boa hora para exigir isenção também para o açúcar brasileiro, taxado em 140% nos Estados Unidos.

Na sexta-feira, Bolsonaro entregou —gostosamente— os pontos. Pelos próximos três meses, os produtores americanos poderão vender até 187,5 milhões de litros de etanol sem pagar imposto no Brasil. E quanto à isenção para o açúcar brasileiro? Ficou na promessa, para desassossego das usinas de cana do Brasil.

O mimo de Bolsonaro foi à vitrine duas semanas depois de os Estados Unidos reduzirem a quantidade de aço comprado do Brasil com tarifas reduzida.

A contaminação da política externa por uma visão ideológica e personalista fez sumir algo que era respeitado no mundo inteiro: o profissionalismo da diplomacia brasileira. Nesse setor, o lema da administração Bolsonaro é muito parecido com o slogan que o capitão entoava na campanha: "Estados Unidos acima de tudo, Donald Trump acima de todos."

As derrotas diplomáticas que o Brasil pode ter aceitado para ajudar Trump a se reeleger

Em um período de apenas 15 dias, o Brasil amargou três derrotas diplomáticas para os Estados Unidos. Mas, de acordo com pessoas com conhecimento direto das negociações, que conversaram reservadamente com a BBC News Brasil, o governo brasileiro não foi pego de surpresa pelos reveses: ao contrário, o Itamaraty teria atuado diretamente para promover o interesse dos Estados Unidos sobre os nacionais.

O motivo: ajudar o republicano Donald Trump em sua tentativa de reeleição à Casa Branca. Em desvantagem nas pesquisas eleitorais nacionais, Trump enfrentará as urnas em menos de 50 dias.

A sequência de ações é considerada "eleitoreira" e "mostra de subserviência", disseram diplomatas ouvidos pela reportagem.

No dia 28 de agosto, os americanos anunciaram que cortariam em mais de 80% a importação de aço brasileiro até o fim do ano. Ao fazê-lo, ainda agradeceram ao "diálogo construtivo" com o chanceler Ernesto Araújo. Treze dias mais tarde, o governo brasileiro decidiu expandir por mais três meses o prazo para importação de etanol americano com tarifas mais baratas, contrariando o interesse dos próprios produtores brasileiros.

E no último fim de semana, o país ajudou a chancelar o nome de um ex-oficial do Departamento de Estado, o trumpista Mauricio Claver-Carone, para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cuja direção, pelas regras tácitas do banco, caberia ao Brasil.

Segundo analistas, as nuances de cada um desses lances revelam o interesse da gestão Jair Bolsonaro de atuar para fortalecer a posição eleitoral de Trump entre latinos e nos chamados corn belt – como os americanos costumam chamar os Estados produtores do milho, com o qual fabricam o etanol – e rust belt – o cinturão da ferrugem, estados cuja economia se baseou por décadas em uma indústria siderúrgica alquebrada que Trump prometeu restaurar.

"Nos últimos 20 meses, o governo Bolsonaro isolou-se internacionalmente, fiando a relevância global do Brasil à permanência de Trump no poder. A reeleição de Trump, portanto, é uma questão de sobrevivência internacional do governo Bolsonaro. As concessões assumem profunda simbologia e visam dar a Trump vitórias diplomáticas à véspera da eleição", diz Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

O Itamaraty foi procurado por e-mail na última terça-feira (15/9) e por telefone nesta quarta para comentar se teve a intenção de beneficiar Trump nas negociações citadas pela reportagem e se reconhece que os atos podem ter efeito eleitoral. O órgão não respondeu até a publicação desta reportagem. Caso o Itamaraty se manifeste, a resposta será incluída neste texto.

Aço

Desde junho, os americanos passaram a pressionar o Brasil com a possibilidade de recolocar tarifas sobre o aço brasileiro. Graças a um acordo firmado em 2018, uma dada quantidade de chapas do metal produzidas pelo Brasil podia entrar nos Estados Unidos sem encarar as barreiras tarifárias de 25% impostas pela gestão Trump.

Ao criar o sistema protecionista, Trump cumpria uma de suas principais promessas de campanha, cujo mote era "America First": tentar proteger a indústria siderúrgica americana e os empregos de seus operários que, em 2016, deram a Trump a vitória eleitoral em estados como Michigan, Pensilvânia, Wisconsin e Ohio.

No entanto, os poucos resultados da política econômica para reanimar o setor siderúrgico americano e a possibilidade de perder a disputa para os democratas nesses estados – as pesquisas mostram Joe Biden na liderança em Michigan, Pensilvânia e Wisconsin – levaram o governo Trump a cogitar a retomada das tarifas sobre o produto brasileiro, como uma sinalização a seu eleitorado.

Na negociação com o Brasil, os representantes de Trump deixaram claro que a decisão não se devia só à contração econômica provocada pelo coronavírus, mas ao momento político do país.

O recurso de tarifar o aço brasileiro para agradar o eleitorado não é inédito no histórico de Trump. Em dezembro do ano passado, depois de acusar o Brasil de propositalmente depreciar o valor do real frente ao dólar, Trump já havia anunciado que taxaria o produto brasileiro, medida da qual recuou quase 20 dias depois, graças a gestões do Itamaraty. Agora, o governo Trump chegou a sugerir que o governo brasileiro contivesse a saída do aço do país, o que os produtores não aceitaram.

Diante da inevitabilidade da tarifa, Ernesto Araújo teria conseguido amortecer o impacto político da medida para Bolsonaro ao convencer os americanos a cortar a quantidade importada do Brasil, em vez de retomar os impostos nas transações comerciais. Para o setor produtivo, dizem os especialistas, pode ser uma solução ainda pior que a tarifa, já que na prática impede a exportação pelo Brasil. O prazo das restrições deixam claro o objetivo eleitoreiro da medida: Brasil e Estados Unidos retomarão conversas em dezembro, um mês após o pleito.

Etanol

Diante da derrota no aço, a expectativa dos produtores brasileiros e dos analistas de mercado era de que o Brasil fosse revogar a isenção de tarifa para importação do etanol americano, aplicada por Bolsonaro no ano passado e vencida em agosto.

Ao zerar a tarifa sobre a importação do etanol, em 2019, o presidente brasileiro atendia a um pedido de Trump. Seu ato criou uma crise com a base ruralista no Congresso, que chegou a divulgar nota dizendo que "os interesses norte-americanos não podem se sobrepor ao dos brasileiros" e ameaçou derrotar o governo nas reformas a serem aprovadas na casa.

Agora, a condição dos empresários do setor sucroalcooleiro é ainda mais delicada que há 12 meses: os estoques estão quase 50% mais abastecidos do que no mesmo período do ano passado por conta da redução do consumo de combustíveis desde o início da pandemia. Os produtores de cana de açúcar esperavam que o governo anunciasse uma linha de crédito para socorrer o setor, que precisa aumentar sua capacidade de estocar.

Ao contrário, recebeu a notícia de que até dezembro mais 187,5 milhões de litros de etanol americano poderão entrar no mercado brasileiro sem impostos. Só depois das eleições americanas haverá revisão da tarifa.

O modo como se deu a decisão explicitou quem saiu vitorioso dela. Os ministérios da Agricultura, da Economia e de Minas e Energia foram contrários à renovação da isenção de tarifa aos americanos. A favor, apenas o Itamaraty, do chanceler Ernesto Araújo, que convenceu Bolsonaro.

Constrangidos, os demais ministros sequer assinaram nota em conjunto com o Itamaraty para anunciar a decisão. Coube a Araújo justificar a benesse aos americanos com a promessa de "abrir negociações capazes de expandir as oportunidades para etanol e açúcar nos dois países, dentro da parceria econômica Brasil-Estados Unidos que estamos construindo".

Há décadas, o Brasil tenta convencer os americanos a cortar a taxa de 140% que impõem sobre o açúcar brasileiro, sem sucesso. De acordo com o presidente da União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica), Evandro Gussi, o governo impôs "um sacrifício enorme" ao setor, só justificável se o açúcar nacional realmente puder entrar nos Estados Unidos. Gussi disse ainda que "odiaria" saber que a decisão foi tomada para ajudar Trump a conquistar votos.

"Ninguém acredita que em 90 dias os americanos vão passar a comprar açúcar do Brasil como nunca fizeram. É evidente que a medida foi adotada para ajudar Trump na eleição às custas dos fazendeiros brasileiros. A ajuda termina logo depois do período eleitoral americano", afirmou um dos líderes de entidade empresarial voltada ao comércio exterior, que preferiu não se identificar para não atrapalhar negociações futuras com o governo Bolsonaro.

O etanol americano é produzido a partir do milho cultivado em estados como Illinois, Indiana, Iowa, Minnesota, Nebraska, e Ohio. Os fazendeiros do grão formaram a base eleitoral de Trump em 2016.

A guerra comercial do presidente americano com a China, no entanto, resultou em um grande impacto sobre o agronegócio dos Estados Unidos. Os chineses impuseram barreiras tarifárias pesadas aos produtos americanos e passaram a consumir mais de outros produtores de alimentos, como o Brasil.

Aliado a isso, a queda no preço global de commodities e problemas climáticos impediram uma safra melhor no ano passado e afundaram o setor agrícola do país em dívidas. Um dado ilustra de maneira eloquente o sofrimento nesse grupo: um estudo divulgado em janeiro desse ano pelo CDC, Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos, mostrou que os fazendeiros são a categoria profissional com mais propensão a se matar entre todas as ocupações. O número de suicídios entre homens do campo aumentou 40% em duas décadas.

Dos seis estados do corn belt, Trump mantém vantagem – segura ou apertada – em quatro. Nos outros dois, Biden aparece na liderança. O gesto do governo brasileiro pode contribuir para assegurar a simpatia de mais fazendeiros a Trump.

BID

Um dia após anunciar a prorrogação na isenção da tarifa do etanol, Ernesto Araújo voltou ao Twitter para parabenizar o americano Mauricio Claver-Carone pela eleição como presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com "com firme apoio do Brasil", nas palavras do chanceler.

Na verdade, o Brasil, que chegou a apresentar candidato ao posto, foi atropelado por Trump, interessado em expandir a influência americana na região e bloquear investidas da China. Ao apontar Claver-Carone, o formulador das políticas da gestão Trump para Venezuela e Cuba, o governo americano, principal acionista do banco, ignorou um acordo tácito sobre o comando da instituição vigente desde sua fundação, em 1959: sempre ter um latino na presidência.

Como se revezaram à frente do BID um chileno, um uruguaio, um colombiano e um mexicano, o Brasil nutria a expectativa de ser o próximo da fila.

Mas, diante da indicação americana, o Itamaraty não só retirou-se imediatamente da disputa como atrapalhou uma articulação de países como Argentina e México para lançar outro candidato ou ao menos protelar a escolha para depois das eleições americanas.

Com a perspectiva da eleição de Claver-Carone, a campanha de Biden afirmou ao jornal Miami Herald que ele era "super-ideológico" e "subqualificado" para o posto. Na prática, se Biden ganhar a eleição, o presidente do BID não representará o governo americano.

A eleição de Claver-Carone, no entanto, é uma importante demonstração de força de Trump e um meio de assegurar aos eleitores que poderá aprofundar suas ações na região em um novo mandato. Nos últimos quatro anos, o presidente americano endureceu sanções em relação à Venezuela e chegou a prometer que "colocaria um fim" ao regime de Nicolás Maduro, o que não aconteceu.

Para reforçar a mensagem, Trump envia ainda nesta semana seu secretário de Estado, Mike Pompeo, para uma visita à Roraima, estado que faz fronteira com a Venezuela. E embora o fluxo de venezuelanos na região tenha caído drasticamente porque a fronteira entre os dois países foi fechada devido à pandemia de coronavírus, em Boa Vista, Pompeo irá se encontrar com "migrantes venezuelanos que fogem do desastre causado pelo homem no país" para "destacar o compromisso dos Estados Unidos em defender a democracia", afirmou o Departamento de Estado em nota. Ernesto Araújo acompanhará a visita.

As palavras – e as ações – do governo Trump têm endereço certo. Cerca de 200 mil venezuelanos vivem na Flórida, um estado em que Biden e Trump estão empatados na preferência eleitoral. O apoio dessa comunidade pode ser crucial para determinar o vencedor na corrida não só localmente, mas à Presidência. Em 2016, o republicano venceu no estado por uma margem de apenas 113 mil votos.

De acordo com Araújo, a eleição de Carone ao BID é a "garantia de um BID comprometido com nossos valores de democracia e economia de mercado para as Américas".

Interferência em eleições

Segundo Casarões, as ações do governo em apoio a Trump são coerentes com o discurso da gestão. O presidente Bolsonaro já expressou sua preferência pela eleição do republicano, de quem se disse "fã", e seu filho e deputado federal Eduardo Bolsonaro tem feito campanha em favor da reeleição de Trump nas redes sociais.

As manifestações de Eduardo levaram o presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara Americana, o representante democrata Eliot Engel, a pedir que "a família Bolsonaro se retire da eleição americana", um assunto que para o parlamentar deveria estar restrito ao povo americano.

Mas, para Casarões, esse tipo de atuação dos políticos brasileiros não é uma exclusividade do pleito nos Estados Unidos, embora este seja o mais importante deles no interesse brasileiro.

"A interferência brasileira em processos eleitorais alheios é uma característica do governo Bolsonaro. Houve envolvimento indireto da política externa brasileira na retirada de Evo Morales do poder na Bolívia, além de discursos e ações favoráveis a aliados brasileiros em eleições – (a tentativa de reeleição de Maurício) Macri na Argentina, (Benjamin) Netanyahu em Israel e do próprio Trump nos Estados Unidos", afirmou o professor da FGV.


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