24/04/2024 - Edição 540

Poder

Veto da boca para fora

Publicado em 18/09/2020 12:00 -

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Altamente dependente da bancada evangélica para levar adiante seus planos de governo e aprovar projetos da sua agenda econômica, o presidente Jair Bolsonaro não quer se indispor com seus aliados de primeira hora. Por isso, ele tira benefícios fiscais para os religiosos com uma mão, mas promete dar com a outra. Foi o que ele fez com a proposta de lei que concede anistia em tributos a serem pagos pelas igrejas. Bolsonaro vetou o perdão de uma dívida tributária, que equivale a R$ 1 bilhão, e, para não melindrar os evangélicos, prometeu alguma medida que livre seus aliados de impostos de uma vez por todas. O que Bolsonaro instituiu foi uma espécie de “veto brando”, em que demonstra seguir as orientações do Ministério da Economia para garantir um verniz de responsabilidade fiscal para seu governo e acena com benefícios e isenções futuras para agradar seus pares. No último dia 13, a Secretaria-Geral da Presidência informou que o presidente é favorável à não tributação de templos e que o governo irá propor “instrumentos normativos a fim de atender a justa demanda das entidades religiosas”.

O veto ao perdão tributário das igrejas foi recomendado pela equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, e foi puro jogo de cena. Bolsonaro seguiu a recomendação porque se tivesse concedido o perdão poderia ser questionado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e, inclusive, ser alvo de um pedido de impeachment por incorrer em crime de responsabilidade. Para compensar, sugeriu a derrubada do veto no Congresso e também se mostrou disposto, caso a decisão não seja revertida, a enviar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para garantir a isenção das igrejas. Nas mídias sociais, o presidente confessou que “caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo”. “No mais, via PEC a ser apresentada nessa semana, manifestaremos uma possível solução para estabelecer o alcance adequado para a imunidade das igrejas nas questões tributárias”, afirmou. O veto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) no dia 14. Dois dias depois, o presidente se reuniu com membros da bancada evangélica para dizer seus pleitos, de um jeito ou de outro, serão atendidos.

Bolsonaro sancionou, porém, outro dispositivo que estabelece que valores pagos a religiosos não podem ser considerados remuneração para fins de contribuição previdenciária e invalida autuações da Receita Federal. Na prática, o projeto concede anistia retroativa à cobrança de impostos previdenciários nas remunerações pagas a membros religiosos, como os pastores. A proposta tenta fazer valer o entendimento que os valores pagos não são remunerações. Mas para o Fisco, trata-se apenas de uma manobra tributária. Algumas igrejas pagam salários para seus funcionários seguindo o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Outras, que trabalharam pela mudança das regras, consideram a remuneração como doações, na tentativa de se livrar de qualquer contribuição.

Proteção tributária

A proposta de anistia dos tributos das igrejas foi criada pelo deputado federal David Soares (DEM-SP). Ela altera a lei que instituiu a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), em 1988, e tira os templos religiosos da lista de pessoas jurídicas que devem pagar o tributo, além de anular autuações que envolvam a cobrança da contribuição. David Soares é filho do pastor R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, uma das principais devedoras do governo. A justificativa para a proposta é que a Constituição dá proteção tributária às igrejas, um argumento que é contestado, já que a isenção é limitada a impostos e não atingem contribuições sociais. Além disso, há ressalvas feitas pelos auditores da Receita Federal sobre as vantagens indevidas que a proposta representa. O Sindifisco, entidade sindical que reúne os auditores, considera a proposta “um atropelo na lei para beneficiar alguns contribuintes”.

A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional é formada por 195 dos 513 deputados federais e por 8 dos 81 senadores. O presidente da bancada religiosa da Câmara, Silas Câmara (Republicanos-AM), diz ter maioria para reverter o veto presidencial e manter o perdão às igrejas do pagamento de dívidas com a Receita Social e a isenção do pagamento da CSLL. Na terça-feira 15, houve uma reunião da bancada em que se definiu a estratégia que será adotada de agora em diante. Deputados presentes ao encontro disseram que a maioria é favorável à derrubada do veto e à abertura de um diálogo sem atritos com o governo para a construção de uma proposta à emenda da Constituição que pacifique as questões relativas à imunidade tributária das igrejas. Para derrubar um veto presidencial é necessário o apoio da maioria absoluta dos parlamentares das duas casas: 257 votos na Câmara e 41 votos no Senado. E pelo jeito, não será difícil para a bancada evangélica atingir seus objetivos.

Análise

Em célebre passagem da Bíblia (Mateus 22:17-21), o próprio Cristo aconselha a pagar os impostos em dia: “Dai, pois, a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Religioso como diz ser, o presidente Jair Bolsonaro deve conhecer essa prédica, mas aparentemente se esqueceu dela ao defender a criação de “instrumentos normativos” para permitir que entidades religiosas, já isentas do pagamento de impostos, deixem de pagar também contribuições, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a previdenciária.

A defesa da isenção total para igrejas foi feita depois que Bolsonaro se viu na contingência de, muito a contragosto, vetar um “jabuti” incorporado ao Projeto de Lei 1.581/2020, que trata de acordos para pagamento de precatórios entre a União e seus credores. Se sancionado pelo presidente, o tal quelônio que a Câmara desavergonhadamente aprovou anistiaria R$ 1 bilhão em débitos tributários das igrejas, segundo cálculos da equipe econômica.

O Ministério da Economia, obviamente, recomendou a Bolsonaro que vetasse esse dispositivo, que já seria absurdo em condições normais, mas que se tornaria especialmente ofensivo diante do quadro de penúria fiscal e de despesas crescentes com a pandemia de covid-19. O presidente o fez, mas apenas parcialmente – manteve uma anistia a multas aplicadas pela Receita Federal pela não quitação de tributos sobre a chamada “prebenda”, nome que se dá ao pagamento que ministros de ordens religiosas recebem, entendido como remuneração direta ou indireta. Uma lei de junho de 2015 isentou os religiosos desse tributo, e o dispositivo sancionado por Bolsonaro perdoa todas as autuações feitas antes daquela data. Uma dádiva.

Não é preciso ler a Bíblia para saber que se trata de uma imoralidade – além de uma ilegalidade. Basta consultar o Código Tributário Nacional, cujo artigo 144 mantém multas e autuações mesmo que a lei que as determinou seja posteriormente alterada ou revogada. Foi essa singela constatação – a de que havia um “obstáculo jurídico incontornável”, segundo nota da Secretaria Geral da Presidência – que fez Bolsonaro acatar a necessidade de vetar parcialmente as manobras para privilegiar escandalosamente os donos de igrejas evangélicas que o apoiam. Só a igreja pertencente à família do deputado David Soares, autor do “jabuti”, deve algo em torno de R$ 38 milhões à União.

Mas a fé move montanhas. Enquanto se via obrigado a cumprir o que determina a lei – reconhecendo que, se não o fizesse, incorreria em crime de responsabilidade, com risco inclusive de impeachment –, o presidente Bolsonaro estimulava os deputados a ignorá-la, derrubando seu próprio veto. “Confesso. Caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo (sic)”, declarou o presidente nas redes sociais, desmoralizando de vez o instituto do veto presidencial – fundamental no processo legislativo. Bolsonaro prometeu ainda que apresentará “nesta semana” uma proposta de emenda constitucional para determinar “uma possível solução para estabelecer o alcance adequado para a imunidade das igrejas nas questões tributárias”.

Há tempos o presidente Bolsonaro vem pressionando a Receita Federal a, segundo suas palavras, “resolver o assunto” das dívidas tributárias das igrejas, tema de grande interesse da bancada evangélica. Diante da resistência dos técnicos do Fisco, que preferem a ortodoxia da lei à heterodoxia do evangelho bolsonarista, restou articular a aprovação legislativa de alguma manobra que facilitasse o drible nas obrigações fiscais das igrejas e de seus donos. O problema é que essa caridade com chapéu alheio, além de ser acintosa em tempos de pandemia, só se presta a alimentar a base de apoio de Bolsonaro com vista à sua reeleição, o único projeto claro de sua Presidência até o momento.

Já os brasileiros comuns – religiosos ou ateus – continuarão obrigados a pagar seus impostos em dia, sem a menor possibilidade de perdão – que, no Brasil de Bolsonaro, está reservado somente a uns poucos eleitos.


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