19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Enquanto o Pantanal e a Amazônia queimam, Mourão procura traidores imaginários

Publicado em 17/09/2020 12:00 -

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O vice-presidente Hamilton Mourão alçou a fronte e encheu o peito como uma segunda barriga para denunciar a presença de um quinta-coluna plantado pela oposição dentro do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O sabotador estaria divulgando sorrateiramente dados mentirosos sobre queimadas na Amazônia.

"É alguém lá de dentro que faz oposição ao governo", acusou Mourão. "Eu estou deixando muito claro isso aqui. Quando o dado é negativo, o cara vai lá e divulga. Quando é positivo, não divulga". Mourão mencionou um exemplo: "Recebo relatório toda semana. Até dia 31 de agosto, tínhamos 5 mil focos de calor a menos do que 31 de agosto do ano passado, entre janeiro a agosto."

Diante de uma meia verdade, o vice-presidente citou justamente a parte que é mentirosa. De fato, o Inpe registrou uma queda no número de focos de incêndio na Amazônia. Entretanto, os dados de Mourão não batem com a realidade. Houve cerca de 44 mil pontos de queimada na Amazônia entre janeiro e agosto de 2020. Isso corresponde a 2,8 mil pontos a menos do que fora registrado no mesmo período em 2019 —não 5 mil a menos, como alegara Mourão.

Para complicar, os dados que Mourão cita como se fossem sigilosos estão, na verdade, disponíveis no site do Inpe, ao alcance de alguns cliques. Não faria sentido que um hipotético sabotador desperdiçasse tempo e energia para vazar o que já é público.

Mourão virou chefe do Conselho da Amazônia para colocar sua experiência amazônica e sua autoridade a serviço do combate ao desmatamento e às queimadas. Não está resolvendo.

No limite, assim como há a Rua Voluntários da Pátria, o vice-presidente da República pode reivindicar que alguma outra passe a se chamar, inversamente, de Rua Traidores da Pátria. Mas o combate às queimadas exige dinheiro, mão de obra, dedicação e compromisso com a transparência.

Atribuir o fracasso a imaginários oposicionistas infiltrados pode servir para muita coisa, menos para apagar incêndios.

O pesquisador Gilberto Camara, diretor do Grupo de Observações da Terra (GEO, na sigla em inglês) e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), rebateu acusações do vice-presidente.

“Bom dia, @GeneralMourao. Primeiro: não faço oposição ao governo, defendo o Brasil tanto quanto você. Segundo: não trabalho mais no INPE. Terceiro: em Ciência, quem tem cinco estrelas sou eu”, escreveu Camara, no Twitter.

A destruição ambiental no Brasil tem sido registrada também por outras entidades. Segundo a Global Forest Watch, que mantém uma plataforma online de monitoramento de florestas, o Brasil foi responsável pela destruição de um terço de todas as florestas tropicais virgens desmatadas no planeta em 2019 — foram 1,3 milhão de hectares perdidos.

Recado bem dado

No último dia 16, oito países europeus enviaram uma carta aberta ao vice-presidente, para protestar contra a política ambiental brasileira. Os países afirmam que nos últimos anos o desmatamento aumentou no Brasil em ritmo alarmante e que estão "profundamente preocupados" com os efeitos dessa destruição para o desenvolvimento sustentável do país.

A carta foi enviada pelos países que participam da declaração de Amsterdã, uma parceria entre nações para promover sustentabilidade e cadeias de produção de commodities que não cause a destruição de florestas. Participam Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Dinamarca, Noruega, Países Baixos e Bélgica.

"Durante muito tempo o Brasil liderou a redução do desmatamento na Amazônia através do estabelecimento de instituições científicas independentes que garantem monitoramento rigoroso e transparente, de agências de controle competentes e do reconhecimento de territórios indígenas. Nos últimos anos, no entanto, o desmatamento tem crescido em ritmo alarmante, como foi documentado pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)", diz a carta.

Questionada internamente por entidades científicas, ambientalistas e até pelo Ministério Público, a política ambiental do governo é o principal ponto mencionado pela carta dos países da declaração de Amsterdã.

Eles afirmam que as preocupações com a situação ambiental no Brasil atingem consumidores, negócios, investidores e a sociedade civil na Europa.

"Na Europa, existe um legítimo desejo de que os alimentos à disposição sejam produzidos de forma justa, ambientalmente segura e sustentável", afirma a carta. "Fornecedores, comerciantes e investidores estão respondendo (à essa preocupação) incorporando esse desejo em suas próprias estratégias corporativas."

O desmatamento no Brasil está tornando cada vez mais difícil para que empresas e investidores mantenham seus critérios de sustentabilidade, diz a carta.

"Nossos esforços coletivos para gerar mais investimento financeiro em produção agrícola sustentável (…) também poderia dar apoio ao crescimento econômico brasileiro", afirmam os países. "No entanto, já que os esforços europeus buscam formar cadeias de produção livres de desmatamento, a atual tendência de desmatamento no Brasil está tornando cada vez mais difícil para que empresas e investidores mantenham seus critérios de sustentabilidade."

"No passado, o Brasil mostrou que é capaz de expandir a produção agrícola ao mesmo tempo em que reduz o desmatamento", também afirma o documento.

As nações que assinam o documento afirmam que "esperam um comprometimento renovado e firme do governo do Brasil para reduzir o desmatamento que seja refletido em ações reais e imediatas".

Os países afirmam também que estão prontos para discutir formas de ajudar o Brasil a melhorar a sustentabilidade e dar suporte a um "setor agrícola sustentável" no país.

Segundo Mourão, a carta foi tratada em reunião dele com os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Tereza Cristina (Agricultura). Mourão disse que o Itamaraty deve procurar o embaixador da Alemanha para conversar sobre o posicionamento dos oito países. Ele também informou que o governo brasileiro vai organizar uma viagem de embaixadores à Amazônia.

"A decisão é que o Itamaraty vai conversar com o embaixador Alemão. Na carta, eles colocam os representantes deles à disposição para o diálogo, daí nós estamos planejando aquela viagem, que já falei para vocês a Amazônia, vai ser feita no final de outubro. Então, é isso que debatemos ali", afirmou o vice-presidente.

Em uma conferência virtual promovida pelo Núcleo de Estudo Luso-Brasileiro (Nelb), Mourão defendeu a atuação do governo brasileiro na preservação e desenvolvimento da Amazônia.

O vice-presidente disse que o governo trabalha para apresentar ao mundo a complexidade da Amazônia e que adota medidas de combate ao desmatamento ilegal e as queimadas, como a Operação Verde Brasil 2, executada pelas Forças Armadas.

Segundo Mourão, o Brasil não esconde a situação da Amazônia, mas não aceitar narrativas “simplistas” ou "distorcidas". Ele afirmou que os crimes ambientais prejudicam a imagem do país e atrapalham negócios.

"O desmatamento e as queimadas denigrem imagem internacional do Brasil e afetam os mais diferentes setores da economia, prejudicando nossa capacidade para exportar e atrair investimentos. Os crimes ambientais deixam nosso país vulnerável a campanhas difamatórias, abrindo caminho para que interesses protecionistas levantem barreiras comerciais injustificáveis contra as exportações do agronegócio" disse Mourão.

Para o vice-presidente, o Brasil é uma potência agroambiental e o setor deve demonstrar que segue a legislação ambiental do país, considerada por ele uma das mais rigorosas do mundo.

“Nossa procura pelo apoio dos investidores privados, que tanto pressionam, colocam o país muitas vezes em uma situação de vilão ambiental, que nós em absoluto somos. Essa hora que buscamos apoio desses grupos de modo que consigamos financiar essas ações", disse.

Mourão ainda declarou que a União Europeia é um parceiro importante na área ambiental e que o acordo verde europeu "pode vir a se somar de maneira positiva aos vários projetos que já temos com países do bloco na área de sustentabilidade".

Pra europeu ver

A viagem proposta por Mourão deverá acontecer no final de outubro. “Para não ficar uma coisa tendenciosa”, segundo o general, serão também convidados embaixadores “de outros lugares” que não criticam tanto a política ambiental brasileira, ou a falta de uma.

É razoável imaginar que o objetivo da viagem planejada por Mourão seja o de convencer os embaixadores, e por meio deles os governos dos seus países, que a Amazônia vai bem, obrigado. Ou que pelo menos não vai tão mal como se diz lá fora. Para isso será decisiva a escolha do pedaço a ser mostrado. Mostre-se um grande pedaço exuberante, e talvez um pedacinho chamuscado.

Se só forem apresentados à Amazônia ainda intacta, os embaixadores poderão achar que foram feitos de bobos, e que a viagem não passou de uma tentativa malsucedida de relações públicas. Como se isso fosse possível… Sairia mais barato então presenteá-los com um vídeo antigo de Jacques Cousteau, o célebre documentarista, cineasta e oceanógrafo francês.

A Amazônia de hoje é retratada em tempo real por dezenas de satélites que giram por aí e que oferecem suas imagens na internet. O que de fato desejam os embaixadores dos países que mais reclamam é que o governo Bolsonaro preserve a Amazônia, um patrimônio mundial e não somente nosso. Acumulam-se os avisos de que a não ser assim, haverá pesadas retaliações econômicas.

Se Mourão, Bolsonaro e associados duvidam, espere para ver só.

E não é só isso

Três a cada quatro europeus querem que o acordo comercial UE-Mercosul seja interrompido se ele contribuir para o desmatamento da Amazônia e outros danos ambientais, de acordo com uma pesquisa do Instituto YouGov.

A pesquisa, realizada na França, Alemanha, Holanda e Espanha, procurou entender a percepção pública sobre o acordo comercial diante da escalada de violência da atual temporada de incêndios florestais na Amazônia.

Dados da França indicam que 78% dos entrevistados veem a necessidade de parar o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul com base no risco de aumento do desmatamento na Amazônia e a perda de vida selvagem. O mesmo percentual é observado entre os espanhóis (78%), enquanto 74% alemães e 71% dos holandeses têm a mesma posição. Os números para pessoas com mais de 55 anos de idade são particularmente reveladores, com 79% dos entrevistados dentro dessa faixa etária nos quatro países sendo a favor da suspensão do acordo comercial se este contribuir para o desmatamento e danos ambientais na Amazônia.

Em média, 70% do público dos países pesquisados também quer que a UE só concorde com acordos comerciais que estejam de acordo com seus compromissos de enfrentar a mudança climática. O percentual é mais alto na Espanha (82%), seguida de França, Holanda e Alemanha (79%, 75% e 72%, respectivamente).

Os resultados da pesquisa, divulgados no último dia 10, vão ao encontro dos números alcançados por uma petição organizada por ONGs, que coletou quase 1,7 milhões de assinaturas desde o começo de agosto em apoio à suspensão do acordo comercial UE-Mercosul enquanto a Amazônia estiver em chamas.

“Este acordo nos faz retroceder”, avalia Martin Konecny, coordenador da Rede Seattle a Bruxelas, uma das organizações que promoveram a petição. “O acordo UE-Mercosul vai exacerbar o desmatamento e a crise climática através da expansão das exportações de automóveis e da expansão das monoculturas de ração e terras de pastagem. Agora é o momento de parar este acordo do passado e iniciar uma cooperação que coloque as pessoas e o planeta em primeiro lugar”.

O acordo da UE com o Mercosul deverá ser apresentado ao Conselho Europeu para discussão ainda este ano. Recentemente, a Alemanha se juntou aos Estados-Membros da UE que já expressaram dúvidas sobre a implementação do acordo comercial com o Mercosul. Após declarações da chanceler Angela Merkel durante uma reunião com jovens ativistas do clima, incluindo a Sra. Greta Thunberg, que fez manchetes, a ministra alemã da Agricultura Julia Klöckner acrescentou que o “acordo comercial não será ratificado a curto prazo” e que a grande maioria dos ministros da agricultura da UE é “muito, muito céptica” em relação ao tratado.

ONGs e parte do agronegócio se unem contra desmatamento na Amazônia

Enquanto a pressão internacional não faz efeito, uma coalizão formada por 230 organizações não governamentais (ONGs) e empresas ligadas ao agronegócio enviou, no último dia 15, ao governo federal um conjunto de propostas para combater o desmatamento na Amazônia.

O documento foi encaminhado ao presidente Jair Bolsonaro, ao vice-presidente Hamilton Mourão, aos ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente, da Economia e da Ciência e Tecnologia, a líderes e parlamentares do Congresso Nacional, do Parlamento Europeu e a embaixadas de países europeus.

O grupo afirmou que uma redução rápida no desmatamento – em alguns meses – é fundamental não apenas por motivos ambientais, mas também econômicos. "Há uma clara e crescente preocupação de diversos setores da sociedade nacional e internacional com o avanço do desmatamento."

De um lado, o grupo conta com organizações de proteção ambiental como WWF Brasil, World Resources Institute (WRI), Imazon e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Do outro, estão algumas das maiores empresas do mundo nos seus setores, como JBS, Marfrig, Amaggi, Bayer, Danone, Natura e Unilever.

O grupo lista seis propostas ao governo Bolsonaro para reduzir de forma rápida e permanente o desmatamento na maior floresta tropical do mundo.

– Retomar e intensificar a fiscalização, com responsabilização dos infratores;

– Suspender registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR) que estejam em florestas públicas, com responsabilização por desmatamentos ilegais;

– Destinar 10 milhões de hectares (100.000km²) à proteção e ao uso sustentável;

– Conceder financiamentos sob critérios socioambientais;

– Obter transparência, junto aos os órgãos de meio ambiente estaduais, nos dados sobre autorização de supressão de vegetação;

– Suspender os processos de regularização fundiária de imóveis com desmatamento constatado após julho de 2008, que é o marco temporal do Código Florestal.

Regularização fundiária

A regularização fundiária, ou seja, a doação ou venda de terras públicas para pessoas que já ocupam essas áreas é tratada como uma das armas no combate ao desmatamento.

Porém, a coalizão defende que terras desmatadas após julho de 2008, marco temporal do Código Florestal, não sejam regularizadas.

No código, aprovado em 2012, ficou definido que terras desmatadas antes de 22 de julho de 2008 teriam anistia sobre o desmatamento, bastando apenas que os proprietários recuperassem a área em prazos de até 20 anos. Após essa data, quem desmatar ilegalmente deverá ser punido pela lei.

"A grilagem de terras públicas é um dos principais vetores de desmatamento. Ao cessar os processos de regularização destas áreas corta-se o principal estímulo à grilagem e, por consequência, ao desmatamento", diz o manifesto.

No ano passado, o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 910, que tratava da regularização fundiária e que permitia que terras ocupadas até 2018 fossem regularizadas.

A MP caducou em maio e, após impasse com um projeto de lei sobre o tema, o governo adotou uma nova estratégia: utilizar uma lei aprovada em 2009 para fazer a regularização fundiária de maneira remota na Amazônia Legal.

A estimativa é que a iniciativa regularize mais de 100 mil propriedades. Porém, os trabalhos ainda não começaram.

Desmatamento histórico

Em agosto, a Amazônia Legal registrou, segundo dados de satélite do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), uma área de 1.359 km² sob alerta de desmatamento.

É o segundo maior número para o mês nos últimos cinco anos, de acordo com o levantamento histórico dos satélites, que são de responsabilidade do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), vinculado ao Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCTIC).

Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) divulgados na terça (15), os alertas de desmatamento no bioma subiram 68% em agosto deste ano na comparação com o ano passado. O instituto afirma que é o pior mês de agosto verificado nos últimos 10 anos de monitoramento.

A Amazônia Legal corresponde a 59% do território brasileiro, e engloba a área de 8 estados (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e parte do Maranhão.


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