19/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Extremistas exploram frustração com coronavírus e impulsionam teorias conspiratórias

Publicado em 15/09/2020 12:00 -

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Os protestos contra as medidas de combate ao coronavírus vêm ganhando força em toda a Europa, alimentadas pelos movimentos das teorias conspiratórias e os grupos extremistas que tratam de explorar os temores e frustrações provocados pela pandemia. Aproximadamente 50.000 negacionistas do coronavírus se reuniram no final de agosto em Berlim. Centenas tentaram irromper no Parlamento alemão enquanto agitavam a bandeira imperial de antes de 1918. No começo de setembro, 13 pessoas foram detidas na praça Callao, em Madri, numa manifestação similar. Os manifestantes antimáscaras portavam cartazes que diziam que “as máscaras matam”, “queremos ver o vírus” e “o que mata é o 5G”.

Para preparar meu novo livro, Going dark – the secret social lives of extremists (“Tornando-se sombrio – a vida social secreta dos extremistas”, inédito no Brasil), me infiltrei por dois anos em uma dúzia de movimentos extremistas: aderi a um grupo de piratas informáticos do Estado Islâmico, me deixei recrutar por neonazistas, assisti a reuniões secretas com nacionalistas brancos para elaborar estratégias e participei de chats com mulheres misóginas. Também entrei nos movimentos conspiratórios que hoje impulsionam os protestos relativos à covid-19. Aprendi que não existe um perfil concreto que seja mais propenso a cair nessas redes: deparei-me com pessoas de todas as faixas etárias, classes sociais e níveis educativos. Entretanto, o que ficou muito claro foi que estamos todos mais suscetíveis a teorias da conspiração e ideologias extremistas quando atravessamos épocas de crise pessoal ou coletiva.

A história mostra que tanto as crises sanitárias como as econômicas são caldos de cultivo ideais para o extremismo, a polarização e as teorias da conspiração. Na Europa do século XIV, a peste negra impulsionou teorias conspiratórias antissemitas, assim como, séculos depois, a Grande Depressão. Agora, confrontamos uma crise ao mesmo tempo sanitária e econômica, e com as redes sociais, que permitem o rápido desenvolvimento de teorias desse tipo. Não é de se estranhar que o resultado seja o que a OMS chamou de “infodemia” sem precedentes: as teorias da conspiração sobre a origem da pandemia se propagam com maior velocidade que o próprio vírus.

Tudo começou em maio de 2020 com uma onda de protestos nos Estados Unidos, em que eleitores de Trump, seguidores do Tea Party, ativistas antivacina, adeptos de teorias conspiratórias, membros do QAnon e milícias de extrema direita se alçaram com o objetivo comum de acabar com o confinamento. A retórica dos manifestantes norte-americanos logo encontrou eco nas manifestações convocadas na Austrália, que mostraram cartazes com slogans similares. Pouco depois começaram as mobilizações contra o confinamento na Europa, com as mesmas táticas e as mesmas ideologias. Na Espanha e Alemanha viram-se manifestantes com cartazes dizendo “Trump 2020”.

Nos protestos recentes de todo o mundo, seja na Europa, Estados Unidos ou Austrália, surgiu uma curiosa coalizão de agitadores de extrema direita, conspiranoicos de extrema esquerda e cidadãos preocupados. Por outro lado, os manifestantes nem sequer se põem de acordo sobre quem é o inimigo: entre os principais bodes expiatórios incluem a OMS, os filantropos que investem em pesquisa, os imigrantes e as “elites judaicas mundiais”. Alguns cartazes negam a existência do vírus, outros afirmam ser ele uma arma biológica chinesa, e outros que é uma tentativa de dominação mundial por parte de Bill Gates; o fato de todas estas teorias contraditórias aparecerem numa mesma manifestação não importa.

Tudo é possível no mundo das teorias da conspiração. A princesa Diana fingiu sua morte e foi assassinada; Bin Laden já estava morto quando as forças especiais norte-americanas atacaram o complexo de Abbottabad em 2011, embora hoje continue com vida. O coronavírus se presta ainda mais ao que os cientistas chamam de “mentalidade da paranoia conspiratória”, porque é um perigo invisível, um gato de Schrödinger: existe e ao mesmo tempo não existe. Mas as consequências materiais das teorias da conspiração são muito evidentes. No Reino Unido, pessoas que atribuem a culpa de tudo à tecnologia 5G atearam fogo a postes de telefonia no país inteiro. Na Alemanha, alguns manifestantes usaram slogans da época nazista, agitaram teorias antissemitas e agrediram equipes de jornalistas. Nos Estados Unidos, manifestantes armados irromperam na Assembleia Legislativa de Michigan.

No período do confinamento, a vida se paralisou para muitos, que começaram a dispor de mais tempo. Consequentemente, os membros da extrema direita e os adeptos das teorias conspiratórias puderam passar dias e fins de semana inteiros na Internet, mobilizando-se e fazendo campanha, enquanto os pesquisadores e as empresas tecnológicas tinham cada vez mais dificuldades para manter o ritmo. Os ativistas aproveitaram os novos medos e as incertezas e preencheram com suas próprias teorias o imenso vazio de informação, a fim de promover suas causas políticas. E cada vez têm mais público, porque todos estamos mais vulneráveis.

Adotar ideias simplistas sobre uma realidade complexa pode ser tentador, sobretudo quando essa realidade é justamente o contrário do que desejaríamos. Os grupos extremistas oferecem um antídoto à insegurança que nos aflige com suas próprias explicações inventadas e aproveitando o chamado “monte da ignorância” descrito no efeito Dunning-Kruger, ou seja, que ter um conhecimento escasso de um tema faz nos sentirmos mais capacitados a falar dele e propor respostas. É difícil reconhecer que neste momento estamos todos mergulhados na ignorância e devemos esperar que a ciência nos mostre o caminho sem saber quanto a solução vai demorar. É compreensível que a paciência de muitos se esgote.

Entretanto, o verdadeiro problema não é a impaciência da população, e sim sua desconfiança. Como demonstro em Going Dark, as redes extremistas e de teorias conspiratórias se dedicaram nos últimos anos a enfraquecer a fé nas instituições oficiais, não só políticas, mas também jornalísticas e, o que é pior, acadêmicas e científicas. Construíram redes mundiais na Internet utilizando os algoritmos do YouTube e Facebook, e agora estão tirando proveito. Quando Donald Trump enfrenta a OMS e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, põe em dúvida a gravidade do vírus, fazem que estes grupos marginais se sintam mais autorizados e lhes proporcionam um alto-falante para suas ideias e suas teorias.

Muitos manifestantes talvez tenham preocupações legítimas, mas estão pondo a si mesmos e a outros em perigo. Sobretudo, podem constituir um grave risco para nossas democracias. A história nos ensina que as ameaças de reelaborar constituições, as agressões a jornalistas e a desinformação sistemática sobre grupos minoritários não são coisas que possamos minimizar. A infodemia, como a pandemia do coronavírus, é um fenômeno global. Devemos abordá-la com uma perspectiva internacional para não acrescentar uma terceira crise mundial: uma crise social.

Julia Ebner – Pesquisadora do Instituto para o Diálogo Estratégico e acaba de publicar ‘Going Dark – The Secret Social Lives of Extremists’


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