25/04/2024 - Edição 540

Mundo

O idiota útil

Publicado em 15/09/2020 12:00 -

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O seguinte trecho foi extraído do livro The Useful Idiot: How Donald Trump Killed the Republican Party with Racism and the Rest of Us with Coronavirus, (O Idiota Útil: Como Donald Trump Matou o Partido Republicano com o Racismo e o Resto de Nós com o Coronavírus, em tradução livre), de S.V. Dáte.

Ninguém pensou que passaria por uma pandemia. A ideia de que Donald Trump seria obrigado a ficar quieto, prestar atenção e tomar decisões racionais que determinariam se centenas de milhares de americanos viveriam ou morreriam não passou pela cabeça daqueles que o colocaram no Salão Oval.

Cada um tinha um motivo para elegê-lo: para os fundamentalistas cristãos, ele prometeu explicitamente nomear juízes federais que todos esperavam há muito tempo para resgatar a cultura antiga da nação. Para Mitch McConnell, uma vitória de Trump, por mais improvável que parecesse, era o único caminho real para garantir que os republicanos mantivessem o controle do Senado e ele próprio continuasse sendo o líder da maioria. E para Vladimir Putin, ter Trump na Casa Branca, por mais improvável que parecesse, seria um sonho transformado em realidade, uma oportunidade de causar estragos em seu adversário de longa data e enfraquecer sua aliança histórica com a Europa Ocidental.

Putin, é claro, não estava nem um pouco interessado no que a ascensão de Trump poderia significar para os americanos no caso de uma calamidade real. Se foram burros o suficiente para votar nele, bem, mereciam. Em todo caso, não era problema dele.

Quanto aos seus partidários americanos, talvez tenha se passado tanto tempo desde 11 de setembro de 2001 que a ideia de uma emergência nacional se tornou uma memória distante. Talvez a competência discreta com que a equipe de Barack Obama lidou com a pandemia de gripe de 2009, e depois com o surto de Ebola na África Ocidental de 2014, tenha diminuído a ameaça que um simples vírus poderia representar.

Por alguma razão, mesmo enquanto acompanhavam a confusão, o caos e os absurdos produzidos pelo então candidato Donald Trump durante um ano e meio, as consequências de uma crise real que exigisse a liderança do presidente Donald Trump nunca realmente passou pela cabeça deles.

É verdade que existia, e continua existindo até hoje, uma parcela significativa de eleitores republicanos que acreditavam genuinamente que o Trump que viam em O Aprendiz era o verdadeiro Donald Trump. Que ele era um bilionário de verdade, que cresceu com seus próprios esforços e inteligência, que era capaz de tomar decisões racionais e importantes com base nos fatos apresentados a ele.

No entanto, essa desculpa não funciona para republicanos como Mitch McConnell e os candidatos ao Congresso que tiveram a oportunidade de falar com ele pessoalmente. Um importante membro do Comitê Nacional Republicano, depois de seu primeiro encontro frente a frente com Trump, a dois meses da eleição de 2016, me disse: “Nosso candidato é louco.”

A propósito, a opinião dele não era minoritária. A incoerência, o temperamento, a ignorância inacreditável e a impulsividade de Trump eram bem conhecidos entre o alto escalão da máquina republicana. Mas, para eles, era simplesmente um desafio a ser superado, outro obstáculo que o destino havia colocado no seu caminho até o Santo Graal dos juízes, da redução de imposto e da recuperação de normas regulatórias antigas. Nunca ouvi qualquer preocupação de que talvez o partido estivesse trabalhando para colocar no poder um idiota útil que realmente é um imbecil, sem as características de liderança que normalmente esperamos encontrar em alguém que pretende se tornar o principal executivo de uma superpotência mundial.

Foi uma tremenda irresponsabilidade do Partido Republicano com o país. Em nosso sistema bipartidário, ambos têm o dever de eliminar os candidatos que não apresentam as características básicas de um comandante supremo e, consequentemente, que não têm competência para gerenciar uma crise. Em 2015, e nas eleições primárias de 2016, ficou muito claro que Donald Trump não convencia, não para desempenhar essas funções, mas, mesmo assim, nem os outros candidatos nem a liderança do partido tomaram medidas efetivas para garantir sua derrota. A verdade é que houve alguns avisos, como o de Jeb Bush, que chamou Trump de o “candidato do caos” que poderia ser tornar o “presidente do caos”. Por outro lado, Ted Cruz elogiou Trump por quase um ano e se recusou a criticá-lo na esperança de um dia herdar seus eleitores. Quando mudou de ideia, Cruz foi visto como invejoso. Esse cinismo e essa encenação nos colocaram onde estamos.

Os republicanos pagarão um preço alto por essa negligência, e isso já foi visto nas eleições intercalares, com os democratas reconquistando a Câmara em 2018 e vencendo embates improváveis, como uma eleição especial para uma cadeira no Senado para o Alabama em 2017 e o governo do Kentucky em 2019. Não sabemos ao certo se os republicanos sofrerão uma derrota na disputa presidencial em novembro de 2020 ou quatro anos depois. Trump está apostando não apenas seu próprio futuro, mas também o do partido de que se apossou por conta da decadente população do ódio: homens brancos sem diploma universitário, oriundos principalmente do sul dos EUA. Mas essa aposta não é vencedora.

Além do fracasso do Partido Republicano em proteger o país, temos o fracasso dos americanos comuns. Trump não se elegeu sozinho e, embora tivesse ajuda direta da Rússia e ajuda não intencional do diretor do FBI, no fim das contas, foram os americanos que votaram nele.

Em uma democracia representativa, a responsabilidade final é dos eleitores. Sim, o presidente falhou miseravelmente ao lidar com a pandemia: mentiu ao dizer que tinha impedido o vírus de entrar no país e ao afirmar que a situação não era tão ruim. Além disso, apoiou veementemente um tratamento não comprovado e desencorajou o uso de máscaras. Por fim, ficou entediado e deixou o assunto de lado. O presidente não poderia ter lidado com a situação de maneira mais inadequada, mesmo que a intenção fosse nos prejudicar. Sua falta de competência é responsável pelo estado de saúde crítico de centenas de milhares, ou até milhões, e pela morte de outras dezenas de milhares, o que poderia ter sido evitado, mas nós também somos responsáveis.

Quando todos os números forem contabilizados ao fim da pandemia de coronavírus, também será preciso incluir outro número: os 62.984.828 eleitores que, em 8 de novembro de 2016, permitiram que essa catástrofe acontecesse.

Na verdade, ninguém deveria ter ficado surpreso com a forma desastrosa com que Trump lidou com a calamidade vinda em janeiro de 2020. Ele mesmo havia nos dado um sinal claro apenas alguns meses antes quando fez alarde sem nenhum motivo real.

Em setembro de 2019, Donald Trump semeou o caos entre os americanos que tentavam se planejar para a possível chegada de um grande furacão na costa sudeste. Enquanto os residentes da Flórida, da Geórgia e das Carolinas acompanhavam ansiosamente a trajetória projetada do furacão Dorian, Trump lançou sua própria previsão no Twitter, criando mais alarde:

“Além da Flórida, a Carolina do Sul, a Carolina do Norte, a Geórgia e o Alabama provavelmente serão atingidos com (muito) mais força do que o previsto. Parece que é um dos maiores furacões de todos os tempos. Já é categoria 5. TENHAM CUIDADO! QUE DEUS ABENÇOE A TODOS!”

Quase imediatamente, os telefones começaram a tocar incessantemente no escritório do Serviço Nacional de Meteorologia em Birmingham, com residentes em pânico ligando para perguntar se era verdade que o furacão Dorian cruzaria a Flórida e os atingiria. Os meteorologistas, que no momento não sabiam de onde vinha a desinformação, publicaram um tweet afirmando que o Alabama não estava no caminho do Dorian e que todos deveriam se acalmar.

Essa confusão se estendeu por semanas. De um lado, a Casa Branca e vários apoiadores de Trump insistiam que o presidente estava certo e que o Alabama estava em perigo quando ele publicou o tweet, que ia de encontro à opinião dos meteorologistas e especialistas em tempestades tropicais do Centro Nacional de Furacões, que indicavam que a tempestade ficaria paralela à Costa Leste e seguiria para o mar. Naquela época, o ponto alto de toda essa discussão foi um mapa de uma semana atrás em que Trump desenhou um semicírculo com uma caneta preta para incluir o Alabama.

A desculpa dos defensores do presidente foi a mesma de sempre: é apenas o Trump sendo Trump. O que era verdade e, embora subestimado na época, totalmente aterrorizante.

Ele ignorou deliberadamente o parecer dos especialistas em um caso de vida ou morte. Trump disse que, por ser o presidente dos Estados Unidos, a sua opinião sobre a rota da tempestade e sobre as pessoas que corriam risco de vida iminente era tão importante quanto a dos profissionais que estudam há anos os ciclones do Atlântico. Foi uma piada. O mais impressionante é que sua equipe achou tudo normal. Inclusive, um assessor tinha em sua mesa uma impressão do famoso mapa, como uma lembrança do que ele considerou ser apenas uma grande confusão de Trump.

O episódio acendeu todos os sinais de alerta, porque um furacão é uma ameaça que evolui lentamente e pode ser observada por meio de imagens de satélites meteorológicos e outros dados disponíveis publicamente. Além disso, o Centro Nacional de Furacões e o Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos continuaram trabalhando, apesar da intromissão do presidente. O que Trump fez foi extremamente perigoso, mas, dado o histórico de seus primeiros dois anos e meio no cargo, apenas os tolos o suficiente que ainda dão ouvidos a ele foram afetados negativamente. O resto ouviu as orientações do Centro de Furacões e dos funcionários de gerenciamento de emergências e colocaram em prática.

O maior risco, que ficou óbvio com a farsa do mapa do furacão, era a possibilidade de uma ameaça que realmente exigisse uma resposta competente do presidente. Trump não conseguiu administrar adequadamente a chegada de um furacão, algo que normalmente acontece várias vezes por ano, e tentou coagir suas agências executivas a mudar a história em uma tentativa de apoiar seu tweet ridículo. Então, como ele poderia administrar uma ameaça com a qual somente o presidente poderia lidar?

Na verdade, mencionei essa possibilidade em um longo artigo que escrevi, publicado em 15 de janeiro de 2020, sobre a desonestidade absoluta de Trump, e ponderei também sobre a chegada de uma doença fatal.

Infelizmente, apenas uma semana depois, a América começou a receber a resposta para essa pergunta.

Agora que a pandemia perdura sem dar sinal de que está indo embora e o número de mortos nos EUA se aproxima de 200 mil, fica fácil colocar toda a culpa em Donald Trump. Afinal de contas, ele tomou muitas decisões erradas nas primeiras semanas do surto, como ignorar os avisos da comunidade científica dos EUA, minimizar a ameaça e tomar medidas que poderiam enfurecer o ditador da China e colocar em risco o importante acordo comercial que ele acreditava ser necessário para ganhar um segundo mandato. Ele até se referiu às preocupações sobre a pandemia como “uma farsa” em um dos comícios de campanhas, sinalizando à sua base eleitoral que as autoridades de saúde pública não conseguiam contrapor essa visão com eficácia.

O tratamento incorreto da doença, por sua vez, destruiu a economia forte que, por três anos, Trump vinha alegando ser um feito dele. Na verdade, essa foi uma realidade herdada de Barack Obama, com taxas de emprego e PIB muito semelhantes aos do segundo mandato de seu antecessor. A crise gerada está disputando seriamente com a Grande Depressão em termos de desemprego. Com uma resposta competente à pandemia, muitas das catástrofes econômicas associadas também poderiam ter sido evitadas.

No entanto, Donald Trump não se elegeu sozinho, ele teve a ajuda de 63 milhões de americanos que entraram em suas zonas eleitorais e decidiram colocar um homem sem seriedade e caricato no cargo mais importante do país.

Como as páginas a seguir irão detalhar, houve uma série de fatores que definiram essa eleição. Vladimir Putin decidiu que a melhor maneira de enfraquecer os Estados Unidos em 2016 seria arruinar a candidatura da ex-secretária de Estado Hillary Clinton nas primárias democratas e apoiar um apresentador de reality show nas disputas republicanas. Ele não poderia imaginar que o partido de 162 anos, que, no passado, se orgulhava de seu realismo pragmático, não conseguiria detê-lo. O diretor do FBI, James Comey, decidiu reabrir uma investigação contra Hillary Clinton no final de outubro sobre o uso indevido de um servidor de e-mail privado. Ele nem imaginava que a votação estadual tinha sido cancelada e que a vitória fácil de Hillary era uma ilusão e que suas duas cartas ao Congresso colocariam a eleição no fio da navalha.

Olhando para trás, parece estranho e até fascinante quanto tempo, energia e preocupação foram dedicados à investigação dos e-mails de Hillary, se levarmos em conta a corrupção escancarada de Trump nos últimos três anos. O desvio de milhões de dólares da campanha e do contribuinte para seu próprio caixa, a oferta de cargos na casa Branca à filha e ao genro, o uso de sua equipe e seu procurador-geral para destruir as investigações sobre si e suas empresas, a tentativa de extorsão de um líder estrangeiro para prejudicar o rival político que ele mais temia, a busca por um acordo comercial com um ditador para ajudá-lo a ganhar a eleição, o uso deliberado do seu cargo e de funcionários da Casa Branca para encenar comícios de campanha, e a lista é interminável.

O fato é que esse comportamento não é nenhuma surpresa. Ele viveu toda a vida dessa maneira, e as evidências eram claras — dos seus negócios com a máfia à maneira como ele usava sua “instituição de caridade” como um fundo secreto pessoal, usado para comprar um capacete de futebol americano autografado por Tim Tebow de 12 mil dólares e até pagar as taxas de escoteiro do filho no valor de sete dólares, por exemplo. Sessenta e três milhões de americanos sabiam disso ou optaram por não saber e decidiram aceitar.

Um desses eleitores chegou a trabalhar com Trump por anos e conhecia muito bem sua desonestidade e deslealdade. Ele me disse que não se importava, que o sistema precisava ser renovado, e ele queria que Trump entrasse e fosse como um elefante em uma loja de cristais.

Hoje, essa pessoa ocupa um cargo no alto escalão do governo.

O modo como Trump está lidando com a pandemia também era previsível.

Para começar, ele participa de vez em quando de reuniões com a Agência Central de Inteligência. George W. Bush e Barack Obama participavam dessas reuniões todos os dias pela manhã, enquanto Trump passa as primeiras horas do dia assistindo à televisão e tweetando sobre o que acabou de ver. Em 2020, ele participou de apenas uma ou duas reuniões por semana,

ou seja, quando os especialistas estavam tentando dizer a ele que algo perigoso estava acontecendo na China e que precisávamos nos preparar, Trump não se deu ao trabalho de ouvir. Os principais funcionários de saúde recebiam notícias alarmantes durante o feriado de Ano Novo sobre um surto semelhante a uma pneumonia em Wuhan enquanto Trump estava jogando golfe. Quando o secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos finalmente conseguiu contatar o presidente por telefone quase três semanas depois para falar sobre o vírus, Trump esbravejou, mudou de assunto e falou sobre a repercussão da regulamentação dos cigarros eletrônicos que poderia prejudicá-lo.

Na verdade, o único objetivo de Trump era, e continua sendo, a reeleição. Nada mais importa, e é por isso que milhares de americanos morreram. Se qualquer outro ser humano adulto fosse presidente, o número de mortes seria muito menor.

Em janeiro, a conquista de um segundo mandato significaria a assinatura do “acordo comercial” com a China. Nenhuma palavra indelicada poderia ser dita sobre o país ou seu ditador. Não importa se não era realmente um acordo de livre comércio, apenas um desfecho parcial da guerra comercial que ele havia iniciado. Para Trump, esse acordo era tudo. Ele fez vários elogios a China e a Xi Jinping por sua “transparência” em relação ao vírus, embora a realidade fosse bem diferente.

Em fevereiro, após a assinatura do acordo comercial, Trump viu a maior preocupação com o vírus como um ataque direto à sua candidatura à reeleição. Ele se recusou a levar a sério a pandemia, mesmo quando a Itália e o Irã haviam sido gravemente afetados. Quando um funcionário do alto escalão do CDC alertou que a vida das pessoas estava prestes a mudar drasticamente, Trump ficou louco de raiva por conta da venda desenfreada no mercado de ações que veio em consequência disso. Ele disse aos americanos via Twitter que milhares morrem de gripe todos os anos e os incentivou a comprar ações. Na sala de reuniões da Casa Branca, Trump afirmou que fez um trabalho fantástico e que os 15 casos diagnosticados até o momento logo cairiam para zero. Em um de seus comícios, ele chegou a afirmar que o vírus havia se tornado a última “farsa” de seus críticos e o classificou na mesma categoria da suposta ajuda russa que havia recebido para vencer o pleito de 2016 (o que, de fato, é verdade) e o impeachment por ter extorquido a Ucrânia para obter ajuda e vencer as eleições de 2020 (o que também é verdade).

Depois de parecer levar a sério a ameaça por algumas semanas na segunda quinzena de março, Trump se cansou rapidamente e começou a exigir que os estados “reabrissem” suas economias para que ele pudesse voltar à estratégia de campanha planejada, ou seja, assumir o crédito pela economia deixada por Obama.

Trump repetiu várias vezes a publicação que fez no Twitter no dia 22 de março, em letras maiúsculas: “NÃO PODEMOS DEIXAR A CURA SER PIOR DO QUE A PRÓPRIA DOENÇA”.

Na verdade, reler suas várias declarações ao longo da pandemia é receita perfeita para entrar em choque. “O coronavírus está sob controle nos EUA”, “É uma gripe, é só um tipo de gripe”, “Acho que estamos fazendo um ótimo trabalho”, “Vai desaparecer, um dia vai desaparecer como um milagre”, “Fiquem calmos, vai passar”, “Diminuam o número de testes, por favor”.

E, é claro, a declaração que poderia facilmente se tornar o epitáfio de sua administração: “Eu não assumo responsabilidade alguma”.

Se cientistas desumanos conspirassem para inventar um presidente pior para nosso país em uma época de crise, teriam que se dedicar muito para superar Donald Trump. Sua ignorância, desonestidade e teimosia são uma combinação tóxica mesmo em tempos de bonança. Muitos de ambos os partidos presumem que, quando tudo acabar, os erros mais escandalosos nas áreas de política comercial, aliança da OTAN, mudanças climáticas e meio ambiente podem, com um certo trabalho, ser compensados.

O mesmo não pode ser dito para todos os americanos que estão morrendo desnecessariamente porque um dos piores seres humanos da política, um homem que tem mostrado que sua falta de humanidade se equipara apenas à sua corrupção deliberada, se tornou nosso presidente.

Talvez possamos tirar algo de bom disso tudo, talvez esta dura lição traga de volta a ideia de que a presidência não é um jogo, que o bom senso, a maturidade e a inteligência da pessoa que ocupa esse cargo são importantes, independentemente das visões de mundo da maioria das pessoas.

Há uma parcela da população que insiste que o presidente deve ser “acessível”, alguém com quem eles gostariam de tomar uma cerveja. Outros exigem que o candidato corresponda completamente à sua visão do futuro, das políticas que desejam ver implementadas e, na ausência de uma pessoa com essas características, preferem não votar. Os eleitores bem mais jovens acreditam que têm o direito fundamental de exigir um candidato que os inspire e, na falta dessa inspiração, também preferem não votar.

Talvez a eleição de um vigarista descarado e deliberadamente corrupto, cujo egoísmo e ignorância causaram o adoecimento e a morte de tantos de seus conterrâneos americanos, ajude essas pessoas a refletir e amadurecer.

Não escolhemos um cirurgião cardíaco, um contador ou um piloto de avião usando esses critérios, e o trabalho deles não é tão fundamental para o bem comum quanto o do presidente dos Estados Unidos. Claro, seria bom para um presidente ser cativante e prático o suficiente para parecer acessível, mas essas características não são tão importantes quanto a competência. Não há nada de errado em apoiar um candidato que compartilha suas ideias e ideais, mas fazer grandes mudanças leva tempo e, em uma crise, um ideólogo pode ser a pior personalidade para se ter no comando. O cargo exige alguém disposto a entender o mundo como ele é, em vez de insistir em ver o mundo como ele acha que deveria ser.

Quanto à inspiração, não escolhemos o cirurgião mais engraçado ou o contador que conta as melhores piadas. Por que procuramos essas características em um líder?

Essa ideia não é nova, as pessoas não votaram em John F. Kennedy porque acreditavam que ele traria sabedoria e equilíbrio ao Salão Oval. A equipe de Ronald Reagan aprendeu com Kennedy e transformou toda a sua campanha e grande parte de sua presidência em uma produção de cinema. George H.W. Bush teve, sem dúvida, a experiência mais relevante entre os presidentes e governou com uma competência discreta, Clinton o venceu por parecer mais simpático.

No entanto, nos três casos, os candidatos vencedores demonstraram interesse em tratar o trabalho de forma séria durante as campanhas, e foi essa postura que se viu enquanto ocuparam o cargo. Por outro lado, Trump, durante a campanha, mostrou que não tinha conhecimento de como o mundo funcionava e deixou claro que não tinha interesse em aprender. Sua opinião era a de que tudo era fácil e que qualquer idiota daria conta do recado. Obviamente, ele estava errado. 

No entanto, Donald Trump não se elegeu sozinho, ele teve a ajuda de 63 milhões de americanos que entraram em suas zonas eleitorais e decidiram colocar um homem sem seriedade e caricato no cargo mais importante do país.

Esqueça todas as promessas absurdas e impossíveis que ele fez. A única promessa real que grande parte da sua base aliada apoiava era a de trazer de volta a América de 1950, o que eles sabiam que era impossível, mas não importava: o importante era que Trump estava disposto a fazer essa promessa e a passar por cima de tudo para deixar “o sistema” louco.

É verdade que Trump não ganhou a maioria dos votos expressos. É quase certeza que sua vitória teve a ajuda russa e das cartas de Comey reabrindo e fechando novamente a investigação sobre Hillary nos dias finais da campanha. Ainda assim, naquele dia, 46% dos americanos votaram em alguém que não era minimamente qualificado para o cargo e, quase quatro anos depois, esse fato continua sendo surpreendente.

Obviamente, muitas dessas pessoas talvez não fossem informadas ou cultas o suficiente e acreditavam que Trump era realmente o empresário esperto e inteligente que ele aparentava ser na televisão. E quanto aos demais eleitores? Eles sabiam quem era Trump, mas votaram nele mesmo assim? Essas pessoas não se dão conta da importância desse cargo?

Talvez a pandemia de coronavírus possa ensinar a lição de que, antes de mais nada, a pessoa eleita para ocupar o Salão Oval tem que ser capaz de lidar com eventos realmente graves, coisas que não se pode prever. As companhias aéreas não pagam duzentos mil dólares por ano aos pilotos para pousar os aviões em dias claros e ensolarados com pouco vento. Eles são bem pagos por seus anos de experiência, por todo o treinamento que receberam e recebem, pelo dia em que o sistema hidráulico falha e eles perdem um motor por causa de uma colisão com pássaros na aproximação final dentro de uma tempestade, com um vento lateral forte. A propósito, ninguém pergunta se o piloto é alguém com quem eles gostariam de tomar uma cerveja mais tarde ou quais são suas opiniões sobre o sistema de saúde público.

Como ficou bem claro agora, a liderança é muito importante.

O Saturday Night Live fez uma esquete fantástica no final dos anos 1980 retratando Ronald Reagan como um idoso trêmulo e desatento que sorri e murmura clichês sem sentido para as câmeras de uma imprensa que exigia respostas sobre o escândalo Irã-Contras… e que, nos bastidores, se transformava em um gênio astuto que cuidava pessoalmente de cada detalhe.

Basicamente, foi assim que os apoiadores de Trump no Partido Republicano o retrataram durante a eleição de 2016 depois de o escolherem como candidato. Foi tudo encenação. Os discursos desequilibrados, os tweets constantes, as mentiras ridículas tinham como objetivo atrair um segmento da população que há muito tempo estava insatisfeito com a política republicana tradicional. Eles prometeram que, nos bastidores, ele era uma pessoa diferente, uma pessoa ponderada e equilibrada que buscava ouvir pontos de vista divergentes antes de tomar decisões. Essa faceta seria revelada caso ele vencesse a eleição e, principalmente, porque ele conhecia a pressão do cargo.

Nitidamente, essas afirmações eram mentirosas. Para quem realmente não conhecia Trump muito bem, eram ilusões.

Não há dúvida de que Trump pode, às vezes, se comportar como um adulto. Mas, como vários relatos de pessoas que o conhecem de verdade confirmam o que vemos e ouvimos, esse comportamento ponderado ocasional é pura encenação.

O verdadeiro Trump é aquele que berra furiosamente com seus críticos e oponentes, posta teorias da conspiração absurdas no Twitter, que pede conselhos freneticamente a seu círculo de bajuladores, que admira abertamente ditadores em todo o mundo e ataca e insulta líderes eleitos democraticamente, que se recusa a assumir a responsabilidade por qualquer uma de suas falhas e que está disposto a fazer qualquer coisa, como extorquir um país estrangeiro, implorar ao ditador chinês, incitar racistas declarados e abalar a legitimidade da próxima eleição, para manter o poder.

As responsabilidades do cargo não pesam nem um pouco sobre ele. Compare as fotos de Bill Clinton, dos Bushes ou de Obama antes de assumirem o cargo e quatro anos depois. Observe o cabelo grisalho, as rugas de preocupação e o cansaço. Agora olhe para Trump antes e hoje. Talvez ele esteja mais inchado, mas o rosto não mudou.

Há décadas ele é um valentão do ensino médio com o autocontrole de uma criança. A única coisa com que Donald Trump se importava antes de assumir o cargo era com ele próprio, e isso não mudou nesses três anos e meio.

O que realmente está faltando na minha pesquisa de vários anos do universo de Trump é uma defesa enfática, ou até mesmo discreta, de qualquer evidência de decência humana em sua personalidade. As pessoas defendem seu nacionalismo “econômico”. Elas dão de ombros e apontam os juízes que ele nomeou e os regulamentos que ele revogou. Outros mencionam o corte de impostos e como sua situação financeira pessoal melhorou. Um assessor da Casa Branca me disse que nenhum outro republicano eleito em 2016 teria implementado tantas políticas conservadoras quanto Trump. Ninguém se preocupa em vender a ideia de que ele é incompreendido e de que, no fundo, é um bom ser humano. Ninguém.

Essa visão não se restringe a quem trabalha com Trump. Nos últimos quatro anos, entrevistei vários apoiadores republicanos que, após apontar mais uma vez a nomeação dos juízes, o corte de impostos e a desregulamentação, afirmaram que gostariam que Trump ficasse mais calado e publicasse menos tweets, o que é, na verdade, uma admissão reveladora do que realmente pensam de Trump como pessoa. Seus tweets e comentários improvisados, não os discursos preparados que as pessoas escrevem para que ele leia, são o reflexo mais puro da sua verdadeira essência. Seus apoiadores dizem que gostariam que ele escondesse essa verdade porque sabem exatamente o tipo de pessoa que ele é e porque sabem como ele é visto pelas pessoas normais com padrões básicos de conduta.

Surpreendentemente, esses fatos costumam ser esquecidos em todas as conversas sobre o presidente. Sessenta e três milhões de americanos, e as peculiaridades do Colégio Eleitoral, colocaram no cargo mais poderoso do mundo uma pessoa desprezível. Donald Trump não trata bem as pessoas e enganaria você no momento em que botasse os olhos em você. Donald Trump é rancoroso, mesquinho, desonesto e estúpido. Todas essas características estavam bem à mostra, mas, mesmo assim, as pessoas votaram nele.

Isso diz muito sobre nós, e o que diz não é nada bom.

A democracia não é fácil.

Esse é um aprendizado que devemos tirar desse período de governo Trump: a democracia não é fácil, porque, para muitas pessoas do planeta e deste país, a liberdade não é fácil. Mas, para muitas outras pessoas, isso pode ser difícil de entender.

Enquanto os que vivem e trabalham no mundo das ideias e têm tempo e predisposição para refletir sobre grandes conceitos e possibilidades infinitas, muitos de nossos irmãos e irmãs lutam apenas para sobreviver a cada dia. Às vezes, me pergunto como conseguem fazer isso literalmente todos os dias. Seja pela ansiedade, depressão ou pelos efeitos das drogas e do álcool, muitas pessoas só querem um pouco de cuidado e alguém que as oriente.

Não é à toa que religiões com regras rígidas sobre como viver a vida tenham tanto apelo e estejam crescendo tão rapidamente. Quanto mais regras, melhor.

Essa teoria é a essência dos “populistas”, que entendem que um grande número de pessoas aceita muito bem um líder forte que promete ordem em um universo que parece não ter nenhuma. Em sua candidatura de 2016, o ex-senador da Pensilvânia, Rick Santorum, entendeu isso, embora a maioria do seu partido não entendesse. A maior parte da população não é composta por empresários que sonham em abrir seu próprio negócio, mas sim por pessoas que só querem um emprego estável por cinco anos para comprar uma casa em 20 anos e criar os filhos, exatamente como seus pais fizeram.

Não é de se admirar que um demagogo covarde como Donald Trump pudesse tirar vantagem dessas inseguranças e dizer a essas pessoas exatamente o que elas queriam ouvir.

Este sempre foi o perigo inerente ao experimento americano: o autogoverno exige o envolvimento dos cidadãos, bem como o respeito fundamental aos direitos da minoria. Como as coisas raramente saem como planejado, os redatores da Constituição inventaram o federalismo e os freios e contrapesos. Além disso, o país foi abençoado com uma enorme extensão territorial e uma burocracia proporcional ao seu tamanho. É difícil instituir mudanças em grande escala de qualquer tipo, seja qual for a orientação. As pessoas que exigem ações em relação ao clima podem comprovar esse fato. Os defensores do sistema de saúde universal também vivem isso há décadas.

Apesar de tudo, permanece o fato de que destruir é mais fácil do que construir, como Donald Trump demonstrou várias vezes. Com 30% dos cidadãos interessados em manter sua supremacia cultural e uma parcela grande o suficiente da ala republicana disposta a aceitar termos diabólicos para defender seus próprios interesses, ele saiu impune.

Depois de três anos e meio, podemos ver o efeito disso tudo no nosso país. O que acontecerá se esses três e meio se tornarem oito?

 Este texto é um capítulo do livro de S.V. Date, foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.


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