29/03/2024 - Edição 540

Poder

FHC reconheceu a ruína que criou

Publicado em 11/09/2020 12:00 -

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Com sete palavras, Fernando Henrique Cardoso reconheceu a ruína política que provocou buscando a própria reeleição: “Devo reconhecer que historicamente foi um erro”.

Foi mais que um erro, foi um crime, e ele sabia disso desde a primeira hora, há 25 anos.

Na noite de 11 de julho de 1995, diante do nascimento da manobra da reeleição, FHC disse ao gravador que guardava suas memórias:

“Assunto delicado, acho difícil por causa da cultura política brasileira e não me comprometo a ser candidato. Vejo uma vantagem: a de que assim os outros se assustam e não lançam uma candidatura desde já.”

A cultura política brasileira não tinha nada a ver com isso. Em qualquer país ou clube de futebol e em qualquer época, quando o governante pode ser reeleito, trabalha de olho nesse prêmio. Hoje, FHC diz que “tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos”. OK, mas no seu artigo autocrítico ele diz que “visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a eleição é ingenuidade”. Ingenuidade de quem, Grande Chefe Branco? Depois de ter praticado um ruinoso populismo cambial para ajudar sua reeleição até novembro de 1998, FHC desvalorizou o real em janeiro de 1999.

Fernando Henrique Cardoso governou o país por oito anos. A ele se deve um novo tempo na economia, um padrão de moralidade pessoal e uma tolerância que hoje fazem falta. Seu ruinoso legado político foi a instituição do princípio da reeleição. Ele envenenou presidentes, governadores e prefeitos. Em 1995 FHC chegou a dizer que “não penso nisso, o sacrifício é muito grande”. Pensava, queria, conseguiu, e a conta do sacrifício foi para os outros.

Enquanto o tucanato fabricava o veneno, FHC conseguiu dar a impressão de que estava acima da manobra. Tentando tirar a meia sem tirar o sapato, cortou a proposta de um referendo popular para ratificar a decisão do Congresso. Conseguiu, mas um quarto de século depois deu-se conta de que deixou o sistema político brasileiro de tamancos.

Não se trata de um veneno “visto de hoje”. A República brasileira resistiu a esse veneno. Nenhum presidente tentou receitá-lo, nem os da ditadura. Amparado na popularidade e no tacape do regime, o general Emílio Médici (1969-1974) poderia ter conseguido do Congresso uma prorrogação de seu mandato ou até mesmo o direito de candidatar-se numa eleição direta. Médici humilhou os çábios palacianos que armavam a manobra.

A reeleição de FHC foi a cabeça de um bicho que nasceu em 1994, quando o andar de cima, horrorizado com as pesquisas que davam a Lula 40% das preferências, encurtou o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Essa cabeça desmiolada deu oito anos a FHC, 13 ao PT de Lula e Dilma, mais quatro ao ex-capitão Jair Bolsonaro. Que tal oito?

Quando FHC diz que “historicamente” a reeleição foi um erro, embaralha seu legado. Ela era evitada porque sabia-se que era venenosa. Instituída, deu no que deu, e hoje não há vacina contra seus efeitos.

Antes de entrar no Planalto, todos os candidatos dizem que são contra a reeleição. Lula e Bolsonaro diziam, mas mudaram de ideia.

Análise

O problema das autocríticas é que elas quase sempre chegam tarde. O instituto da reeleição foi enfiado dentro da Constituição em 1997 para beneficiar o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que se reelegeria na sucessão presidencial de 1998. Decorridos 23 anos, FHC decidiu fazer um "mea culpa".

Num instante em que as pesquisas apresentam Jair Bolsonaro como principal carta do baralho de 2022, FHC disse que prefere engordar o mandato em um ano, sem a possibilidade de recondução: "Se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo 'plebiscitário', seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final."

No trecho em que mencionou Bolsonaro, FHC disse ter "a sensação de que o presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou." A despeito disso, insinuou que o capitão namora a ideia de fazer "o impossível" para obter um segundo mandato. Previu dias ruins para Paulo Guedes. Sustentou que o ministro da Economia terá de se ajustar ao projeto reeleitoral do chefe.

Eis o que escreveu FHC sobre a sina de Guedes: "…Trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições."

A reeleição é um tema espinhoso para FHC. "Fui acusado de 'haver comprado' votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso", recordou o ex-presidente a certa altura. A acusação de compra de votos está grudada na biografia do grão-tucano como as escamas no peixe.

FHC referiu-se ao escândalo com o conformismo de quem já jogou a toalha: "De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória… do Lula." Realmente, a tentativa de desmentido vale pouco quando confrontada com as evidências.

A reeleição foi aprovada no Congresso sob atmosfera vadia. Soavam ao fundo as vozes de deputados pilhados numa fita. Eles mencionavam uma certa "cota federal" providenciada pelo "Serjão." Obtida pelo repórter Fernando Rodrigues, a fita foi publicada pela Folha. Vale a pena rememorar alguns trechos.

"Pelo que eu sei bem, é o seguinte: eram os 200 do Serjão, via Amazonino, que era a cota federal, aí do acordo…", escuta-se num trecho da gravação. "Ele falou, pra todo mundo, aí, meio mundo, aí. Eu falei com o Luís Eduardo. O Luís Eduardo marcou uma audiência com o Serjão. Daí, o Serjão marcou com o Amazonino."

Serjão, já morto, era Sérgio Roberto Vieira da Motta. Espaçoso, cresceu muito para as laterais. Daí o apelido. O aumentativo não embutia nenhum exagero. Exceto pela voz, fina como a do ex-lutador Anderson Silva, tudo em Serjão parecia exagerado. A começar por seu apetite.

Afora a natural apetência por alimentos, Serjão tinha outro tipo de fome. Ele tinha fome de poder. Era fácil irritá-lo. Bastava chamá-lo de "tesoureiro". Conhecera FHC em 1975, no jornal 'Movimento'. Em 1978, já atuava como coordenador de sua campanha ao Senado. Tornaram-se amigos íntimos.

No governo FHC, Serjão foi ministro das Comunicações. Onde houvesse uma fresta vazia, lá estava ele para ocupá-la. Faltava oposição ao governo? Serjão tachava o Comunidade Solidária, programa da primeira dama Ruth Cardoso, de ''masturbação sociológica''. Faltava coordenação política ao Planalto? Serjão abraçava, ele próprio, o papel de mercador da reeleição.

Gestos fartos, Serjão guiava-se pela emoção. O poder era seu brinquedo. O lume do holofote, sua vitamina. O subsolo, seu ambiente predileto. Serjão era, antes de ministro, uma combinação de empresário e tocador de campanhas políticas, não necessariamente nessa ordem.

FHC estava tão obcecado pela tese da reeleição que permitiu que a empreitada ficasse com a cara do Serjão -um trator de carne e osso, um personagem pouco afeito a pedidos de licença. O desmentido de hoje contrasta com tudo o que desceu ao verbete da enciclopédia: as fitas, a "cota federal", as menções ao amigão do presidente.

Na época, uma oposição claudicante tentou instalar uma CPI da Reeleição. FHC dizia: "Não podemos transformar o Congresso em polícia." Quando o passado volta para assombrá-lo, algo que só acontece de raro em raro, FHC costuma dizer que houve, sim, uma investigação. Onde? Na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Em tempos de Lava Jato, parece piada.

Dois deputados do Acre cujas vozes soaram na fita da "cota federal" foram cassados. Outros três renunciaram aos respectivos mandatos. No artigo em que trata a reeleição como "um erro", FHC deveria ter anotado o pedaço da missa recitada pelos católicos para reconhecer, num ritual secular, seus erros perante Deus.

Em latim: "Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa."

Em português: "Eu pecador me confesso a Deus Todo-Poderoso, bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os Santos e a vós, Padre, porque pequei muitas vezes, por pensamentos, palavras e obras, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa."


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