28/03/2024 - Edição 540

Poder

Carestia inflacionou a demagogia de Bolsonaro

Publicado em 11/09/2020 12:00 -

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A carestia dos produtos da cesta básica inflacionou o preço da demagogia política. O governo de Jair Bolsonaro, que era apenas disfuncional, tornou-se uma balbúrdia gerencial que desvaloriza a cotação da ala liberal da Esplanada dos Ministérios.

A desordem não é alimentada por empresários impatrióticos. Ela vem de dentro de um governo desconexo, presidido por um personagem que aposta no tumulto como estratégia para se descolar das crises.

O governo ultrapassou a fronteira da irracionalidade. O Ministério da Economia cobra explicações da pasta da Justiça por ter intimado os supermercados a explicar o reajuste dos alimentos.

E o presidente revela numa transmissão ao vivo que autorizou o ministro André Mendonça, da Justiça, a deflagrar a investigação que irritou o colega Paulo Guedes, da Economia. Fez isso mesmo reconhecendo que não se deve tabelar preços.

Quer dizer: Para não ficar mal com o eleitorado humilde, Bolsonaro colocou um ministro para brigar com outro. E o governo conseguiu a façanha de gastar mais tempo e energia agravando o problema do que enfrentando-o.

Adotou-se com atraso a providência de zerar a alíquota para a importação de 400 mil toneladas de arroz. Parece pouco. Equivale ao consumo de cerca de duas semanas.

Estratagema eleitoral

No episódio da alta dos preços dos alimentos da cesta básica, Bolsonaro capricha na teatralidade. Normalmente, tudo o que o ser humano faz costuma ser motivado pelo cálculo do seu próprio interesse. Quando o ser humano é um político, aí mesmo é que o interesse coletivo se torna algo indistinguível sempre que confrontado com o desejo de privilegiar o interesse pessoal.

O presidente demonstrou sua capacidade de comunicação na construção de uma candidatura presidencial vitoriosa. Hoje, sabe-se que a campanha estava assentada em dois alicerces falsos: uma hipotética nova política e uma moralidade de vidro. No governo, Bolsonaro mantém o estilo teatral. Pouco importa ao presidente que algumas pessoas percebam seus truques. O que interessa é que a mágica mantenha viva a ilusão de pelo menos um terço do eleitorado.

Tomado pelas palavras, Bolsonaro parece ter compreensão sobre o que ocorre com os preços da cesta básica. Falando sobre a alta no preço do arroz para seus devotos no cercadinho do Alvorada, o presidente disse: "Não vamos interferir no mercado de jeito nenhum". Fez as pazes com o óbvio: "Não existe canetaço para resolver o problema da economia."

Simultaneamente, o presidente apela ao patriotismo dos empresários e manda o Ministério da Justiça intimar cooperativas e supermercados para prestar esclarecimentos. Numa ponta, o governo faz o que deve ser feito, zerando o imposto de importação do arroz, para estimular a concorrência. Noutra ponta, o ministro André Mendonça, soldado de Bolsonaro na pasta da Justiça, pendura no suposto liberalismo do governo a incoerência de uma ameaça de revogação da lei da oferta e da procura.

No meio da balbúrdia, há um presidente fazendo pose de candidato. Todo político precisa ter um estilo. O problema é que, na vida real, campanha é uma coisa e governo é outra. Como Bolsonaro não desceu do palanque, o país é submetido a um presidente que utiliza diuturnamente todos os estratagemas, inclusive o arroz, para atingir seus subterfúgios eleitorais.

Inflação e populismo

A comida encareceu, o consumidor reclamou e o governo reagiu com mais populismo. O presidente pediu patriotismo e lucro “próximo de zero” aos donos de supermercados. Em seguida, o Ministério da Justiça deu cinco dias a produtores e comerciantes para explicarem a alta de preços, acenando com multas se forem comprovados aumentos abusivos – um conceito misterioso e estranho à ciência econômica. Enfim, foi zerada a tarifa de importação do arroz, o vilão mais notório da nova crise inflacionária. Resta esperar e conferir se o produto estrangeiro de fato derrubará os preços – efeito duvidoso, se o dólar continuar muito caro. Por enquanto só se viu o showzinho eleitoral, baseado num script já desmoralizado há 30 anos.

Com tanto barulho, muita gente poderá desconfiar de um novo estouro inflacionário. Mas convém olhar alguns números. Com alta de 0,24% em agosto, 0,70% no ano e 2,44% em 12 meses, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), retrato principal da inflação, estará mesmo fora dos conformes?

Para o consumidor pouco familiarizado com estatísticas, aquele número mensal, 0,24%, é uma ficção sem sentido. Algo mais próximo da verdade talvez apareça nos detalhes. Com alta de 3,08% em agosto, o preço do arroz acumula aumento de 19,25% no ano. O do feijão subiu mais de 30% em oito meses, dependendo do tipo e da região, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No entanto, o custo da alimentação fora de casa diminuiu 0,29% em julho e 0,11% em agosto. Mas quem se importa com isso, se menos pessoas estão comendo fora? Roupas e calçados também ficaram mais baratos, assim como a educação (descontos foram concedidos depois do fechamento de escolas). De novo, isso faz diferença?

Consumidores tendem a dar mais atenção à alta de preços do que à baixa. Além disso, a inflação medida pelos institutos de pesquisa reflete a média das variações de centenas de preços. Seria espantoso se os gastos de alguma família tivessem os mesmos itens do orçamento modelo, com os mesmos pesos. Além disso, hábitos mudaram com a pandemia. Os modelos de orçamento, no entanto, foram mantidos.

Mas a disparada dos preços da comida – porque houve, de fato, disparada – é um fato bem mais complexo do que talvez perceba a maior parte das pessoas, incluídas várias autoridades. Em vários momentos o valor do dólar esteve cerca de 40% acima do nível do início do ano. Valores em torno de R$ 5,60 têm reaparecido com frequência. Um segundo fator, parcialmente associado ao primeiro, é o aumento das exportações do agronegócio.

As estrelas dessas exportações continuam sendo a soja, seus derivados, o milho e as carnes. De janeiro a julho o setor exportou US$ 61,19 bilhões, 9,2% mais que um ano antes, segundo o Ministério da Agricultura. Essa receita, recorde para o período, resultou principalmente do volume, 15,8% superior ao de janeiro-julho de 2019. A China continuou como destino principal.

O aumento do volume exportado ajuda a entender a alta dos preços internos, mas há também o efeito do câmbio. Com maiores embarques e dólar muito mais caro, produtores e distribuidores de alimentos ajustaram seus preços às novas condições.

O câmbio e a perspectiva do retorno em reais estimularam também os embarques de produtos de menor peso nas exportações, como o arroz. As vendas externas de 982,89 mil toneladas desse produto entre janeiro e julho foram um recorde para o período. As vendas têm ficado, em alguns meses, perto do dobro dos volumes de 2019. Alguma surpresa, ainda, quanto aos preços internos?

Quanto ao câmbio, o real tem sido uma das moedas mais desvalorizadas. Muito capital tem saído do País. Além disso, diminuiu o ingresso de recursos, principalmente de curto prazo. Há incerteza quanto às finanças públicas, por causa das prioridades eleitorais do presidente e das pressões por gastos. Além disso, o fogo nas florestas assusta investidores. Parte importante dos problemas está no Palácio do Planalto, bem longe dos armazéns agrícolas e dos supermercados.


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