26/04/2024 - Edição 540

Brasil

‘Ninguém quer ver de perto a morte que o fogo traz para o Pantanal. Eu vi’

Publicado em 11/09/2020 12:00 -

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Era meu último dia fotografando as queimadas no Pantanal. Saio para pegar o ônibus quase acostumado com o cheiro de fumaça impregnado na roupa, o gosto amargo na boca, os olhos vermelhos e lacrimejando. Ignoro a ardência nos olhos para mantê-los abertos; fico em vigília, atento, câmara na mão.  

Do lado de fora, vejo a calamidade. Perto de Poconé (MT), focos de incêndio. A fumaça e velocidade do ônibus atrapalham, mas aperto o olhar e avisto uma cena brutal. O corpo duro e sem vida de uma jaguatirica. Grito para pararem o ônibus e desço para fotografar. O ar é pesado. Os olhos do animal brancos e a língua de fora, como se tivesse tentado sorver o pouco que ainda resta do ar do Pantanal. 

O motorista aparece ao meu lado, e falamos baixo, como que em luto. Ele diz que ela não foi atropelada. Morreu fugindo. Me abaixo no asfalto escolhendo um ângulo que mostre a quantidade de fumaça no caminho que ainda vou seguir. Clico o filhote tentando não mostrar toda a brutalidade que a morte impôs naquele animal tão belo. Eu nunca tinha visto uma jaguatirica. Ainda não vi.

Ninguém quer ver a morte que o fogo traz para o Pantanal tão de perto assim. Eu vi. Vi o fogo e o fim de tudo em um dos biomas mais ricos e lindos do planeta.

Quando cheguei em Poconé, perto da meia noite, a cidade estava envolta na penumbra. A fumaça era tão pesada que acreditei ser a névoa da madrugada. Não era. Era o efeito causado pelos mais de 2 milhões de hectares que estavam em chamas no Pantanal. Várzea Grande e Cuiabá também sentem o impacto da queimada criminosa e covarde. Vi como o agronegócio abre pasto com gasolina e diesel. Fazendeiros apressados em passar a boiada com a chancela do governo federal e do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Quantos genocídios mais são possíveis na nossa nação? O Pantanal é só mais um crime impune na lista interminável dessa administração.

No meio de uma tarde de 43ºC e da fumaça sem fim em Barão de Melgaço (MT), os bombeiros e brigadistas olham o fogo, impotentes. Um dos brigadistas, com a pá na mão, é ‘seu’ Crovis. Ele diz que o fogo tem raiva. Pula de um lado para o outro. Está vivo. Ele olha para o caminho sem fim, escondido pela fumaça e avisa que não dá pra fazer nada além de esperar. Encosta no caminhão-pipa ao seu lado, que está vazio, e toma seu tererê.

O fogo consome tudo ao redor e o barulho é assustador. Os bombeiros — são cinco no local — usam um drone para avaliar a situação. Mas a conclusão é a mesma: não há nada a ser feito. É esperar o fogo se cansar do mato e desaparecer debaixo da terra.

O ecoturismo é forte na região, que tem como atração espécies endêmicas como a arara azul do Pantanal e o cervo pantaneiro. Mas o ecoturismo esbarra no agronegócio e na abertura de pasto para a boiada. É preciso expandir a área do gado. E os brigadistas, inconformados, me contam que, para isso, fazendeiros ordenam que se use o fogo em nas áreas secas com solo rico em metano e matéria orgânica. É o fogo da ganância. Destruição, pra essa gente, é sinônimo de progresso.

Patas queimadas e morte

Cansados de ver os animais sofrendo, guias turísticos, biólogos e veterinários locais se uniram para tentar salvá-los. Um dos resgates foi de uma onça pintada, transferida para Goiás. Eu acompanho o grupo, que me explica que a desidratação — por conta da seca e da falta de água em riachos e lagoas –, a fumaça e o fogo deixam os animais desorientados, fazendo com que passem por áreas em brasa. Com as patas queimadas e morrendo de sede, esses animais sucumbem ao choque da dor. E, sem conseguir se locomover, morrem.

Os voluntários também saem diariamente para deixar recipientes com água em vários pontos de rio seco e da mata. Falta água. Falta chuva. E, ficou claro para mim, falta humanidade no Pantanal.

À noite, de volta ao Sesc Pantanal, onde fiquei hospedado, escuto a conversa na mesa ao lado da minha no refeitório. Um dos militares, também alojado ali, não consegue segurar sua revolta e raiva ao comentar o ministro Salles pretendia bloquear a verba destinada para a batalha contra as queimadas na região pantaneira além da Amazônia. “Ele se precipitou, pô.”

Um desgoverno que brinca com os nervos de quem vê a morte todos os dias e vai dormir sabendo que, no dia seguinte, pode ser pego na mudança de direção do fogo e morrer queimado. Foi  o caso do Wellington Fernando Peres Silva, brigadista do ICMBio que teve 80% do corpo queimado em uma ação contra os incêndios do Parque Nacional das Emas (GO). 

O que Salles e o governo federal não entenderam é que igual a mim existem muitos na região. Moradores, fotógrafos e jornalistas que testemunharam tudo. Viram o que a boiada representa. Gente que sentiu o fogo de perto e respirou diariamente o ar esfumaçado e doente da Transpantaneira. Gente que rezou para ver uma onça ou jaguatirica vivas, mas que, em vez disso, tiveram de se deitar na estrada ao lado de um corpo gelado para mostrar ao mundo o que a boiada faz quando passa. Ela queima.

A busca pelos animais feridos em meio ao fogo no Pantanal

O relato acima, feito pelo fotógrafo João Paulo Guimarães, remete a uma sensação de abandono, de dese3sperança. Mas, assim como ele relata a ação de quem não suporta mais observar o sofrimento da fauna local e parte para ação, o mesmo ocorre com um grupo de veterinários que se juntou para ajudar animais gravemente machucados e desidratados pelos incêndios que consomem há dias o Pantanal.

Salles insiste que a Amazônia não está queimando

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, lamentou, na noite de quinta (10), a postagem de um vídeo em que um mico-leão-dourado, endêmico do litoral do Rio, aparece pimpão na Amazônia como prova de que está tudo bem na região. Mesmo assim, não deu o braço a torcer e afirmou que a maior floresta tropical do mundo não está queimando "como dizem".

Como o ataque é a melhor defesa, aproveitou para chamar de falsas fotos de panelaços contra Jair Bolsonaro, como o ocorrido em várias cidades do país durante o pronunciamento do presidente da República em 7 de setembro.

"Lamento o vídeo contendo o mico-leão na Amazônia, embora realmente ela não esteja queimando como dizem. Da próxima vez, vou antes consultar o mesmo compliance que atuou nas fotos e matérias fake do suposto panelaço!"

Até a onça-pintada que teve as patas queimadas por incêndios criminosos no Pantanal sabe que o micro-leão-dourado vive apenas na Mata Atlântica do fluminense. E na nota de R$ 20, claro.

Salles e o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, contudo, feito papagaios, imitaram pecuaristas paraenses que haviam postado o vídeo para convencer o mundo que seriam infundadas as histórias de que a Amazônia tomba e queima. Davi versus Golias: um vídeo de pecuaristas versus milhares de imagens de satélites mostrando a floresta tostar. Como o bolsonarismo não é conhecido pela checagem de informações, não seria um grande problema. Mas, desta vez, pegou mal fora do país.

Particularmente, Salles e Mourão poderiam até postar um vídeo de um lobo-guará num cerradão para dizer que a floresta amazônica está bem se ambos estivessem protegendo ambos os biomas. Seriam considerados excêntricos ao contrário da imagem de irresponsáveis – para dizer o mínimo.

O ministro do Meio Ambiente vem sendo o mais competente dos auxiliares de Jair, pois está entregando aquilo que prometeu ao presidente e ao naco arcaico dos ruralistas. A proposta de aproveitar a pandemia, enquanto imprensa e sociedade estão preocupadas com mortos, para "passar a boiada" contra normas ambientais pode ser deprimente, mas é objetiva e eficaz. E enquanto discutimos a cutucada dele ao ator Leonardo DiCaprio, a vaca vai pro brejo.

Investidores de fundos internacionais que tiverem o mínimo de senso crítico já perceberam que o teatro montado pelo governo brasileirio para convencer que o país está preocupado com o salto no desmatamento e nas queimadas na Amazônia e no Pantanal e que fará tudo ao seu alcance para diminui-los é tão verdadeiro quanto uma nota de R$ 200 com um vira-lata caramelo.

Mesmo quem é rápido como um bicho-preguiça já reparou que um governo – que desautoriza fiscais ambientais, busca a legalização da grilagem e defende madeireiros e garimpeiros ilegais – quer apenas enrolar.

Qualquer urso polar deprimido por estar preso em um pedaço de gelo flutuando no Ártico seria capaz de explicar que o processo de mudanças climáticas não tem a ver com esquerda e direita, mas com a nossa sobrevivência como espécie. Ou seja, é um tema que separa a civilização e a barbárie. E, infelizmente, o governo parece ter escolhido o seu lado na História.

A Amazônia não é o pulmão do mundo, mas ela imobiliza bilhões de toneladas de carbono que, se lançadas à atmosfera, farão do planeta um lugar pior para se viver. Sem ela, menos água é retirada do solo e jogada no ar. Sem ela, São Paulo pode dar adeus à sua agricultura porque nosso sistema de chuvas dela depende. Sem ela, sobrará um deserto que avançará sobre outras áreas de produção. Pode não ter mico-leão-dourado por lá, mas conta com a maior biodiversidade do planeta. E nela vivem milhões de pessoas, incluindo populações tradicionais, suas línguas e culturas.

O relógio está correndo. Em contagem regressiva.

Ao final, a questão que precisa ser respondida é se o governo está mesmo disposto a combater as ameaças reais que colocam em risco nosso planeta, mudando seu comportamento quanto ao meio ambiente, ou zombará delas enquanto queima dinheiro de exportações de carne, soja, ferro gusa, entre outros, que ficarão bloqueadas em portos pelo mundo, acusadas de crimes ambientais e sociais. Ou enquanto vê dezenas de bilhões em investimentos correrem do Brasil por medo dos riscos do seu terraplanismo ecológico.

O que lembra que o principal mico também vive no Rio, mas é endêmico de um condomínio na Barra da Tijuca.

A ONG ambiental Greenpeace criticou o movimento do Governo e classificou como “suja tentativa do governo de tentar desviar a atenção do que está acontecendo.”

“Enquanto o governo perde seu tempo propagando vídeos fakes nas redes sociais, 3 biomas brasileiros estão sofrendo com recordes de queimadas”, afirmou o porta-voz da campanha de Amazônia da organização Rômulo Batista. “Talvez o Ministro e o vice-presidente não estejam sendo sufocados pela fumaça em Brasília, porém, essa não é a realidade de cidades da Amazônia como Belém, Porto Velho e Rio Branco”, continuou. 

O vídeo de 1 minuto e 38 segundos de duração tem narração em inglês e legendas em português dizendo que a Amazônia não queima novamente e que 5% dos agricultores da região utilizam queimadas para limpar o terreno usado na produção de alimentos. A peça mostra inclusive imagens de um mico-leão-dourado, animal só encontrado na Mata Atlântica. Questionado sobre o assunto hoje, Mourão respondeu que “aquilo é uma integração Amazônia-Mata Atlântica”, mas o próprio presidente da AcriPará admitiu que o uso do mico-leão-dourado no vídeo foi uma “gafe”. Os compartilhamentos do vídeo fomentaram a hashtag que ficou entre as mais utilizadas no Twitter durante parte do dia #StopFakeNewsAboutAmazon.

A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva também criticou a iniciativa: “O governo insiste em esconder o problema ambiental com propaganda mal feita, no lugar de resolvê-lo. A triste e revoltante realidade é que a Amazônia e o Pantanal estão em chamas”, escreveu no Twitter. 

Confira a nota do Greenpeace sobre a publicação:

“Enquanto o governo perde seu tempo propagando vídeos fakes nas redes sociais, 3 biomas brasileiros estão sofrendo com recordes de queimadas. Somente na Amazônia, foram quase 30 mil focos de calor em agosto e já são 10.797 nos primeiros 8 dias de setembro, um aumento de 118% em relação ao mesmo período do ano passado. Considerando o problema que o satélite AQUA, referência utilizado pelo INPE como número oficial para as queimadas, está apresentando, esses números devem ser ainda maiores. No Pantanal, a situação é desesperadora. Na primeira semana  de setembro foram de 1.889 incêndios. Em todo o mês de setembro de 2019 ocorreram 2.800 incêndios. As queimadas destroem os biomas e colocam em risco a biodiversidade e o clima. Com sua política antiambiental, o governo escolhe ignorar, também, que esses incêndios são criminosos e ilegais. 

Talvez o Ministro e o vice presidente não estejam sendo sufocados pela fumaça em Brasília, porém, essa não é a realidade de cidades da Amazônia como Belém, Porto Velho e Rio Branco. Com a pandemia, os hospitais no interior da Amazônia já estão sobrecarregados e as queimadas provocam fuligem e fumaça, que também atacam o sistema respiratório, agravando ainda mais a crise sanitária. É suja a tentativa do governo de tentar desviar a atenção do que está acontecendo, ainda mais utilizando imagens sem autorização dos que produziram e dos que têm o direito de uso da imagem.”

A Amazônia degradada já é maior que a desmatada

Há florestas que deixam de sê-lo mesmo sem desaparecer. É o que adverte um grupo de cientistas sobre o estado da região amazônica. Seu amplo desmatamento é bem conhecido, mas igualmente dramática (e mais complexa de medir) é a degradação do que resta. Com dados de mais de duas décadas, os pesquisadores comprovaram que a porção de floresta empobrecida já é maior que a desaparecida.

Com base em dados de satélite reunidos desde 1992, o grupo de pesquisadores mediu o impacto humano sobre a Amazônia. O mais fácil é calcular quanto da vegetação desapareceu para que suas terras fossem destinadas a outra coisa, em sua maioria a pastagem. Segundo o estudo publicado na revista Science, entre 1992 e 2014 desapareceram 308.311 km². A curva do desmatamento foi ascendente ano após ano, até atingir o pico em 2003, quando foram perdidos 29.000 km² ―uma superfície quase equivalente à da Catalunha ou a 75% do Estado do Rio de Janeiro. Seja pela pressão internacional ou pela ação política interna, o ritmo diminuiu até o patamar dos 6.000 km² perdidos anualmente desde 2014.

Mais difícil de calcular ―e de medir as consequências― é a degradação da floresta remanescente. Entre uma vegetação intocada e outra que deu lugar a pastagens, há um amplo leque de paisagens florestais mais ou menos empobrecidos. A degradação pode assumir distintas formas: uma menor densidade de árvores, uma perda de continuidade entre florestas cada vez menores e mais isoladas ou a queima de sub-bosque, entre outras. Uma série de algoritmos considerou as variações de refletância da luz de cada paisagem para determinar o grau de alteração.

“Uma floresta degradada é aquela que foi alterada de forma significativa ou que sofreu o impacto das atividades humanas. Continua contando com um dossel arbóreo, mas com biomassa reduzida”, explica David Skole, pesquisador do Observatório Global de Serviços ao Ecossistema da Universidade Estatal de Michigan (EUA) e coautor do estudo. “Um bom exemplo de degradação florestal é quando a floresta é submetida ao desmatamento seletivo, cortando-se algumas árvores e deixando-se outras.” Nas zonas desmatadas, a degradação se concentra nos limites entre a floresta e a terra nua. “Essas árvores que sobrevivem nas bordas dos terrenos desmatados são afetadas por mudanças no microclima. E há provas de que, no longo prazo, sofrem um colapso em sua biomassa. É o que chamamos de efeito-limite”.

Os autores do estudo estimam que a porção da floresta amazônica degradada já superou os 337.000 km². Ou seja, a superfície empobrecida excede a afetada pelo desmatamento. E se este provoca o desaparecimento da floresta e de todas as funções associadas, o empobrecimento também tem suas consequências: liberação de gases do efeito estufa, alteração do equilíbrio da água e dos nutrientes, queda da biodiversidade e surgimento de doenças infecciosas.

São quatro os agentes degradantes principais: corte mais ou menos seletivo, incêndios, efeito-limite ou fragmentação e isolamento de porções de floresta. Até 2003, auge do desmatamento, estes dois últimos agentes foram os protagonistas. Desde então, porém, o desmatamento e o fogo têm sido mais importantes.

“Nos anos anteriores, o desmatamento e a degradação geralmente ocorriam no mesmo espaço”, afirma Skole. Como se fosse uma condição prévia ou um estado precedente, “o que levou muitos a verem a degradação como um atalho para o desmatamento, não uma interferência diferente a ser considerada, medida e gerenciada. Demonstramos que agora existe degradação, sobretudo por corte ilegal, que é uma perturbação espacialmente diferente”. De fato, mais da metade das áreas degradadas pelas derrubadas, por exemplo, mantiveram-se nesse estado praticamente durante as duas décadas englobadas pelo estudo.

Raúl Sánchez, pesquisador florestal da Universidade Pablo de Olavide (Espanha), diz que “até agora colocávamos no mesmo saco o desmatamento e a degradação, e este trabalho mostra que não é assim.” O que ele não esperava eram as dimensões do problema ―mesmo com o patamar de 2014. “Este ano, o fator principal tem sido o incêndio de baixa intensidade, primeiro passo para a degradação”, afirma.


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