28/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Num sonho confuso, Bolsonaro falou com Deus

Publicado em 09/09/2020 12:00 -

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Deus nunca gostou de ter virado slogan de Bolsonaro. Abespinhado com a reiteração de que está "acima de todos", apareceu para o capitão no Palácio da Alvorada. Foi um sonho confuso.

Deus apresentou-se: "Sou eu, o Todo-Poderoso, Senhor dos homens de boa vontade".

E Bolsonaro: "Gostei do disfarce, amigo Trump. O que é que você manda?".

"Não, não", disse Deus. "Venho do céu, não dos Estados Unidos. Sou o Altíssimo, o genuíno, o verdadeiro, o Messias. Compreende?"

Natural que a ficha de Bolsonaro demorasse a cair. Deus nunca tinha aparecido para ele antes. Nem em sonho.

"Desço pouco à Terra", desculpou-se Deus. "É birra antiga. Ainda não engoli o que fizeram com o meu enviado. Mandei-o para salvar todo mundo e foi injust…"

Bolsonaro atalhou a frase de Deus: "Perdão, xará Messias, mas o Lula não foi injustiçado. Teve o que mereceu. Ele roubou e permitiu que roubas…"

Foi a vez de Deus interromper o raciocínio do presidente: "Eu me refiro a Jesus Cristo."

Bolsonaro tentou contornar o constrangimento: "Rezei muito para chegar à Presidência. A facada de Juiz de Fora me fez pensar que você não existisse. Graças a Deus, digo a Você, eu estava errado. Por isso, digo e repito: Brasil acima de tudo, Deus acim…"

"Veja bem", interrompeu Deus, "não pense que foi fácil. Normalmente, não me meto em assuntos de política. Mas achei que, vencendo o Haddad, ninguém controlaria o ego do Lula. E concorrência é algo que Eu não admito."

Bolsonaro coçou a cabeça. Fez cara de dúvida: "Não tô entendendo isso daí."

"Deixa pra lá", impacientou-se Deus. "Vou direto ao ponto. Quero que retire meu santo nome do slogan do seu governo. Essa história de que Eu estou acima de todos pode passar a impressão de que sou corresponsável pela sua gestão."

A cobrança divina deixou Bolsonaro sem palavras: "Mas, mas…"

"Quem prometeu milagres foi você. Não disse que combateria a corrupção? Não assegurou que a economia voltaria a crescer? Resolva! É problema seu."

"Não me queira mal, amigo Padre Eterno. Mas a pandemia é coisa sua."

Deus explodiu: "Isso é fake news. Você mesmo vive dizendo que o coronavírus é obra da China. Comparou a pandemia a uma gripezinha. Usou a decisão do STF para lavar as mãos. Disse que a mídia é histérica. Culpou os governadores pelo tombo do PIB. Não venha agora dizer que Eu sou responsável. Peça socorro ao seu amigo super-poderoso.

"O Trump?"

"Não, o outro."

"O Posto Ipiranga?

"Esse mesmo. O Trump acha que é Deus. O Paulo Guedes tem certeza. Recorra a ele. Me inclua fora dessa. Tenho um nome a zelar. Aliás, demorei muitos anos para construir uma santa reputação."

Bolsonaro quis mudar o rumo da prosa: "Falando em boa reputação, me conta um segredo. Afinal, o Supremo vai manter o foro privilegiado do Flávio, meu menino?

"Pensa que não tenho o que fazer? Sou onipresente, não vidente. É dura a faina celeste. Pergunta pro Gilmar Mendes."

"Outra coisa: a Márcia Aguiar vai delatar?

"Márcia?!? Que Márcia?!?"

"Márcia, a mulher do Fabrício Queir…"

"Ora, francamente", ralhou Deus, língua em riste. "Eu é que pergunto: por que o casal Queiroz depositou R$ 89 mil na conta da primeira-dama?"

"Até tu, amigo Messias! Tenho vontade de encher tua boca de porrad…"

"Veja como fala comigo. O slogan! Vim falar sobre o slogan do seu governo. Exijo que pare com essa história de 'Deus acima de tudo'.

Bolsonaro percebeu a inevitabilidade do tema. Entregou os pontos: "O slogan, entendi. Vou ver o que posso fazer, talkey? O que mais quer que eu faça?

"Sei lá."

"Como assim?"

Deus fingiu que não ouviu.

Bolsonaro insistiu: "Já rebatizei o Minha Casa, Minha Vida de Casa Verde e Amarela. Estou inaugurando as obras que o Lula e a Dilma deixaram inacabadas. Prorroguei o auxílio emergencial até dezembro. Vou transformar o Bolsa Família no Renda Brasil. A popularidade subiu. Faço o que está ao meu alcance. Se o Senhor, que tudo pode, não sabe o que mais pode ser feito, como é que eu, um pobre capitão, vou saber?"

Deus emitiu sinais de desconforto: "Quando rezou para ser presidente, você me pediu o milho. Não pediu para fazer o fubá. Resolver os problemas do Brasil é tarefa gigantesca. Envolve poder mais alto."

Bolsonaro, pulso acelerado, espantou-se: "Valei-me, Altíssimo. Poder mais alto que o Seu?"

Deus franziu o cenho. Sentiu um aperto na garganta. Sussurrou, descrente: "Você ainda não sabe do que o Centrão é capaz."

Bolsonaro acordou sobressaltado. Insone, pijama ensopado de suor, foi à biblioteca do Alvorada. Alta madrugada, puxou da gaveta da escrivaninha a planilha de cargos solicitados pelos líderes do centrão. Revirou os olhos para cima, num esgar de transe místico.

Pela manhã, Bolsonaro chamou o general Braga Netto para uma conversa. Falaram sobre cargos. O presidente pediu ao chefe da Casa Civil que libere novas posições para o centrão. De segundo e de terceiro escalão. Intensificará, a seu modo, o combate ao desemprego.

"Seja o que Deus quiser", disse Bolsonaro.

E o general: "Amém."

Joias de Souza – Jornalista


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