28/03/2024 - Edição 540

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EUA querem que Assange pague por mostrar ao mundo crueldade da Guerra no Iraque

Publicado em 09/09/2020 12:00 -

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No último dia 7, Julian Assange deixou sua cela na prisão de Belmarsh, em Londres, e se apresentou em uma audiência que irá determinar seu destino. Após um longo período de isolamento, no último dia 25 de agosto ele finalmente pôde encontrar sua companheira, Stella Moris, e ver seus dois filhos, Gabriel, três anos, e Max, um ano. Após a visita, Moris disse que ele parecia estar sentindo “muita dor”. A audiência nada tem a ver com os motivos de sua prisão na embaixada do Equador em Londres, em 11 de abril de 2019. Ele foi preso, naquele dia, por não ter se entregado, em 2012, às autoridades britânicas, que o buscavam para sua extradição à Suécia.

Naquela época, o país nórdico julgava acusações de crimes sexuais contra o ativista, as quais, em novembro de 2019, foram retiradas. Na verdade, depois que as autoridades suecas decidiram não perseguir mais Assange, sua liberdade deveria ter sido concedida pelo governo do Reino Unido. Mas ele não foi libertado.

O verdadeiro motivo da prisão nunca foi a acusação que tramitava na Suécia. Era desejo do governo dos Estados Unidos que ele fosse trazido ao país norte-americano para ser julgado por uma série de acusações de outro caráter. 

Em 11 de abril de 2019, o porta-voz do Ministério do Interior do Reino Unido disse: “Podemos confirmar que Julian Assange foi preso em função de um pedido de extradição provisória vindo dos Estados Unidos da América. Ele é acusado nos Estados Unidos da América de crimes cibernéticos”.

Chelsea Manning

No dia seguinte à prisão de Assange, a organização de direito à informação Artigo 19 publicou um comunicado que dizia que, embora as autoridades do Reino Unido tivessem “originalmente” dito que queriam prender Assange por fugir sob fiança em 2012 devido ao pedido de extradição da Suécia, agora ficou claro que a prisão foi devido a uma reclamação do Departamento de Justiça dos EUA sobre ele. 

Os EUA queriam prender Assange sob uma “acusação federal de conspiração para cometer invasão de computador, por concordar em quebrar a senha de um computador confidencial do governo dos EUA”. 

Assange foi acusado de ajudar a denunciante Chelsea Manning, em 2010, quando ela entregou ao WikiLeaks – liderado por Assange – um tesouro explosivo de informações confidenciais do governo dos EUA, que continham evidências claras de crimes de guerra. Manning passou sete anos na prisão antes de sua sentença ser comutada pelo ex-presidente dos EUA Barack Obama.

Enquanto Assange estava na embaixada do Equador e, agora, definhando na prisão de Belmarsh, o governo dos Estados Unidos tentou criar um caso intrincado contra ele. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos indiciou Assange por pelo menos 18 acusações, incluindo a publicação de documentos confidenciais e uma acusação de que ele ajudou Manning a quebrar uma senha e invadir um computador no Pentágono. Uma das acusações, de 2018, torna ainda mais nítido o caso contra Assange.

A acusação de que Assange publicou os documentos não é a principal, uma vez que os documentos também foram publicados por uma série de meios de comunicação, como o New York Times e o Guardian

A principal acusação é que Assange “encorajou ativamente Manning a fornecer mais informações e concordou em quebrar um hash de senha armazenado em computadores do Departamento de Defesa dos EUA, conectados à Rede Roteadora de Protocolos Secretos da Internet (Secret Internet Protocol Router Network, SIPRNet), uma rede do governo dos Estados Unidos usada para comunicações e documentos confidenciais. Assange também é acusado de conspiração para cometer invasão de computador por concordar em quebrar o hash de senha”. 

O problema aqui é que parece que o governo dos Estados Unidos não tem evidências de que Assange conspirou com Manning para entrar no sistema estadunidense.

Manning não nega que ela invadiu o sistema, baixou os materiais e os enviou para o WikiLeaks. Depois de fazer isso, o WikiLeaks, como outros meios de comunicação, publicou os materiais. Manning teve sete anos de prisão muito difíceis devido a seu papel na distribuição dos materiais. 

Devido à falta de evidências contra Assange, Manning foi convidada a testemunhar contra ele perante um grande júri. Ela recusou e foi presa. As autoridades dos EUA usaram sua prisão como uma forma de tentar obrigá-la a testemunhar contra Assange.

O que Manning enviou para Assange

O WikiLeaks anunciou, em 8 de janeiro de 2010, que tinha “vídeos criptografados de ataques a bomba dos EUA contra civis”. O vídeo, posteriormente divulgado com o nome “Assassinato Colateral”, mostrou em detalhes e a sangue frio como, em 12 de julho de 2007, helicópteros Apache AH-64 dos EUA dispararam armas de 30 milímetros contra um grupo de iraquianos em Nova Bagdá. 

Entre os mortos, estavam o fotógrafo da agência Reuters Namir Noor-Eldeen e seu motorista Saeed Chmagh. A agência, imediatamente, pediu informações sobre o assassinato. Os EUA receberam a história oficial e disseram que não havia nenhum vídeo, e a Reuters persistiu, inutilmente.

Em 2009, o repórter do Washington Post David Finkel publicou o livro The Good Soldiers, baseado no tempo que ele esteve integrado no Batalhão 2-16 do Exército dos EUA. Finkel estava com os soldados estadunidenses no bairro de Al-Amin, quando ouviram os helicópteros Apache disparando. 

Para seu livro, Finkel assistiu à fita (isso fica evidente nas páginas 96 a 104, da versão em inglês). O jornalista defende os militares dos EUA, dizendo que “a tripulação do Apache seguiu as regras de combate” e que “todos agiram de forma adequada”. Os soldados, escreveu ele, eram “bons soldados e havia chegado a hora do jantar”. Finkel deixou claro que um vídeo existia, embora o governo dos Estados Unidos negasse sua existência à Reuters.

O vídeo é horrível. E mostra a insensibilidade dos pilotos. As pessoas no terreno não atiravam em ninguém. Os pilotos dispararam indiscriminadamente. “Olhe para aqueles bastardos mortos”, diz um deles, enquanto outro diz: “Legal”, depois de atirarem nos civis.

Uma van para na carnificina e uma pessoa sai para ajudar os feridos, incluindo Saeed Chmagh. Os pilotos pedem permissão para atirar na van, obtêm permissão rapidamente e atiram na van. O especialista do Exército Ethan McCord (parte do Batalhão 2-16 que tinha Finkel incorporado a eles) examinou a cena do solo minutos depois. Em 2010, McCord disse à jornalista Kim Zetter, da Wired, o que viu: “Nunca vi ninguém sendo baleado por uma bala de 30 milímetros antes. Não parecia real, no sentido de que não se pareciam com seres humanos. Eles foram destruídos”.

Na van, McCord e outros soldados encontraram Sajad Mutashar, de 10 anos, e Doaha Mutashar, de 5 anos, gravemente feridos. Seu pai, Saleh, que tentou resgatar o motorista à serviço da Reuters Saeed Chmagh, estava morto no chão. No vídeo, o piloto viu que havia crianças na van. “Bem, é culpa deles por trazerem os filhos para uma batalha”, diz ele insensivelmente.

Robert Gibbs, secretário de imprensa do presidente estadunidense Barack Obama, disse, em abril de 2010, que os eventos no vídeo foram “extremamente trágicos”. Mas eles deram com a língua nos dentes. Este vídeo mostrou ao mundo o verdadeiro caráter da guerra dos EUA no Iraque, que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, chamou de “ilegal”

O lançamento do vídeo por Assange e pelo WikiLeaks constrangeu o governo dos Estados Unido. Todas as suas reivindicações de guerra humanitária não tinham credibilidade.

A campanha para destruir Assange começa nesse ponto. O governo dos Estados Unidos deixou claro que quer julgar Assange por tudo, até traição. Pessoas que revelam o lado obscuro do poder dos EUA, como Assange e Edward Snowden, não têm quartel.

Há uma longa lista de pessoas – como Manning, Jeffrey Sterling, James Hitselberger, John Kiriakou e Reality Winner – que, se vivessem em países visados ​​pelos Estados Unidos, seriam chamados de dissidentes. Manning é uma heroína por expor crimes de guerra. Assange, que apenas a ajudou, está sendo perseguido em plena luz do dia.

Em 28 de janeiro de 2007, alguns meses antes de ser morto pelos militares dos EUA, Namir Noor-Eldeen tirou uma foto em Bagdá de um menino com uma bola de futebol debaixo do braço, caminhando ao redor de uma poça de sangue. Ao lado do sangue vermelho brilhante, estão alguns livros escolares amarrotados. 

Foi o olhar humano de Noor-Eldeen que foi para aquela fotografia, com o menino andando em volta do perigo como se isso não fosse nada de mais, nada mais do que lixo na calçada. Foi isso que a guerra “ilegal” dos Estados Unidos fez ao seu país.

Todos esses anos depois, essa guerra continua bem viva em um tribunal em Londres. Lá, Julian Assange, que revelou a verdade desse assassinato, lutará para não ser mais uma vítima da guerra dos EUA no Iraque.

Tradução: Vivian Fernandes para Brasil de Fato.

*Vijay Prashad é um historiador, jornalista e editor indiano. Ele escreve e é o editor-chefe da Globetrotter, um projeto do Instituto Independente de Mídia. Ele é editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.


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