29/03/2024 - Edição 540

Saúde

Enquanto Brasil ultrapassa 4 milhões de casos de covid-19, presidente faz discurso antivacina

Publicado em 04/09/2020 12:00 -

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Depois de toda a agitação gerada pelo presidente Bolsonaro – e em seguida pela Secretaria de Comunicação da Presidência – sobre a vacina da Covid-19, o secretário-executivo do Ministério da Saúde Élcio Franco Filho afirmou na quinta (3) que ela de fato não será obrigatória

Esse debate ainda promete ir longe, mas lembramos que, se o governo quisesse tornar o futuro imunizante obrigatório, precisaria obviamente garantir sua disponibilidade. Se tudo der certo com a vacina de Oxford/AstraZeneca, a previsão é que o acordo com a Fiocruz disponibilize cem milhões de doses até meados do ano que vem (e a farmacêutica defende a aplicação de duas doses por pessoa). Em São Paulo, o Instituto Butantan prevê ter inicialmente 60 milhões de doses da vacina da SinoVac.

“Dentro dos dados da epidemiologia, para se fazer uma imunização, não há previsão de vacinar 100% da população. Isso não é o normal, e sim os grupos de risco, como profissionais de saúde e segurança, aqueles que estão na linha de frente, aqueles que têm comorbidades, e este público prioritário está sendo estudado com vários órgãos”, disse o secretário. Na verdade, o normal é sempre procurar ter a maior cobertura possível. Mas, no meio da pandemia e enquanto não houver doses suficientes, está claro que devem ser estabelecidos critérios para priorizar determinados grupos.  O Ministério, porém, ainda não emitiu nenhum documento descrevendo qual será a estratégia brasileira de vacinação. 

Terraplanismo

O presidente defendeu que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina". Abre, dessa forma, uma nova fase na guerra política em que transformou a saúde pública brasileira desde o início da pandemia. Ignora que obrigatoriedade de vacina não é invadir casas como no passado – o próprio governo já condiciona o pagamento do Bolsa Família à imunização de crianças, por exemplo. O presidente quer, na verdade, inflamar os fãs radicais para reforçar o vínculo com quem protege seu mandato.

Esse discurso soa como música aos ouvidos de um naco de seus seguidores que acredita que a negação à vacinação coletiva é uma forma de resistir ao "Estado opressor". E a um outro grupo que acha que a vacina serve para inocula-los com chips para serem rastreados e controlados a partir de torres de celular 5G chinesas. Uma conspiração com a participação de bilionários, humoristas, Illuminatis, cavaleiros templários e aliens. Sem contar grupos que acreditam, por ideologia ou guiados por notícias falsas, que vacinas são inúteis e servem apenas para enriquecer a indústria farmacêutica.

Quantos estes são? Uma minoria, mas que não é desprezível. De acordo com o Datafolha, em agosto, 9% não tomariam uma vacina contra o coronavírus. Só para efeito de comparação: 7% dos ouvidos pelo instituto em outra pesquisa, em julho do ano passado, afirmam que a Terra é plana. Os números são menores que o montante de bolsonarismo-raiz, que está com o presidente para o que der e vier, que é de 12%.

Perceba, contudo, que Bolsonaro não veio dizer que "ninguém pode obrigar ninguém a pagar impostos". Impostos, esse instrumento do tal Estado opressor contra a liberdade do indivíduo. Ou que "ninguém pode obrigar ninguém a prestar serviço militar obrigatório" – a apesar da falta de sentido que serviço militar obrigatório faça hoje.

Mas claro que não falaria. Primeiro porque, se fizesse isso, seria devorado em poucos minutos em Brasília. Além disso, nem o mais inocente de seus sócios ultraliberais acredita mais que, no íntimo, sua visão de país seja de um Estado mínimo. Pelo contrário, seu governo pode não ser bom de política de saúde, de emprego, de educação, de moradia, de transporte, de cultura, de emprego… mas é craque em monitorar cidadãos e produzir dossiês.

Quando se fala em obrigatoriedade da vacina, isso não significa picar cidadãos à força, como acontecia há mais de cem anos. Mas restringir acesso a determinados direitos, por exemplo. O próprio Ministério da Cidadania afirma que manter a vacinação das crianças em dia é condicionante para continuar recebendo o Bolsa.

A questão é outra. Bolsonaro critica a obrigatoriedade da vacina para causar barulho e inflamar milícias ultraconservadoras e anticiência a fim de reforçar seu vínculo com elas – até aqui, elas têm garantido proteção a seu mandato. E como, nesse contexto, quanto mais ruído melhor, nega-se a estabelecer um diálogo honesto e claro com a população.

Ele poderia fazer o contrário. Explicar o que é uma vacina, por que ela deve ser tomada, quais os ganhos para a coletividade, mas também os riscos e os eventuais efeitos colaterais. Pois, diante de informações que dizem respeito à sua vida, o indivíduo tende a atuar de forma racional e pragmática. O indivíduo não é burro, apesar de ser tratado como tal por seus governantes.

O objetivo da comunicação de Bolsonaro na pandemia é confundir

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, caso de sucesso no combate ao coronavírus, estabeleceu uma comunicação franca, aberta e constante com a população, explicando o que o governo faria e como. Os cidadãos entenderam e seguiram as recomendações, fazendo com que seu país retornasse à vida (quase) normal de forma mais rápida e sem tantas baixas.

Por aqui, ao contrário, o presidente da República usou cadeia nacional de rádio e TV para menosprezar a doença, chamando uma pandemia que já matou mais de 122 mil pessoas de "gripezinha" ou "resfriadinho". E, sistematicamente, promoveu aglomerações, dando ele mesmo o mau exemplo em manifestações que pediam o fechamento do Congresso e do STF, afirmando que as quarentenas não funcionam e que bom mesmo é a cloroquina, remédio sem eficácia comprovada.

A comunicação, portanto, não foi pelo bem do cidadão, mas da guerra particular travada por ele em nome de sua reeleição.

Não à toa, a Secretaria de Comunicação (Secom), percebendo que a declaração de Bolsonaro atingiu em cheio as redes sociais e os seus grupos de WhatsApp, reforçou o recado.

Usou um canal institucional do Estado brasileiro para dizer que ninguém será obrigado a tomar vacina. Ou seja, utilizou recursos públicos em uma plataforma pública para bombar posicionamento ideológico do presidente. Pior, para cometer um crime contra a saúde pública. Diante da repercussão negativa, a Secom voltou a postar. Disse que "o Brasil é uma democracia, o governo é liberal e seu presidente não é um tirano".

Ironicamente, o próprio governo Bolsonaro teve a iniciativa de um projeto de lei para permitir a autoridades que determinem vacinação compulsória, da mesma forma que possam obrigar a realização de exames médicos, testes, coletas de amostrar e tratamentos médicos sobre a covid.

Conforme detalhou o UOL Comprova, serviço de checagem do UOL para desinformação, a lei a 13.979, de 2020, resultado desse projeto, foi sancionada por Jair Messias e também assinada pelos então ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e da Justiça, Sergio Moro.

Ou seja, Bolsonaro contradiz Bolsonaro. Não é descuido, mas parte de uma estratégia de comunicação. Fala para públicos diferentes com mensagens diferentes. Transporta o comportamento de comunicação microsegmentada das redes sociais para a vida off-line.

Direito à saúde da coletividade limita a liberdade de se fazer o que quiser

Não existem direitos absolutos. Nem o direito à vida é, caso contrário não haveria a legítima defesa. Portanto, é um erro afirmar que a liberdade do indivíduo de não se vacinar é comparável à garantia de saúde coletiva e de segurança sanitária de toda sociedade.

De acordo com Eloísa Machado, professora da FGV Direito São Paulo e coordenadora do centro de pesquisas Supremo em Pauta, "uma pandemia é um problema coletivo cuja solução é também coletiva. A vacinação, nesse caso, é forma de garantia de direitos".

Em uma comparação simplificada, ela afirma que uma pessoa não pode descumprir medidas básicas sanitárias em um restaurante só porque têm direito à liberdade e à livre iniciativa.

Por que isso é aceito então com a saúde púbica? O movimento antivacina nos últimos anos levou a uma pequena parte da população a evitar a imunização e, isso aumentou o número de casos de sarampo. Uma doença grave que poderia ser controlada se teorias da conspiração não fossem levadas a sério.

A situação nas escolas só não foi pior por que a maioria dos pais e mães é racional, vacinou seus filhos e criou um colchão de proteção sanitário aos filhos daqueles que se opõem à imunização.

Já teremos que torcer para que a efetividade das vacinas seja o suficiente para imunizar a população – o que depende de uma série de fatores do enfrentamento a uma doença nova. Agora, temos um presidente da República incendiando negacionistas em nome de seus interesses políticos. Com isso, nossas chances caem consideravelmente.

Vacina para tolice

A única coisa realmente bem distribuída no mundo é a tolice. É grande a quantidade de tolos. E como não há vacina contra asneira, todos correm o perigo de contágio. Em matéria de imunização, o governo decidiu roçar as fronteiras do impensável. No início da semana, o ministro interino da Saúde, o general paraquedista Eduardo Pazuello, nomeou um veterinário, Laurício Monteiro Cruz, para o cargo de Diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, responsável pelo gerenciamento do programa nacional de vacinação.

No dia seguinte, o presidente falou sobre vacinas como se estivesse com os pés no século 21 e a cabeça na era proterozoica, que é anterior ao aparecimento dos animais na Terra. Uma devota de Bolsonaro levantou a bola no cercadinho do Alvorada para que o presidente falasse sobre vacinação: "Ô, Bolsonaro, não deixa fazer esse negócio de vacina, não! Isso é perigoso." E o presidente concluiu o lance com uma cortada: "Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina."

Numa evidência de que a tolice é altamente contagiosa, a Secretaria de Comunicação do governo transformou a fala proterozoica do presidente em peça de propaganda. E se apressou em anotar nas redes sociais: "O governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros".

Chegamos, então, ao seguinte quadro: o governo é comandado por um presidente que, há duas semanas, disse em viagem ao Pará que as mais de 100 mil mortes que o coronavírus produziu no Brasil não existiriam se os doentes tivessem sido tratados desde o início com hidroxicloroquina. Esse mesmo Bolsonaro que trata como vacina um remédio sem eficácia confirmada, desdenha de uma vacina que o mundo aguarda com ansiedade.

Num mundo convencional, havendo uma doença, vacina-se o povo e está tudo resolvido. No caso do novo coronavírus, aguarda-se ansiosamente pelos testes que validarão as vacinas. Antes da conclusão, Bolsonaro trata da vacinação não como um presidente, mas com a displicência de um curandeiro. Em vez de esclarecer, confunde.

4 milhões de infectados

Enquanto isso, o Brasil superou na quinta-feira (3) a marca de 4 milhões de pessoas infectadas pelo coronavírus Sars-Cov-2, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Já os números do Ministério da Saúde, divulgados mais tarde do que o habitual nesta quinta-feira, foram levemente diferentes. A pasta reportou 43.773 novos casos e 834 mortes. O total acumulado, de acordo com esses dados, agora é de 4.041.638 infecções e 124.614 óbitos.

Ao todo, 3.247.610 pessoas se recuperaram da doença, e 669.414 estão em acompanhamento, segundo o ministério. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O ritmo de transmissão da covid-19, por sua vez, está em desaceleração. Segundo o Imperial College de Londres, a taxa de contágio no país é atualmente de 0,94, a mais baixa desde o final de abril. O índice, que mostra para quantas pessoas um paciente contaminado transmite o vírus, era 1 na semana passada, e 0,98 na semana anterior.

Mas entidades de saúde alertam que ainda é cedo para declarar vitória e que medidas de contenção contra o coronavírus não podem ser relaxadas no país.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 837.978 casos e 30.905 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados em praticamente todos os países do mundo, exceto Estados Unidos (6,1 milhões), Índia (3,8 milhões) e Rússia (1 milhão). Ou seja, se São Paulo fosse um país, seria o quinto mais afetado do planeta.

A Bahia é o segundo estado brasileiro com maior número de casos, somando 265.739, seguida do Rio de Janeiro, com 230.271 infecções, e Minas Gerais, com 224.987. O Ceará vem em quinto na lista, com 219.672 ocorrências positivas.

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 16.394 óbitos. Em seguida vêm Ceará (8.493), Pernambuco (7.656), Pará (6.215), Minas Gerais (5.591) e Bahia (5.549).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes é atualmente de 59,3 no Brasil – cifra bem acima da registrada em países vizinhos como a Argentina (20,49) e o Uruguai (1,28). O número brasileiro também supera o dos Estados Unidos, o país mais atingido do mundo, que tem taxa de mortalidade de 56,77.

Por outro lado, nações europeias duramente atingidas, como o Reino Unido (62,57) e a Bélgica (86,66), ainda aparecem à frente, embora suas taxas estejam praticamente estabilizadas, enquanto a brasileira segue crescendo.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes por coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 6,13 milhões de casos. Ao todo, mais de 186 mil pessoas morreram pela covid-19 no país.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, agora é a terceira nação com mais infectados e mortos, somando 3,85 milhões de casos e 67,3 mil óbitos.

Na quinta-feira (3), o país asiático bateu um novo recorde mundial de infecções diárias, ao registrar 83.883 casos em apenas 24 horas.

Ao todo, o mundo já registrou mais de 26,1 milhões de pessoas infectadas pelo coronavírus, enquanto mais de 865 mil morreram em decorrência da doença.


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