19/04/2024 - Edição 540

Brasil

O Casa Verde e Amarela que a propaganda esconde

Publicado em 03/09/2020 12:00 -

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O governo federal lançou, no último dia 25, o Programa Casa Verde e Amarela. Como pretendo demonstrar, esse “programa” não passa de uma sequência de tons de cinza, uma cortina de fumaça que esconde em detalhes a institucionalização de mecanismos de espoliação e expropriação urbana.

A primeira grande cortina a se descerrar, curiosamente, está no último artigo da Medida Provisória 996/2020 de 26 de agosto (MP 996), que cria o programa. Trata-se de uma peça de marketing eleitoral do governo, que determina, por lei, que a partir desta data “todas as operações com benefício de natureza habitacional geridas pelo Ministério do Desenvolvimento Regional integrarão o Programa Casa Verde e Amarela”.

Sem dúvida, um programa que já surge com uma execução substancial, um sucesso. O Programa Casa Verde e Amarela entregará ao menos 200 mil unidades habitacionais da faixa 1 do MCMV (Minha Casa Minha Vida), a de mais baixa renda, nos próximos meses e anos sem nunca ter assinado um contrato!

Totalmente desenhado nos escritórios de Brasília, o tal programa bicolor não dialogou com a sociedade civil, que deixou de ter participação na política urbana desde a extinção, por decreto, do Conselho Nacional das Cidades, no início de 2019. Ainda que em seguida o ConCidades tenha ressurgido via decisão do STF, na prática, hoje, inexiste. No Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), herdeiro do Ministério das Cidades, não há nem uma salinha para o moribundo, que vem convalescendo desde o governo Temer. Sendo assim, não se surpreendam com as novidades, o poder dos lobistas associado à tecnocracia revelam-se produtivos em home office.

Para assegurar essa prática, como não poderia deixar de ser, a MP 996 traz mudanças na transparência dos programas e das políticas de habitação de interesse social. A Lei do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) é alterada e as definições sobre financiamentos, critérios, taxas aplicadas e outras deixam de ser realizadas dentro do SNHIS (Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social) e passam a ocorrer apenas no Conselho Curador do Fundo. Da mesma forma, muda-se a lei do SNHIS, em seu artigo 14, que definia a obrigatoriedade do governo sempre consultar o ConCidades para estabelecer qualquer tipo de regra e planejamento dos programas habitacionais, definindo que o MDR “poderá” de agora em diante realizar oitivas mediante consulta pública.

Sob gestão do MDR, o programa que levou um ano e nove meses para ser desenhado, tem como objetivo declarado facilitar o acesso da população à moradia digna, com meta de atingir, pelo menos, 1 milhão de pessoas “que estavam fora do sistema de financiamento habitacional (…), totalizando 1,6 milhão de famílias de baixa renda beneficiadas com contratos de crédito imobiliário até 2024”, segundo o sitio internet do MDR. Para que se esclareça, esses tais contratos não significam casas, podendo ser nada mais que um contrato de melhoria habitacional, como o financiamento para colocar reboco em paredes, por exemplo!

Segundo a fala do Ministro do Desenvolvimento Regional, Rogerio Marinho, durante o ato de lançamento do programa, as famílias mais pobres, que ganham até R$ 1.800 mensais, e que correspondem à Faixa 1 do Programa MCMV, onde está a maior parte do déficit habitacional brasileiro, estão excluídas de novos contratos de provisão habitacional. Ainda que o programa vá, magicamente, entregar ao menos 200 mil casinhas só nesta faixa de renda!

A Casa Verde e Amarela das famílias mais pobres estará vinculada apenas às ações de melhorias habitacionais e regularização fundiária, com recursos oriundos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS). E, é aí que tudo começa a ficar menos colorido. O resto é a vida que segue dos financiamentos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e do FGTS.

Esclarecendo, tirando a jogada de marketing, o programa bicolor não altera em nada a provisão habitacional. Mudanças em taxas de juros, de nomenclaturas e outras tantas anunciadas estão ocorrendo dentro do quadro de programas e ações de provisão habitacional previamente existente no governo federal, agora com uma nova marca! Para os interessados neste marketing, sugiro a leitura do release do MDR com suas metas e promessas, e fiquemos sempre de olho nas regulamentações que deverão surgir nas próximas semanas, como por geração espontânea, de algum gabinete da Esplanada.

Descortinado o marketing da provisão habitacional bicolor, resta-nos então olhar para os detalhes da MP, para aquilo que chamo institucionalização da espoliação e expropriação urbana.

Para entender esse processo é necessário adentrar a legislação que foi alterada pela MP e conhecer um pouco da história do FDS e da logica de desenvolvimento urbano ao sul do equador.

A MP altera as seguintes leis que regem a habitação de interesse social e a regularização fundiária no Brasil: a Lei 8.036/1990, que rege as aplicações do FGTS; a Lei 8.100/1990 sobre prestações do Sistema Financeiro da Habitação (SFH); a Lei 11.124/2005 do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS); a Lei 11.977/2009 que institui o MCMV; a Lei 13.465/2017, de regularização fundiária; e a Lei 8.677/1993 do FDS. Vamos nos concentrar nessas três últimas: MCMV, regularização fundiária e FDS, e revelar como juntas elas criam um novo mecanismo que irá fomentar a gentrificação em nossas cidades.

Antes ainda, é necessário relembrar como a urbanização acontece no Brasil, na América Latina e no Sul Global. Infelizmente, não está mais entre nós o professor Lucio Kowarick, a quem presto aqui minhas homenagens. Falecido no dia anterior ao lançamento desse engodo, Kowarick foi um mestre em decifrar os ardilosos mecanismos da “espoliação urbana”, engrenagem essencial da urbanização no capitalismo periférico. Kowarick ensina como a “desordem urbana” (a velha máxima que não temos planejamento, ou a chamada informalidade) é um instrumento essencial para garantir o funcionamento das nossas cidades: desiguais, excludentes e segregadoras.

A espoliação urbana retira do trabalhador as condições para que este possa aceder socioespacialmente. São inúmeras horas dedicadas à autoconstrução da casa, tempo que se perde no transporte precário, sobre preço que se paga para ter acesso a serviços e produtos em áreas de péssima urbanização, além de todas as precariedade que se sobrepõe ao seu CEP.

A maior parte da urbanização brasileira acontece por meio desta autoconstrução. Um mecanismo individual de sobrevivência de famílias, mas que dada a sua dimensão e todas as suas demais relações econômicas, sociais e espaciais, constitui um setor da economia em si, marginalizado, porém não dissociado da economia urbana. O mercado capitalista nunca se interessou por essa faixa da população que, relegada à própria sorte, criou uma alternativa habitacional viabilizada pelas regras urbanísticas rígidas de uma cidade ideal, importada dos manuais, a cidade que sempre foi planejada, regulada.

Tudo aquilo que é edificado fora das regras possíveis de serem seguidas por poucos recebe a classificação de irregular, ilegal, clandestino e informal, é a produção da desordem urbana. O valor baixo dessas terras, dadas as restrições existentes e impostas, viabilizava a ocupação por pessoas de baixa renda. O Estado e o capital, seja via políticas públicas, seja via salários, não arcam com os custos envolvidos para a reprodução da força de trabalho e, assim, a cidade é dividida. O normal, o corriqueiro, a maioria, é excluída dos investimentos em urbanidade. Torna-se invisível nos mapas do planejamento a pobreza urbana, que ressurge em períodos eleitorais ou quando as terras que ocupam passam a ser de interesse do mercado imobiliário tradicional.

A gradual consolidação das chamadas periferias, resultado do esforço e investimento das famílias, de benfeitorias e regularizações fundiárias e urbanísticas parciais e longas lutas sociais, insere, no lado de cá do muro da cidade dividida, novos estoques imobiliários. Revalorizados, sob novas regras e regulações, formais, essas áreas passam a não mais caber no orçamento dos mais pobres. Segue-se a expropriação. O mercado fundiário tradicional se beneficia então de décadas de investimentos e lutas das famílias. Espoliação e expropriação urbanas. O capítulo seguinte, já bastante conhecido nas áreas centrais das capitais brasileiras, é o processo de gentrificação.

Mas como o governo Bolsonaro aprofunda essa situação, elevando essa lógica ao nível de um estelionato institucionalizado da pobreza, com requintes de perversão, verde e amarela?

Primeiro vamos falar do FDS. O Fundo foi criado pelo Decreto 103/1991, tendo seu regulamento aprovado em 1994, alterado em 2001 e, apenas em 2004, já no governo Lula, passa a ter seus recursos executados através do Programa Crédito Solidário. Esse fundo não pode ser acessado por entes públicos, e sua história de execução, até o momento, era de produção de moradias para população de baixa renda no regime de associativismo. Entidades reunindo moradores, os mutuários, garantem o protagonismo da população na solução dos seus problemas habitacionais. Isso é o que se denomina Produção Social da Moradia.

A execução do FDS, via Credito Solidário, evolui para o MCMV-Entidades, que engloba sobretudo a faixa 1 do MCMV e produz moradia fora do mecanismo tradicional do mercado, em que o governo (MCMV) garante a demanda via financiamento, mais ou menos subsidiado ao mutuário, e assegura a oferta contratando unidades habitacionais diretamente das construtoras. No caso do FDS, são as famílias reunidas em associação, cooperativa ou entidades que acessam o financiamento e executam e contratam as obras.

A lógica solidária da execução do FDS foi transformada em uma lógica individual e mercantilista com a MP 996/2020. O limite de renda das famílias foi majorado e os recursos serão contratados diretamente pelas famílias, através de empresas privadas, que estarão a cargo da regularização fundiária para os mutuários de baixa renda, além de poderem ser contratadas algumas melhorias habitacionais. A associação e o cooperativismo, ou seja, a organização das famílias foi colocada de lado.

Houve uma série de mudanças para a retomada de imóveis por inadimplência, facilitada ao não mais prever a execução de leilões, que garantiria a concorrência aos moldes da lei de licitações. Aprofundou-se ainda mais essa lógica individual ao aplicar também aos mutuários do FDS os artigos 7a, 7b e 7c da Lei do MCMV, que versam sobre a retomada de imóveis por situações variadas relativas a arrendatários do FAR.

Além disso, foram inseridos na lei do MCMV novos artigos que chegam a prever o uso da força policial para a retomada de imóveis objeto de financiamento pelo FDS. Ou seja, tratando de famílias de baixíssima renda, em condições históricas de falta de segurança na posse, vislumbra-se fazer a regularização fundiária em que os mutuários se associam a empresas privadas para aceder a um financiamento com regras rígidas de retomada de imóveis, por causas diversas ao objeto contratado, além da inadimplência, inclusive com o uso da força policial.

Há aqui um desenho de aproximação entre o galinheiro e a raposa, com várias portas de entrada no galinheiro, todas destrancadas.

Para que o mecanismo de espoliação e expropriação institucionais possa funcionar, houve a alteração na Lei 13.465/2017, que trata da regularização fundiária. Essa Lei define, em seu artigo 13, dois tipos de regularização fundiária: a REURB-S e a REURB-E.

A REURB-S é a “regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal”. A REURB-E não se qualifica na primeira hipótese, ou seja, trata-se de áreas não definidas pela municipalidade como de baixa renda. O Programa Casa Verde e Amarela, através do FDS, pode disponibilizar financiamento para moradores e empresas realizarem a REURB-S.

Entretanto, na prática histórica e no aparato legal brasileiro, a regularização fundiária de interesse social é de responsabilidade do poder público, que deve arcar com os custos, realizar estudos, levantamentos e projetos diretamente ou via empresas contratadas. Busca-se, assim, assegurar o direito de acesso à terra, à moradia e à segurança da posse e da propriedade para os ocupantes dessas áreas. Conforme as prerrogativas constitucionais e os acordos internacionais que o Brasil subscreve, intenta-se assim proteger os mais despossuídos da espoliação e da expropriação impostas por interesses múltiplos do mercado imobiliário.

É aí então que se verifica o chamado pulo do gato. A MP 996/2020 muda o artigo 33 da Lei da regularização que definia como responsabilidade exclusiva do poder público a REURB-S, a qual passa a ser discricionária do próprio gestor publico local, ou nos termos da MP, quando este entender “necessária”.

Ao mesmo tempo, a MP passa a permitir que os moradores, os legitimados, promovam a regularização às suas expensas, e arquem com todos os custos do projeto e documentações através do financiamento via FDS.

Ou seja, tira a obrigatoriedade exclusiva do município e viabiliza que as famílias, ou empresas interessadas na área, recorram ao financiamento para pagar por um direito reconhecido por lei. Inclui-se nessa lógica esdrúxula todos os riscos assumidos pelas famílias, os novos instrumentos e mecanismos para a recuperação de imóveis por inadimplência e outros motivos e a autorização prévia do uso da força policial para tanto. Isso tudo em um país com um largo histórico de insegurança na posse relacionada às camadas mais pobres da população.

Em síntese, e conforme pode ser depreendido da MP, das declarações do governo durante o lançamento do programa e dos releases do MDR, o Casa Verde e Amarela é uma peça de marketing, uma apropriação de contratos prévios do MCMV, nada além da revisão de regulações de fundos e programas já existentes e mudança de nomes.

A novidade é a institucionalização da espoliação e expropriação urbana.

Como se costuma dizer, o diabo mora nos detalhes. O governo cria uma cortina de fumaça, e ao vender a ideia de uma pátria verde e amarela pinta a realidade com diversos tons de cinza.


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