29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Ibama contraria técnicos e entrega chefia estratégica a funcionário da Abin

Publicado em 03/09/2020 12:00 -

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Um funcionário da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, foi alçado ao comando de uma unidade crucial no combate aos crimes ambientais do Ibama. André Heleno Silveira, um oficial de inteligência que não tem qualquer experiência comprovada na área, foi nomeado o novo chefe da Coordenação de Inteligência de Fiscalização, setor que faz investigações e abastece com dados as principais operações do órgão contra a destruição da Amazônia e outros biomas brasileiros.

Publicada em 21 de agosto, a nomeação assinada pelo presidente substituto do Ibama, Luis Carlos Hiromi Nagao, ignorou um aviso feito por servidores do próprio órgão. Em nota técnica entregue à diretoria, em julho, eles recomendaram que não se colocasse uma pessoa de fora do órgão à frente da unidade. O grupo argumentou, entre outros motivos, que a área produz dados sigilosos e que eventuais vazamentos ameaçam o sucesso da fiscalização.

Desde 2010 a área teve apenas três coordenadoras, todas elas analistas ambientais com anos de serviço no instituto. O próprio regulamento de fiscalização do Ibama determina que a atividade de inteligência seja exercida por servidores de carreira. Mas o governo Jair Bolsonaro desprezou o parecer técnico e as regras do órgão. Não é a primeira vez. Já contamos como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, loteou o órgão com policiais militares sem nenhum conhecimento técnico.

Coordenar a Inteligência de Fiscalização exige conhecimento especializado. A cada ano, a unidade elabora um documento que classifica todos os crimes ambientais do país conforme a área em que ocorrem, a frequência com que são flagrados e seus impactos no meio ambiente. É com base nos dados da unidade que o Ibama planeja suas principais operações contra madeireiros, garimpeiros, traficantes de animais e outros criminosos.

Silveira, um paranaense de 36 anos, chegou ao cargo em circunstâncias misteriosas. Em maio deste ano, quando trabalhava em Manaus, ele foi chamado pelo Ibama para ser “consultor” da coordenação de fiscalização em Brasília, apesar de não ter nenhuma credencial para essa função.

Nos três meses em que esteve na capital federal, a partir de 18 de maio, Silveira consumiu mais de R$ 17 mil em diárias e passagens para “participar de ações de planejamento de combate ao desmatamento na Amazônia”, segundo a justificativa oficial de sua viagem.

O que causou espanto no Ibama, porém, é que a área de inteligência não foi consultada sobre o recrutamento do agente da Abin e nem informada sobre as atividades que ele exercia, segundo dois fiscais com quem conversei e que me pediram anonimato devido ao risco de represálias.

Por todo o tempo em que trabalhou “emprestado” ao órgão, Silveira interagiu apenas com a cúpula da área de fiscalização, que desde abril está sob domínio de dois ex-comandantes da Rota, a violenta tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo. Foram estes PMs que Salles escolheu para substituir os antigos dirigentes, que foram demitidos sem explicações após uma operação contra o garimpo ilegal em terras indígenas no sul do Pará.

O padrinho de Silveira no Ibama é Leslie Jardim Tavares, que aproveitou a mesma degola de abril para assumir a coordenação de operações de fiscalização, subordinada aos PMs. Assim como o funcionário da Abin, Tavares trabalhava no Amazonas, onde era braço direito do coronel da reserva da PM Olímpio Ferreira Magalhães. Até assumir a diretoria de proteção ambiental em Brasília, Magalhães foi chefe do Ibama no estado.

A falta de transparência sobre a atuação de Silveira irritou os fiscais do Ibama, que chegaram a suspeitar que o funcionário da Abin estivesse trabalhando em uma espécie de atividade paralela de inteligência na diretoria de proteção ambiental.

No dia 2 de julho, a coordenadora da unidade, Sabrina Rodrigues Silva, deixou o cargo alegando motivos pessoais. Foi durante esse vácuo de comando na unidade, em 10 de julho, que os técnicos alertaram a diretoria para a necessidade de preencher a vaga com um servidor de carreira. A recomendação sequer foi respondida.

O diretor Olímpio Magalhães se manifestou sobre a nota dos técnicos somente 41 dias depois, em 20 de agosto. Não para discutir a preocupação deles, como se esperava, mas para questionar se o seu subalterno, o também PM da reserva Walter Mendes Magalhães, havia orientado a equipe a fazer aquela nota, algo que ele se apressou em negar no mesmo dia. Àquela altura, porém, o debate era inócuo: já no dia seguinte, a nomeação do funcionário da Abin aparecia no Diário Oficial da União.

Perguntei ao Ibama por que o alerta dos técnicos foi ignorado pela diretoria e qual era o trabalho de Silveira como “consultor” do órgão. Também questionei a respeito das qualificações na área ambiental que possam justificar a nomeação dele para um cargo de chefia, e se ele fez algum serviço de “inteligência paralela”, como suspeitam os servidores. Todas as perguntas ficaram sem resposta.

Também procurei Silveira diretamente, mas ele não respondeu às várias tentativas de contato por ligações, mensagens de WhatsApp e e-mail.

Ao ministério do Meio Ambiente, perguntei se a pasta foi consultada sobre a nomeação e deu aval a ela. Tampouco houve retorno.

O espaço está aberto para manifestações.

Como o governo sabota Ibama e ação contra o garimpo

A operação do Grupo Especializado de Fiscalização (GEF), a tropa de elite do Ibama, contra garimpo ilegal foi alvo, no início de agosto, de vazamento e também contou com a obstrução do Ministério da Defesa. A primeira ação do grupo realizada em 2020 – de um total de oito planejadas para o ano – ocorreu em Jacareacanga, uma vila de garimpeiros e indígenas no sudoeste do Pará considerada “área vermelha” de exploração ilegal de ouro.

A operação na terra indígena (TI) Munduruku foi prejudicada por um vazamento de informações, que exigiu redirecionamento da ação de fiscalização. A suspeita é de que o vazamento pode ter partido do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que não tem a mesma cultura de sigilo do Ibama e que pode ter disponibilizado informações privilegiadas a garimpeiros da região.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, segue a mesma linha de Jair Bolsonaro na defesa da exploração mineral em terras indígenas. Pressionado pela comunidade internacional, ele acompanhou a operação deste mês, o que não o impediu de, depois de sobrevoar áreas de garimpo ilegal, se reunir com lideranças garimpeiras e defender que a exploração seja legalizada.

Outro fator que interferiu na operação e chamou a atenção de agentes ambientais foi a interferência do Ministério da Defesa, que ordenou a suspensão da operação Verde Brasil 2 na tentativa de impedir o prosseguimento da ação do GEF. A ordem veio em reação a protestos locais de garimpeiros. A Verde Brasil visa combater ilícitos ambientais na Amazônia Legal com o emprego das Forças Armadas em Garantida da Lei e da Ordem (GLO).

No entanto, as operações do grupo do Ibama não transcorrem no âmbito da GLO e são independentes. Como a pasta não possui gerência sobre a ação fiscalizatória do Ibama, a Defesa buscou dar efetividade à decisão apreendendo aeronaves do órgão ambiental. As aeronaves ficaram retidas administrativamente por dois dias, o que impediu o prosseguimento da ação na região. A Defesa teria agido, inclusive, sem a ciência do MMA. Questionado especificamente sobre esse ponto, o Ministério da Defesa não respondeu.

Entenda a operação

As operações do GEF costumam ser deflagradas com sigilo, dado que é preciso garantir o efeito surpresa no ataque e preservar a segurança dos agentes. Caso tenham ciência prévia, as vilas de garimpeiros escondem o maquinário para impedir sua apreensão e autuação. Informações sobre a ação circularam em grupos de WhatsApp e blogs da região. O blog Rastilho de Pólvora, por exemplo, divulgou que a operação seria deflagrada dentro de três dias.

A divulgação repercutiu nas frentes de exploração mineral ilegal do interior da TI Munduruku, que resultou em imediata interrupção das atividades garimpeiras e ocultação dos maquinários pesados. Um sobrevoo precursor de um VANT (veículo aéreo não tripulado) confirmou que as máquinas usadas para garimpo na TI foram escondidas. O fato exigiu que a operação fosse redirecionada para uma área secundária, Sai Cinza, fronteira de Munduruku. Para os agentes, é fundamental a neutralização dos maquinários para cessar o dano ambiental e ocasionar prejuízo financeiro aos garimpeiros.

Salles, que acompanhava a operação, pousou no aeroporto de Jacareacanga, onde defendeu que o índio explore a terra e insuflou garimpeiros locais. Com os ânimos exaltados, uma ordem do Ministério da Defesa suspendeu a Operação Verde Brasil 2 na região da terra indígena Munduruku para uma “reavaliação”, segundo justificativa da pasta. A ordem foi dada pelo major-brigadeiro do Ar, Arnaldo Augusto do Amaral Neto.

Como a operação do Ibama era independente, a forma encontrada para suspender sua realização foi a proibição de decolagem de três helicópteros do órgão estacionados na base aérea da Serra do Cachimbo. Fontes do Ibama que falaram sob a condição de anonimato ao Congresso em Foco avaliam que a Defesa é contrária à inutilização de maquinário, prática amparada pela legislação e a ações mais ostensivas.

O garimpo ilegal de ouro tem aliciado indígenas da etnia Munduruku e provocado destruição nos afluentes do rio Tapajós, que deságua no Rio Amazonas. De acordo com levantamento feito pela ONG Greenpeace, nos primeiros quatro meses de 2020, houve aumento de 58% no desmatamento para garimpo na TI Munduruku, ante o mesmo período do ano anterior.

Ao acompanhar a ação e, ao mesmo tempo, defender o garimpo em terra indígena, a avaliação é de que Salles teve um derrota dupla, pois se queimou dentro do Ministério do Meio Ambiente, perante a comunidade internacional e, também entre garimpeiros. O ministro foi impelido a acompanhar a operação (contando, inclusive, com jornalistas convidados) por pressão internacional e determinações judiciais, que apontam omissões na fiscalização em áreas de garimpo ilegal na Amazônia.

Por meio da assessoria do Ministério do Meio Ambiente, a reportagem procurou Ricardo Salles para comentar as informações, mas não recebeu resposta. O espaço permanece aberto.

Com o redirecionamento, a operação do GEF/Ibama transcorreu com sucesso e, além da ação principal do dia 5 de agosto, foram realizadas ações em unidades de conservação próximas. Com a liberação das aeronaves, dois dias depois, a equipe atuou em área protegida no norte do estado do Mato Grosso, Parque Nacional do Juruena e no Parque Nacional do Rio Novo, obtendo relevantes resultados e materiais para concretizar procedimentos administrativos, além de inquéritos nas esferas criminal e cível. Ao todo, foram apreendidas e inutilizadas 14 escavadeiras hidráulicas, 3 tratores de pneu, 1 trator de esteira, 2 caminhões, 28 motores, 4 motocicletas, 3 quadriciclos, 24.000 litros de diesel, 1 motosserra, além de 2 espingardas, 1 revolver e munições.

FAB transportou garimpeiros

Além da obstrução direta à operação do Ibama, o governo também interferiu apoiando garimpeiros locais. Uma aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) que havia pousado em Jacareacanga no dia 5 de agosto, a pretexto de apoiar o combate à mineração ilegal na terra indígena Munduruku, decolou para Brasília com sete garimpeiros a bordo nno dia 6 de agosto. Em carta ao Ministério Público Federal (MPF), lideranças Munduruku negaram a existência, nesse grupo, de representantes dos povos indígenas.

Na semana passada o MPF abriu investigação sobre o caso. A situação pode configurar improbidade administrativa por desvio de finalidade. De acordo com a resposta da FAB ao MPF, a determinação para ceder uma aeronave foi acompanhada da ordem para suspender temporariamente a operação Verde Brasil 2 na região de Jacareacanga, posteriormente retomada.

Deputados federais do PV enviarão um requerimento de informações (veja a íntegra) ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, para questionar o porquê de barrar a operação de fiscalização do Ibama, a qual estava devidamente amparada pela legislação vigente e que era determinante para a proteção dos recursos naturais.

“O cúmulo da parcialidade e da falta de compromisso, principalmente com a saúde dos indígenas, foi o convite a um grupo de garimpeiros mundurukus aliciados, que embarcou em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo a Brasília, onde fariam reuniões com o governo federal sobre o assunto”, dizem os parlamentares no pedido, que ainda está em trâmite na Câmara dos Deputados.

O líder do PSB, Alessandro Molon (RJ), também enviou um requerimento de informações ao vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, e para os Ministérios da Defesa e do Meio Ambiente.

Na avaliação de agentes ambientais, o transporte de garimpeiros em avião da FAB os empodera e pode prejudicar novas operações. Além disso, a paralisação da fiscalização expõe divergências entre a atuação do Ibama e das Forças Armadas, que atuam na região no âmbito da GLO.

O presidente Jair Bolsonaro defende a mineração em terras indígenas desde a campanha eleitoral. Em fevereiro deste ano, o Poder Executivo apresentou um projeto de lei (veja a íntegra) para permitir extração mineral em TI. A matéria precisa passar pela análise de uma comissão especial, o que ainda não foi feito devido à pandemia.

Com a palavra, o Ministério da Defesa

Em resposta à reportagem, o Ministério da Defesa afirmou que na operação na reserva indígena Munduruku foram utilizadas aeronaves da Força Aérea apenas para prestar apoio logístico aos servidores do Ibama, sem emprego de militares em solo.

A pasta também disse que a suspensão das operações atendeu a solicitação dos indígenas, para permitir avaliação de resultados e a realização de encontro de representantes dos indígenas com o MMA, em Brasília. “Ainda na quinta-feira (6/8), representantes dos indígenas Mundurukus foram transportados para Brasília, em aeronave C-95 da Força Aérea Brasileira. Eles foram recebidos no MMA e apresentaram seus pleitos e preocupações”, prossegue a nota.

Questionada sobre a obstrução de uma operação independente do Ibama, a pasta pontuou que “todas as ações referentes à Amazônia são coordenadas no âmbito do Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo Vice-Presidente da República”. A Defesa afirmou também que atua em conjunto com órgãos parceiros, quais sejam: Ibama, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), Polícia Federal, Policia Rodoviária Federal, Força Nacional de Segurança Pública, Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam).

Ainda, a pasta colocou que o decreto presidencial que ativou a Verde Brasil 2 autorizou o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem e em ações subsidiárias na faixa de fronteira, nas terras indígenas, nas unidades federais de conservação ambiental e em outras áreas federais nos Estados da Amazônia Legal.

“Especialmente em um momento em que o País é acusado injustamente de não cuidar da região, torna-se fundamental o concurso das Forças Armadas, pelas suas capacidades operacional e logística peculiares, essenciais para apoiar tempestivamente os esforços de todos os órgãos ambientais envolvidos.”


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