26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Vacina para a Covid: ‘Não existe bala mágica’

Publicado em 31/08/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Há pouco mais de quatro anos, Rodrigo Stabeli estava envolvido na coordenação das ações da Fiocruz no enfrentamento ao vírus zika e suas consequências — a doença havia sido declarada pela OMS, em fevereiro de 2016, como emergência de saúde pública de importância internacional. A ciência brasileira buscava então decifrar alguns enigmas como a relação do vírus com a síndrome congênita que acometia recém-nascidos. Pesquisador da Fiocruz na área de biotecnologia, Rodrigo não poderia imaginar que, poucos anos depois, os cientistas estariam diante daquela que ele define como “a maior crise da humanidade contemporânea”: a pandemia do novo coronavírus. A busca por uma vacina é uma corrida contra o tempo, mas são significa abrir mão de requisitos que garantam a segurança de quem vai ser imunizado. “Não existe bala mágica quando a gente trabalha com medicamentos humanos. Precisamos primeiro pensar na segurança e na vida daquela pessoa que vai receber o produto”, explica.

Atualmente ele integra o grupo de enfrentamento à covid-19 na mesorregião norte de São Paulo, em Ribeirão Preto, e coordena a plataforma de Medicina Translacional da Fiocruz São Paulo, em parceria com a USP. O pesquisador ressalta que cada uma das fases para o desenvolvimento de uma vacina tem um percurso que não pode ser quebrado. “Queremos chegar no produto que cause nenhum ou o mínimo efeito adverso necessário para que se consiga ter o efeito protetivo. Não podemos mudar de fase e temos que ter muito bem documentados os ensaios clínicos, para garantir a segurança e a idoneidade do produto”, pontua. O nascimento de uma vacina é como uma escada em que cada degrau é importante para se chegar ao destino.

Para Rodrigo, a crise provocada pelo novo coronavírus não foi apenas de saúde, mas social, e as soluções — incluindo a vacina — devem ser pensadas para toda a população. “Ela estampou a desigualdade social no Brasil e no mundo”, pontua. Segundo ele, a vacina deve ser parte de uma política pública consistente de mitigação da doença e não de “protelação de mortes”. “Não podemos aceitar políticas que façam com que o vírus se torne endêmico, como dengue, zika e chikungunya. Não podemos aceitar a convivência da sociedade brasileira com o novo coronavírus”, completa. A vacina é apenas um passo no enfrentamento à pandemia, porque o mundo precisa se adaptar aos desafios colocados pela covid-19. “Primeiro, porque nós não sabemos qual é a capacidade de cobertura vacinal, quanto tempo ela vai se manter. Segundo, as doses são limitadas, a gente não consegue produzir doses para garantir a cobertura de toda a população”, reflete.

 

Em condições normais, como se dá o desenvolvimento de uma vacina?

Nas condições normais, a gente tem longos anos. Uma vacina, como qualquer medicamento utilizado em seres humanos, tem uma primeira fase de investigação. Primeiro, investiga-se o interesse vacinal, ou seja, aquela moléstia que se quer prevenir. Vacina, na verdade, é um mecanismo de prevenção, não é de cura. Ela vai prevenir que a doença se desenvolva; ou se desenvolver, que seja de maneira branda. Existe uma primeira fase que é exploratória, restrita a laboratório. É o momento em que se analisam os famosos princípios antigênicos, ou seja, procuramos quais substâncias, moléculas ou partes do ser vivo causador da moléstia poderão servir de peças para montar esse quebra-cabeça do desenvolvimento de uma vacina. Quando achamos a molécula — ou as moléculas —, quando montamos essa composição de vacina, ainda existe uma fase considerada pré-clínica ou não clínica. Os dados são analisados em testes animais com outros mamíferos, como camundongos, coelhos e macacos.

E quando é possível testar em humanos?

Depois de tentada essa eficácia prévia, passa-se para as fases em humanos, que são divididas em três. A primeira busca testar apenas a segurança do produto. Será que é tóxico para seres humanos? Será que vai causar muitos efeitos adversos? Essa primeira fase é feita em adultos saudáveis, numa faixa de segurança, ou seja, adultos jovens — geralmente se exclui grupos vulneráveis, crianças e gestantes. O teste é feito em poucas pessoas, geralmente de 20 a 100 pessoas. Se o produto é seguro, passa-se para uma segunda fase, em que se analisa com mais detalhes a segurança do produto, mas também começamos a olhar se esse produto é antigênico, se ele começa a acordar e dar alguma resposta imunológica. Vencidas essas fases, vamos para uma fase 3, em que se foca na eficácia do produto, inclusive no público-alvo a que se destina a vacina. Ela é testada em milhares de pessoas, principalmente buscando multicentros e uma miscigenação de pessoas, para verificar se ela é eficaz e se tem um efeito imunomodulador duradouro, ou seja, se ela é capaz não só de acordar o sistema imunológico, mas também manter essa proteção por um longo período.

Que dificuldades podem surgir nesse percurso e qual a chance, em geral, de sucesso?

Geralmente essas fases levam mais de 10 anos para serem realizadas. Primeiro para se ter um produto bom; e segundo (e o mais importante), para se ter segurança. O objetivo da vacina é a prevenção e é importante que todas essas fases sejam monitoradas, observadas e avaliadas por pares, por meio de avaliação externa, para que seja garantida, uma vez aprovada, a segurança dessa vacina que será aplicada em seres humanos. Então veja: primeiro temos dificuldades para achar as moléculas necessárias para ser um bom antígeno. A pesquisa laboratorial demora muito tempo. Até hoje a gente busca antígenos vacinais para HIV, para a própria dengue não temos uma vacina muito eficaz. Essa parte laboratorial é extremamente importante. A segunda barreira é a segurança do produto. Queremos chegar no produto que cause nenhum ou o mínimo efeito adverso necessário para que se consiga ter o efeito protetivo. Para isso, não podemos mudar de fase e temos de ter muito bem documentados os ensaios, para que possamos garantir a segurança e a idoneidade do produto. Cada uma das fases tem um percurso e uma linha de desenvolvimento. Não existe bala mágica quando a gente trabalha com medicamentos humanos. Precisamos primeiro pensar na segurança e na vida daquela pessoa que vai receber o produto.

Existe hoje uma expectativa de que a aprovação da vacina contra covid-19 vai ser a solução para a pandemia e a garantia de retorno à normalidade. Mas o que vem depois da fase 3 dos ensaios clínicos?

Uma vacina, mesmo passando pela fase 3, ainda tem uma fase importante, que é a farmacovigilância, para entender se ela não está causando efeitos mais deletérios que a imunização, quando passamos de milhares para milhões de pessoas. A fase 4 é quando observamos, a partir da vigilância farmacológica, se a vacina está causando a porcentagem de efeitos adversos esperados, se estão aparecendo casos raros ou casos que eram raros e começaram a ser habituais, no momento em que se faz a imunização de milhões de pessoas. Essa fase é importante e não podemos esquecê-la no momento de pandemia. A gente precisa lembrar que a crise causada pelo coronavírus é a maior crise da humanidade contemporânea. Não é uma crise só de saúde, é uma crise social. Ela estampou a desigualdade social no Brasil e no mundo. A vacina não pode ser tida pela população brasileira como a bala mágica da salvação para que a gente retorne ao normal. Existe um mundo antes e depois de coronavírus. Esse mundo não será igual mesmo depois da vacina. Primeiro, porque nós não sabemos qual é a capacidade de cobertura vacinal, quanto tempo ela vai se manter. Segundo, as doses são limitadas, a gente não consegue produzir doses para garantir a cobertura de toda a população.

Que outras ações devem ser implementadas junto com a vacina?

Se a gente está falando de uma doença que é infectocontagiosa, não podemos pensar em país, temos que pensar em humanidade. Vírus não respeita cerca, Estado ou município. A gente tem que pensar em todos. Quando estamos trabalhando numa crise mundial, a gente tem que pensar no bem comum e não apenas em ideologias patrióticas, ou negar vacinas de outros países. A vacina deve vir a partir de uma política pública concisa de mitigação da pandemia. Precisamos trabalhar na interrupção da transmissão e não na protelação de mortes, que é o plano que a maioria dos governos, inclusive o governo federal, apresentou à população. Precisamos ter uma política pública composta, com testagem em massa, erradicação de problemas como saneamento básico e acesso à água potável, porque para o coronavírus isso é essencial, e sobretudo atacar as desigualdades, porque sabemos que a covid-19 tem atingido de 2,5 a 5 vezes mais a população vulnerável. O papel social de cada um é importante. O papel da população é manter o distanciamento físico e os padrões sanitários de higiene, usar máscara e buscar informações confiáveis sobre uma doença da qual nós não sabemos a gravidade. É uma doença que não ataca só as vias respiratórias, é uma doença sistêmica, e nós temos observado inclusive pós-infecção e sequelas no pós-recuperação que se tornam crônicas na população, mostrando que não apenas a política de prevenção vacinal, mas a política de prevenção social também é importante para mitigar ou erradicar o coronavírus do Brasil. Temos que pensar na erradicação e não na endemização do vírus. Não podemos aceitar políticas que façam com que o vírus se torne endêmico, como dengue, zika e chikungunya. Não podemos aceitar a convivência da sociedade brasileira com o novo coronavírus.

O que esperar das vacinas que estão atualmente na fase 3?

As vacinas que estão na fase 3 no mundo são vacinas boas. Os mecanismos de construção dessas vacinas são confiáveis. Nós temos por exemplo a vacina de Oxford, que está com a parceria da Fiocruz para produção e envase nacional, com transferência de tecnologia, e usa uma metodologia segura para a construção do composto vacinal; e também a vacina da Sinovac em parceria com o Butantan. São duas vacinas que usam mecanismos diferentes. Uma utiliza um vetor que é um vírus que não acomote humanos para carregar um pedaço do coronavírus que impede que ele se desenvolva, que é a vacina de Oxford. E outra é de vírus inativo, que é uma maneira mais clássica de se fazer vacina.

Que desafios e obstáculos surgem para a garantia de uma vacina com acesso universal para a população brasileira e como bem público global?

Creio que o desafio que a gente tem que enfrentar para ter uma vacina global, para a humanidade e não só para uma nação ou país, é a sensibilidade política de que estamos enfrentando a pior crise da humanidade contemporânea. Existem esforços para isso, a OMS tem feito um esforço global importante, junto com governos e fundações filantrópicas. A gente precisa entender que, para atravessar uma crise mundial, é importante pensar na humanidade. O maior desafio para que se desenvolva uma vacina universal é vencer as barreiras políticas que estamos vivenciando nessa década, com um mundo cada vez mais polarizado, que pensa em resolver um problema para voltar ao consumismo e não para o bem-estar social da humanidade e do meio ambiente. É possível estabelecer estratégias mundiais e fazer manejo de crise e de surtos, de forma que toda a humanidade fique preservada. Não precisamos imunizar a população mundial inteira, mas precisamos ter uma política mundial de erradicação do vírus. A gente só vai ter êxito se a gente tiver essa política mundial, o que é talvez a maior barreira para vencer a crise causada pela covid-19.

Em 11/8, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que o país havia registrado a primeira vacina do mundo — mas a notícia despertou dúvidas na comunidade científica por ainda não terem sido divulgados os dados sobre eficácia e segurança. Que perigos podem surgir com essa “pressa” por uma vacina?

Em relação à vacina russa, eles precisam apresentar os dados. Desde que ela seja ensaiada e olhada pelos pares, a partir de seus protocolos e registros, e esses protocolos se mostrarem confiáveis cientificamente pela segurança, ela pode se tornar uma vacina candidata. É importante que a gente não enxergue com preconceito ou como pauta política um país que também tem tecnologia para a produção de insumos farmacológicos. A gente não pode cair nessa tendência. É importante olhar o esforço russo como um esforço que poderá trazer segurança e eficácia. Basta a gente olhar os protocolos que estarão disponíveis para o registro e as análises de fase. Existe uma tendência a tratar o novo coronavírus como uma nova Guerra Fria e se demonizar países que são tidos como de esquerda ou comunistas. É importante salientar que a Rússia tem sim tecnologia, e ela pode apresentar uma vacina para o mundo, desde que apresente os protocolos, como qualquer outro país. É importante ressaltar que se siga com bastante rigor as fases de experimentação para se colocar uma vacina no mercado, porque são essas fases que garantem a segurança na aplicação de uma vacina em ser humano. Temos que fazer isso com segurança e avaliação correta dos fatos.

Como o contexto de negacionismo da ciência e as fakenews podem influenciar uma futura estratégia de vacinação da covid-19?

Em crise, não existe bala mágica. Imagine se a gente tivesse um medicamento ou uma vacina eficaz contra o vírus que causa a maior crise humanitária contemporânea, o cientista ou a empresa já teria publicado. De fato, não existe. No Brasil, a crise é econômica e social. O coronavírus mostrou que temos 60 milhões de brasileiros que estavam na informalidade e não têm sequer sua identidade conhecida pelo governo. Temos 100 milhões de brasileiros sem saneamento básico, 50 milhões que não têm sequer água potável. O coronavírus veio estampar na nossa cara como o país tem se tornado cada vez mais desigual. E essa realidade não quer ser mostrada por algumas entidades, sejam políticas ou econômicas. Notícias enganosas foram usadas para fazer movimentação política na América do Norte, na Europa e no Brasil, e tem se tornado uma prática cada vez mais deletéria. Para superar uma crise, é preciso transparência. E só teremos transparência com informações verdadeiras. O negacionismo e o movimento antivacinas, por exemplo, trouxeram à baila doenças que já estavam erradicadas, como o sarampo. Vemos a ressurreição de moléstias que contavam antes com altas coberturas vacinais.

Como enfrentar esse cenário de desinformação?

É importante a gente deixar claro para a população que problemas complexos exigem respostas complexas. E respostas complexas exigem tempo. Então, toda vez que você receber uma notícia em que está muito simples combater essa crise, desconfie dela. Uma pandemia que se arrasta no Brasil, com o descontrole da coordenação, faz com que a população também sofra mentalmente. E ela se torna suscetível a consumir notícias falsas e temos que ter inovação no conhecimento para combatê-las. É importante salientar que a infodemia — a pandemia de informações falsas — também atrapalha. Por outro lado, nunca se falou tanto de ciência. Mesmo aqueles que negam a ciência buscam nela a solução do problema. Só não querem deixar a população entender que essa solução vem da ciência, porque não existem respostas rápidas para problemas complexos. O tempo político é diferente do tempo da saúde pública e do tempo do bem-estar da população.

O que a pandemia de covid-19 nos ensina a respeito do papel da ciência no desenvolvimento de vacinas e medicamentos?

A pandemia causada pela covid-19 veio mostrar quão importante é a ciência para o mundo, pois muitas vezes ela é negligenciada. Se temos condições de ter uma televisão, o whatsapp, falar com uma pessoa em videochamada que está lá do outro lado do planeta, isso foi graças às ciências. E não é diferente com os medicamentos. A gente vê um aumento significativo da longevidade e da expectativa de vida. Os humanos vivem cada vez mais tempo, e com maior qualidade de vida, e isso também é dado pela ciência. O único problema é que há uma negligência gigantesca em relação à ciência no Brasil. Estamos com uma depreciação do Ministério de Ciência e Tecnologia cuja verba se equivale a 2009. O coronavírus veio mostrar que a união entre a capacidade científica e o SUS foi capaz de preservar muitas vidas. Se não tivéssemos essa capacidade instalada, nós poderíamos sofrer muito mais. Pessoas que hoje estão curadas da covid-19 ou que ainda padecem pela doença estão sendo tratadas pelo SUS, com cobertura universal e acesso ilimitado a medicamentos. Isso mostra a importância de algumas coisas que a gente geralmente não vê.

Como enfrentar esse descaso com a ciência e se preparar para dar respostas a emergências como essa?

Se a gente tivesse que aprender uma lição com a covid-19, é que a gente precisa investir no nosso parque científico, tanto em infraestrutura quanto na qualificação de mão de obra, o que já era feito muito bem no Brasil, mas foi sucateado ao longo dos anos. Ciência e tecnologia são o único caminho para o desenvolvimento de um país. Quando a gente vê aquilo que a própria Alemanha tem feito quando se fala de inovação, a gente percebe que as inovações mais alvissareiras são aquelas que trazem transformação para a sociedade. Não é capital, mas transformação social. Esse é o único caminho para que a gente possa fazer uma transformação social digna para a sociedade brasileira. É a partir da ciência, tecnologia e inovação. Mas a gente precisa lutar para que a nossa ciência não morra, porque ela também está na UTI, assim como vários brasileiros estão.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *