16/04/2024 - Edição 540

Poder

Ataque de Bolsonaro gera onda de ameaças físicas a jornalistas

Publicado em 28/08/2020 12:00 -

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"Presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?"

A pergunta de um jornalista acerca das suspeitas sobre movimentações financeiras da primeira-dama foi repetida mais de 1 milhão de vezes no Twitter depois de o presidente responder dizendo que gostaria de "encher a boca (do repórter) com uma porrada".

Apesar das críticas e notas de repúdio, a ameaça de agressão física feita pelo presidente também reverbera na forma de mais ataques e apologia de violência contra profissionais de imprensa, para além das "bolhas" progressistas nas redes sociais.

No Twitter, no Facebook e no Instagram, apoiadores de Jair Bolsonaro têm usado a frase do presidente como incentivo para agressões, em uma retórica que passa dos tradicionais ataques verbais para ameaças concretas de violência física.

Em demonstrações de apoio a Bolsonaro, brasileiros dizem, por exemplo, que jornalistas merecem "tomar porrada na boca" e dizem que o presidente "só errou" em não agredir o repórter.

Para estes bolsonaristas, a violência presidencial contra o repórter seria um sinal de defesa da esposa e de integridade.

"Ganhou mais minha admiração hoje, presidente, quando disse que queria quebrar aquele 'jornalista na porrada'. Eu teria quebrado, pra ele respeitar mulher de homem", escreveu um bolsonarista em resposta a um vídeo publicado por Bolsonaro na noite de domingo.

Em seu perfil, o homem se apresenta como "cristão, patriota, trabalhador e pai de família".

Para especialistas consultados pela BBC News Brasil, a postura do presidente não surpreende, mas sugere uma deterioração do ambiente institucional do Brasil, o que pode resultar em uma escalada na violência bolsonarista contra a imprensa tradicional.

'Jornalista tem que apanhar'

No último dia 23, um repórter do jornal O Globo fez uma pergunta ao presidente sobre depósitos feitos pelo ex-assessor e amigo da família Fabrício Queiroz, preso por suspeitas de desvios e corrupção, na conta bancária de Michelle Bolsonaro.

Segundo a imprensa brasileira, Queiroz e a esposa, Márcia Aguiar, teriam feito 27 depósitos na conta da primeira-dama entre 2011 e 2016, movimentando um total de R$ 89 mil para Michelle Bolsonaro. Preso em regime domiciliar, Queiroz também é investigado por suposta ligação com a milícia fluminense.

"Vontade de encher tua boca com uma porrada, tá? Seu safado", respondeu o presidente da República à pergunta do profissional de imprensa. A fala desencadeou críticas e notas de repúdio de políticos e entidades jornalísticas, mas também trouxe visibilidade à pergunta — que chegou ser reproduzida mil vezes a cada 40 segundos, segundo levantamento do professor Fabio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

A resposta refratária ao trabalho da imprensa não é novidade no comportamento do presidente, aponta a professora Andreza Aruska de Souza Santos, diretora do programa de estudos sobre Brasil da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

"A imprensa costuma causar uma intimidação no presidente e não é de hoje. Não dá para dizer que é uma surpresa porque ele se elegeu dessa fora, falando diretamente com o eleitorado e evitando canais de mediação. Lá na campanha, no início de tudo, Bolsonaro já tinha isso de evitar jornalistas. Ele evitava debates. A postura evasiva sempre esteve lá", aponta Santos.

"Mas agora vemos uma subida de tom. Não se trata mais de evitar e às vezes ser grosseiro. Agora o presidente passou a ameaçar", continua a especialista, que afirma que a pergunta feita pelo jornalista "passou a ser uma pergunta de todos".

A fala de Bolsonaro foi vista por seguidores, no entanto, como uma reação "justa" a um "desrespeito" da imprensa contra a primeira-dama.

"Jornalista porco sujo tem q apanhar na cara ninguém mais aguenta tanta falta de respeito por jornalistas lixo sem vergonha", escreveu um seguidor.

"Todo jornalista que faz pergunta idiota merece uma porrada", disse outro.

Pelo Twitter, falas como "tem repórter que merece uma porrada na boca mesmo por serem tão inúteis", "a resposta foi à altura" e "saiba que não é só o presidente, eu mesmo tenho vontade de cuspir na cara de alguns 'jornalistas'" vêm se espalhando em resposta a reportagens e comentários críticos sobre o episódio.

'Situação se deteriorando'

O brasilianista Anthony Pereira, professor do King's College de Londres, diz que o Brasil já era visto, desde antes da eleição de 2018, como um país onde os frequentes assassinatos de comunicadores e jornalistas tornam o trabalho de repórteres investigativos mais difícil.

"Mas agora, com o presidente ameaçando abertamente os jornalistas — um gesto que ele sabe que vai estimular ataques verbais e até agressões físicas contra jornalistas por parte de seus apoiadores — a situação está se deteriorando", avalia.

"O presidente Bolsonaro invoca falaciosamente o direito à 'liberdade de expressão; cada vez que alguém aponta a divulgação de notícias falsas por parte de seus partidários, mas é óbvio que seu compromisso com a liberdade de expressão não se estende a jornalistas que fazem perguntas difíceis", prossegue o especialista britânico.

Já o professor Fábio Malini, da UFES, diz que "os bolsonaristas em geral têm sentimento ambíguo" em relação ao jornalismo.

"Eles requerem a instituição para si e refutam com violência os (jornalistas) que não dão anteparo ao governo", diz Malini à reportagem da BBc News.

"Quando isso acontece, a face extremista de Bolsonaro e seus seguidores fica mais nítida. Mas, dentro do cálculo político deles de agora, o extremismo parece não ser bom conselheiro", avalia.

Tristeza

Para Pereira, a tática de perseguição a jornalistas não deve ter sucesso, "já que uma mídia independente e o pensamento crítico estão profundamente enraizados no Brasil".

"Mas é triste ver um presidente eleito democraticamente tentando criar um clima de medo para se proteger de um escrutínio legítimo e de transparência e responsabilidade."

Em coro com outros especialistas, Pereira também diz não se surpreender com o episódio e diz que o bolsonarismo ultrapassa o ceticismo saudável que existe em relação às diferentes formas de imprensa e potenciais conflitos de informação presentes no jornalismo.

"Ele cruza a linha que divide o ceticismo saudável e uma hostilidade ignorante e obscurantista em relação a evidências, lógica, ciência e razão."

"O bolsonarismo, como o trumpismo, se alimenta da desconfiança, do medo e do ódio aos meios de comunicação, e joga isso sobre a população como forma de difundir desinformação e construir sua base popular", ressalta o especialista.

Segundo o antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), atual Unidade de Inteligência Financeira (UIF), Fabrício Queiroz teria movimentado R$ 1,2 milhão entre 2016 e 2017, quando trabalhava como assessor do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente e então deputado estadual pelo Rio de Janeiro.

O Coaf era um dos principais órgãos dedicados à prevenção e combate à lavagem de dinheiro no país.

Em agosto de 2019, enquanto avançavam as investigações contra o filho, o presidente Jair Bolsonaro editou medida provisória com uma série de alterações no antigo Coaf, incluindo mudança de presidente, de nome e na estrutura — o órgão deixou de fazer parte do Ministério da Economia e passou a pertencer ao Banco Central.

Segundo Bolsonaro, as mudanças visavam "blindar" o antigo Coaf de interferências e pressões políticas.

Mas a alteração também foi vista como estratégia para ter mais controle sobre as atividades prestadas pelo órgão anticorrupção.

Onda de fakenews

Nas redes sociais, aliados do presidente espalharam uma versão falsa sobre o episódio. O vídeo editado, acompanhado de uma legenda falsa, compartilhado por apoiadores do presidente foi checada pelo Fato ou Fake. A versão mentirosa afirma que o repórter teria dito: “Vamos visitar sua filha na cadeia”. Na verdade, um ambulante aparece fazendo um convite ao presidente em meio aos questionamentos do jornalista. “Vamos visitar nossa feirinha da catedral, presidente”, afirma o homem, mais de uma vez. A versão mentirosa foi compartilhada primeiro pelo site Terra Brasil Notícias.

A mensagem falsa foi compartilhada por apoiadores de Bolsonaro, como o pastor Silas Malafaia, o blogueiro Allan dos Santos — alvo do inquérito das fake news no STF —, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O filho do presidente, mais tarde, apagou a publicação do seu perfil no Instagram.

Um levantamento do jornal O Globo com base em dados da plataforma CrowdTangle, do Facebook, identificou ao menos 169 vídeos na plataforma com a legenda falsa publicados até as 18h de segunda-feira. Ao todo, eles geraram 707,6 mil visualizações. A publicação mais vista, com 25,7 mil, era do deputado federal Éder Mauro (PSD-PA), integrante da CPI das Fake News. Assim como Eduardo Bolsonaro, outros aliados do presidente também apagaram o vídeo após publicarem.

Éder Mauro chegou a comentar na publicação que a imprensa tirou o vídeo de contexto. Há menos de uma semana, o parlamentar foi condenado pelo STF por difamação, após alterar um discurso do ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) que divulgou no Facebook. A versão editada atribuía a Jean Wyllys falas preconceituosas contra negros e pobres.

20 meses de agressões

O ataque do presidente a um repórter do O Globo foi mais um episódio de uma série de agressões verbais à imprensa durante o atual governo. O presidente terminou 2019 com 116 ataques à imprensa contabilizados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

Neste ano, durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro seguiu reagindo de forma agressiva a perguntas de jornalistas, inclusive mandando a imprensa "calar a boca". Relembre a seguir alguns dos episódios de ataques do presidente:

'Cara de homossexual terrível'

Em dezembro, Bolsonaro já havia atacado a imprensa ao ser questionado sobre a investigação da prática de rachadinha envolvendo um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Queiroz, ex-assessor de Flávio e suspeito de articular o desvio de verba pública na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), foi alvo de busca e apreensão do Ministério Público do Rio (MP-RJ) no fim do ano passado. A operação também mirou uma loja de chocolates, suspeita de ser usada para a prática de lavagem de dinheiro, que tem Flávio entre seus sócios.

Questionado sobre o assunto na entrada do Palácio da Alvorada, Bolsonaro se dirigiu de forma homofóbica a um repórter do GLOBO e afirmou que o jornalista tinha "uma cara de homossexual terrível".

À época, questionado também sobre os cheques repassados por Queiroz a Michelle, o presidente afirmou não ter um recibo do suposto empréstimo feito ao ex-assessor de seu filho, e voltou a se dirigir de forma ofensiva aos jornalistas:

— Pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, está certo? Querem comprovante de tudo — disse Bolsonaro.

'Ela queria dar o furo a qualquer preço'

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro insultou uma repórter do jornal "Folha de S. Paulo" com uma insinuação de cunho sexual. Durante entrevista na porta do Alvorada, enquanto interagia também com apoiadores, o presidente referiu-se ao depoimento de Hans River do Nascimento, ex-funcionário de uma agência de disparos em massa por WhatsApp, concedido à CPMI das Fake News.

No depoimento, o ex-funcionário mentiu sobre a conduta da jornalista, que fazia uma reportagem sobre supostos disparos ilegais na eleição presidencial de 2018. Bolsonaro reproduziu a versão mentirosa de Hans River, usando um trocadilho:

— Ela (repórter) queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim — afirmou o presidente.

Em nota conjunta divulgada à época, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirmaram que Bolsonaro "repete as alegações que a Folha já demonstrou serem falsas" e que os ataques do presidente "são incompatíveis com os princípios da democracia". A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que também condenou a fala de Bolsonaro, afirmou que "este comportamento misógino desmerece o cargo de Presidente da República".

'Cala a boca, não perguntei nada'

Em maio, perguntado se havia pedido a substituição do superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio, Bolsonarou reagiu aos gritos com a frase "cala a boca, não perguntei nada".

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que havia deixado o cargo duas semanas antes, declarou à época que o presidente tentava interferir politicamente na PF. Bolsonaro, depois de mandar a imprensa calar a boca, afirmou que o então superintendente do Rio, Carlos Henrique Oliveira, estava deixando o cargo "para ser diretor-executivo" da corporação, nomeação feita na semana seguinte.

Na ocasião, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) afirmou, em nota, que o presidente mostrava "sua incapacidade de compreender a atividade jornalística", além de externar "seu caráter autoritário".

Ameaças à atividade jornalística

Em mais de uma ocasião, Bolsonaro já insinuou que poderia impor obstáculos à atividade de empresas de comunicação. Em outubro do ano passado, após a TV Globo veicular reportagem sobre a investigação do caso Marielle Franco com o depoimento de um dos porteiros do condomínio onde morava Bolsonaro, o presidente acusou a emissora de "canalhice" e "patifaria", e sugeriu que poderia não renovar a concessão do canal.

Em abril deste ano, na mesma entrevista em que disse "e daí?" ao ser questionado sobre as mortes em decorrência do novo coronavírus, Bolsonaro voltou a insinuar que "se não tiver tudo certo, não renovo a (concessão) de voces nem a de ninguém", usando a expressão "imprensa lixo".

No fim do ano passado, o presidente disse que havia determinado o cancelamento de todas as assinaturas da "Folha de S. Paulo" em órgãos do governo federal, e recomendou também, em tom de ameaça, que os anunciantes do jornal deveriam "prestar atenção". Em outra entrevista, também em 2019, o presidente voltou a se dirigir a anunciantes, ao declarar que não compraria produtos com publicidade veiculada no jornal.

— Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S. Paulo. Qualquer anúncio que faz na Folha eu não compro aquele produto e ponto final — afirmou.


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