29/03/2024 - Edição 540

Poder

Amazônia já foi internacionalizada, não por ONGS, mas pelo próprio Bolsonaro

Publicado em 28/08/2020 12:00 -

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O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.

O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.

Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.

A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.

Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.

É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).

O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.

Amazônia já foi internacionalizada

A "oferta" para que os Estados Unidos explorassem as riquezas da Amazônia feita por Jair Bolsonaro ao ex-vice de Bill Clinton, foi a primeira, mas não a única vez em que isso ocorreu. O presidente fez o convite ao seu colega Donald Trump meses depois. E também o estendeu ao Japão.

"Temos muitas riquezas. E gostaríamos muito de explorá-las junto com os Estados Unidos", ouviu Al Gore, hoje um influente ativista ambiental, de Bolsonaro, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. A frase sobre a Amazônia, presente no documentário "O Fórum", havia sido publicada pela Folha de S.Paulo, no último dia 14, mas viralizou nas redes sociais.

Três meses depois, em abril de 2019, Bolsonaro afirmou à rádio Jovem Pan que fez o convite ao presidente norte-americano: "Quando estive agora com [Donald] Trump, conversei com ele, entre outras coisas, que eu quero abrir para ele explorar a região amazônica em parceria". Logo depois, defendeu a teoria conspiratória de que territórios indígenas podem se tornar países independentes com a ajuda das Nações Unidas.

Em junho também do ano passado, afirmou que iria se reunir com o primeiro-ministro japonês e propor de "explorarmos a biodiversidade na região".

"O que eles querem, o pessoal lá de fora, e alguns traidores aqui dentro, é fazer com que a Amazônia seja internacionalizada. Enquanto eu for presidente, pode ter certeza que não será", afirmou no dia 21 de junho de 2019.

Ao recuperar indiretamente o lema da ditadura do "integrar para não entregar", Bolsonaro não conta que a região já foi internacionalizada. E não é de agora. Desde a ditadura militar, a Amazônia foi conectada ao mundo através de cadeias produtivas de matérias-primas, alimentos e energia – o que não significou, necessariamente, melhora na qualidade de vida de populações tradicionais, camponeses e trabalhadores rurais.

Bolsonaro incorre em um comportamento comum de governantes que acreditam que o termo "internacionalização" vale apenas para a presença da sociedade civil e organizações internacionais estrangeiras, nunca para multinacionais. Uma visão maniqueísta e enviesada que acredita que o setor empresarial é "bonzinho" e a sociedade civil é "malvada".

Organizações não-governamentais englobam toda pessoa jurídica que não é empresa ou governo – de igrejas, passando por times de futebol, museus até associações civis sem fins lucrativos. Ou seja, existem atores que operam dentro da lei e aqueles à margem, da mesma forma que empresas e governos.

Mas a administração de Jair Bolsonaro abraça teorias da conspiração sobre a Amazônia para desviar o foco da responsabilidade sobre os impactos causados por suas ações na região e também pelas de seus aliados ruralistas, madeireiros, garimpeiros, grileiros na região.

Uma teoria famosa é aquela em que estrangeiros querem destacar a Amazônia do restante do país, ocupando-a com forças militares. Quem acredita nessa cita, como argumento irrefutável, livros didáticos obscuros com mapas esquisitos ou documentos com planos mirabolantes de tomar a maior floresta tropical do mundo.

Não respondem uma pergunta básica: para que ter o trabalho de tomar conta daquela bagunça fundiária, se as riquezas já fluem para fora da Amazônia por caminhões, porões de navio ou linhões de transmissão de energia? Empresas que, aliás, durante muito tempo financiaram políticos nacionalistas que são chegados numa teoria da conspiração.

Governo defende teoria conspiratória de que povos indígenas querem formar países

Variante dessa é a teoria conspiratória é aquela citada no começo deste texto, de que devolver terras aos indígenas em regiões de fronteira, demarcando e homologando territórios, pode fomentar a independência desses povos do restante do Brasil. Esse argumento tacanho foi usado largamente contra o processo de demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, por exemplo.

Para membros do atual governo, solução melhor teria sido manter arrozeiros e outros produtores rurais, muitas vezes ocupantes ilegais da área e que adotavam uma política de terra arrasada no trato ambiental. Porque estes sim seriam confiáveis e estariam lá para desenvolver o país.

Os territórios indígenas nunca montaram uma campanha de guerra pela "independência". Pelo contrário, querem mais Estado brasileiro e não menos, sentir-se efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra. Coisa que o país nunca garantiu totalmente a eles e, se depender do atual presidente, vai continuar assim.

Outra teoria conspiratória é a de que as organizações e pessoas contrárias ao desmonte da legislação ambiental por conta das mudanças climáticas e da qualidade de vida desta e das futuras gerações são compradas por governos e entidades estrangeiros ou são inocentes úteis a serviço de inimigos externos. E isso não é de agora.

Rubens Valente, que revelou no UOL o dossiê organizado pelo governo Bolsonaro sobre agentes de segurança e professores contrários ao fascismo, mostrou, em 2017, junto com Ranier Bragon, na Folha de S.Paulo, que o governo Dilma Rousseff investigou, por meio da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), líderes indígenas e ONGs contrários a grandes empreendimentos na Amazônia, como a usina hidrelétrica de Belo Monte.

Cadeias produtivas, investidores, sociedade civil e imprensa

Ironicamente, a conexão da Amazônia com o mundo, via cadeias produtivas globais e fluxos financeiros transnacionais, permite à sociedade civil organizada pressionarem o governo brasileiro para reduzir o impacto da devastação.

Se o país não alterar o seu comportamento diante de povos tradicionais, trabalhadores rurais, camponeses, extrativistas e o meio ambiente, vai continuar perdendo investimentos. Primeiro, na própria região. Depois, no resto do país, uma vez que matérias-primas produzidas por lá abastecem indústrias exportadoras que estão fora da Amazônia Legal.

Como já escrevi aqui, qualquer investidor de fundo internacional que tiver o mínimo de senso crítico não vai acreditar no teatro montado pelo governo federal para convencer que o país está preocupado com o salto no desmatamento da Amazônia e que fará tudo ao seu alcance para diminui-lo. Uma parcela dos donos e diretores de grandes empresas no Brasil entendem o tamanho do enrosco em que o país está se metendo e avisaram ao vice-presidente, Hamilton Mourão, que já está entrando menos dinheiro porque o naco racional do mundo financeiro e seus trilhões de dólares não quer se queimar junto com nosso negacionismo ambiental.

Se o país quisesse realmente fazer a diferença nessa área, começaria trocando aquele que tem sido o mais competente dos ministros de Bolsonaro, Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Ele está entregando aquilo que prometeu ao presidente e ao naco arcaico dos ruralistas. A proposta de aproveitar a pandemia, enquanto imprensa e sociedade estão preocupadas com mortos e doentes, para "passar a boiada" contra normas ambientais é deprimente, mas objetiva e eficaz.

Além disso, o governo deveria garantir que a fiscalização ambiental pudesse agir sem ser desautorizada pelo próprio presidente da República. E interromper a pressão para aprovar leis que facilitam a legalização da grilagem no Congresso Nacional. E abandonar a intenção de minar os instrumentos de medição do desmatamento – a queda do presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) não foi o último ataque à instituição. A questão não é proibir queimadas legais por 120 dias, como sugere o governo. Mas permitir que fiscais tenham toda a estrutura para fazer valer a lei. Com um governo que exija o pagamento das multas aplicadas, ao invés de fazer vistas grossas. Isso funcionaria mais do que despejar militares não treinados em operações de Garantia da Lei e da Ordem para atividades que pessoal especializado da área ambiental do governo deveria fazer.

A manutenção do fluxo de investimentos também passa por uma mudança no ponto de vista do presidente. "Temos muitas riquezas, e gostaríamos muito de explorá-las junto com os Estados Unidos" deveria dar lugar a "Temos muitas riquezas, e gostaríamos muito de ouvir e respeitar a opinião das populações desses locais antes de explorá-las". Mas, talvez, isso seja pedir demais para Bolsonaro.


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