26/04/2024 - Edição 540

Poder

Preso por corrupção, Pastor Everaldo ‘batizou’ Bolsonaro e Wilson Witzel

Publicado em 28/08/2020 12:00 -

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Pastor Everaldo, presidente nacional do PSC, foi preso, na manhã desta sexta (28), em meio a uma investigação sobre o desvio de recursos públicos da saúde no Estado do Rio de Janeiro, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro. Apontado como chefe do esquema, o governador Wilson Witzel (PSC) foi afastado do cargo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Entre os fatos marcantes da carreira política de três décadas de Everaldo – quinto colocado na eleição presidencial de 2014 e acusado pela operação Lava Jato de receber R$ 6 milhões da Odebrecht para ajudar uma mão a Aécio Neves (PSDB) em um debate presidencial na TV – estão o "batismo" religioso e político de duas figuras que já foram aliados e hoje se odeiam publicamente: Jair Bolsonaro (sem partido) e o próprio Witzel.

O primeiro batismo é metafórico. Foi Everaldo quem acabou trazendo Witzel à política, "inventando" a candidatura de um desconhecido juiz federal que, colado à imagem de Jair Bolsonaro e empunhando o discurso do "a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo!", acabou por desbancar o favorito Eduardo Paes (DEM) e levar o Palácio Guanabara. Depois, estranhou-se com sua criatura, mas daí é outra história.

O segundo é literal e metafórico. Everaldo foi quem batizou o então deputado federal Jair Bolsonaro, em uma cerimônia nas águas do rio Jordão, em Israel, no dia 12 de maio de 2016.

A data, muito provavelmente, não foi escolhida ao acaso. Na manhã daquele dia 12, o plenário do Senado Federal autorizou a abertura do processo de impeachment do mandato de Dilma Rousseff (PT) por 55 votos contra 22. Com isso, ela foi afastada do cargo, dando lugar a Michel Temer (MDB). Bolsonaro celebrou o fato nas redes sociais.

Jair Messias continua católico. Mas seu processo de aproximação com os evangélicos teve na cerimônia conduzida por um pastor-político da Assembleia de Deus, em Israel, um de seus momentos simbólicos. O que ajudou a pavimentar seu caminho até a Presidência da República. Bolsonaro, que durante muito tempo pregou no deserto sendo desdenhado pela imprensa, foi construindo a imagem falando em cultos e recebendo cobertura simpática em programas de rádio e TV ligados às igrejas.

Vale lembrar que sua esposa, Michelle "Por-que-Queiroz-depositou-R$ 89 mil-na-sua-conta?" Bolsonaro é evangélica.

O presidente disputou à eleição de 2018 pelo PSL. Mas foi filiado ao PSC nos dois anos anteriores. Dois meses antes de afundar nas águas do Jordão, foi estrela de outra cerimônia, dessa vez em um lotado auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados, para sua filiação ao partido, no dia 2 de março de 2016. No evento, ele foi lançado como pré-candidato à Presidência da República nos discursos dos presentes, inclusive o do pastor Everaldo.

Seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (2016-2018), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (2013-2018) e o vereador Carlos Bolsonaro (2016-2020) também foram filiados ao PSC.

O pastor-político, ou político-pastor, agora preso, já foi aliado de Anthony Garotinho e Eduardo Cunha. E comandava a Cedae (Companhia de Águas e Esgotos do Estado do Rio) – sim, a Cedae, aquela que, no começo deste ano, esteve sob holofotes porque distribuía água turva, fedida e com gosto ruim para os moradores. Esteve sempre aliado ao poder e, portanto, a sua história se confunde com a história das negociatas fluminenses.

Pode-se dizer que Everaldo é uma pessoa de visão. Mas nem tanta. Pois vale ponderar se participar de um esquema de desvios de recursos da saúde em meio a uma pandemia de coronavírus que está no centro dos holofotes do país e do mundo não seria um erro estratégico até para o mais fisiológico dos políticos.

Agentes da Polícia Federal e procuradores da República cumpriram mandados de prisão e de busca e apreensão contra políticos e empresários envolvidos no esquema na manhã desta sexta. Entre os alvos também estão o vice-governador, Claudio Castro (PSC), que assume no lugar de Witzel, e o presidente da Assembleia Legislativa, André Ceciliano (PT).

Investigações mostram primeira-dama como laranja de Witzel

A decisão do ministro do STJ Benedito Gonçalves que determina o afastamento de Wilson Witzel do governo do Rio por desvios em contratos de áreas como a Saúde do estado detalha como Helena Witzel, a primeira-dama, era laranja do marido nos esquemas de corrupção levados adiante pelo governo.

Segundo os investigadores, o escritório de Helena, reativado “sem qualquer outro advogado além da primeira-dama e sem qualquer funcionário — bem ainda sem a realização de qualquer outro serviço” foi utilizado para “escamotear o pagamento de vantagens indevidas ao governador, por meio de contratos firmados com pelo menos quatro entidades de saúde ligadas a membros da organização criminosa”.

Ainda de acordo com o MPF, diz Benedito, essas vantagens pagas ao escritório-laranja de Helena, entre agosto de 2019 e maio de 2020, totalizaram 554.236,50 reais. “Dessa forma, segundo o MPF, o escritório de advocacia da primeira-dama foi contratado para operacionalizar a prática de corrupção e posterior lavagem de capitais, mediante a perene atuação de Lucas Tristão e Gothardo Lopes Netto”, relata.

A decisão do STJ detalha ainda que informações obtidas através de relatório do Coaf mostram que o valor de mais de 500.000 reais foi pago em 25 docs, teds e transferências entre contas a Helena Witzel pelas empresas Hospital Jardim Amália, Dpad Serviços Diagnósticos, Cootrab Cooperativa Central de Trabalho e Quali clínicas.

“No que toca aos recursos pagos pelo Hospital Jardim Amália, a quebra de sigilo telemático permitiu encontrar dois emails enviados pelo governador Wilson Witzel à sua esposa, um às 11h16 e outro às 11h18, com a minuta de um contrato de prestação de serviços advocatícios entre ela e o HINJA”, detalha trecho da decisão.

O ministro dá a deixa: “observa-se que a primeira-dama, apesar de ser advogada e ser quem figurava como contratada, não participou diretamente da negociação do próprio contrato de prestação de serviços advocatícios”.

Com relação aos recursos pagos pela Quali Clínicas, o ministro relata que a busca e apreensão feita no dia 26 de maio no âmbito da Operação Placebo encontrou na bandeja da impressora de Lucas Tristão — ex-secretário do governo e homem forte de Witzel — uma notificação da rescisão contratual e renúncia de mandato, que seria subscrita por Helena e encaminhada à empresa.

“Observa-se novamente que Helena Witzel, apesar de ser advogada e suposta contratada para a prestação dos serviços, não participou nem mesmo da elaboração do documento de rescisão do contrato — no qual consta, a propósito, a data de 14/04/2020, apesar de nem sequer ter sido assinado. Isso configura provável pré-datação realizada no dia imediatamente anterior ou no próprio dia da Operação Placebo, conferido-se novamente o verniz da legalidade”, aponta.

Mais Investigados

Por mais inacreditável que pareça, a história a seguir aconteceu a menos de 10 quilômetros da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Em abril, no início da pandemia do coronavírus, o governo do Distrito Federal, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, decidiu comprar um lote de 100 000 testes rápidos para detectar a doença. Na época, a Covid já havia matado 28 pessoas e infectado outras 1 300 na capital do país. Os números ainda não assustavam tanto, mas era preciso correr contra o tempo — e o governo local correu. Em 48 horas, iniciou e concluiu o processo para escolher o fornecedor dos kits. Simultaneamente, também em caráter de urgência, contratou uma empresa para montar as tendas de atendimento à população e processar os exames laboratoriais. Valor do negócio: 73 milhões de reais. Pois, segundo o Ministério Público, foi tudo uma grande fraude. O edital da concorrência foi redigido pelos próprios empresários que venceram a disputa, os preços estavam superfaturados e o mais repugnante, cruel e desumano: os testes eram fajutos.

No último dia 25, a polícia foi atrás de 25 pessoas envolvidas no golpe. A roubalheira foi tão escancarada que a empresa que venceu a licitação dos kits, uma importadora de brinquedos, recebeu o pagamento antes mesmo de sair o resultado da concorrência e os testes, supostamente comprados por ela na China, poderiam, no máximo, indicar uma contaminação por hepatite C. O resultado é que seres humanos podem ter morrido de Covid-19, enganados por um falso resultado negativo. O secretário de Saúde Francisco Araújo Filho foi preso e apontado como líder da organização criminosa. Ex-secretário de Ação Social de Maceió, ele estava no cargo havia cinco meses. “O secretário é do grupo do senador Renan Calheiros. É esquema do MDB de Alagoas”, acusou o deputado distrital Chico Vigilante (PT). O governador Ibaneis Rocha (MDB) nega. Diz que Francisco é seu conhecido, que não houve indicação política e que há pontos obscuros nessa história que ainda precisam ser esclarecidos. No último balanço antes do fechamento desta edição, Brasília contabilizava 2 399 mortes e 155 000 pessoas infectadas.

O caso dos kits chama atenção pela ousadia, por ter acontecido no nariz das maiores autoridades do país e por revelar a disseminação de outro vírus letal. Enquanto o país contabilizava as primeiras vítimas da doença, políticos desonestos, funcionários públicos corruptos, empresários inescrupulosos e aproveitadores em geral já estavam a postos em todos os cantos tramando uma forma de ganhar algum à custa do sofrimento alheio, mirando, como sempre, os cofres públicos. De norte a sul, já foram descobertos esquemas para superfaturar contratos, fraudar compras de equipamentos médicos e desviar recursos destinados ao combate à doença. Há investigações em andamento em todos os 26 estados, além do Distrito Federal. Os prejuízos estimados beiram os 4 bilhões de reais.

A revista VEJA teve acesso a um documento da Polícia Federal que mostra a extensão e a dimensão das fraudes. Há 39 investigações em andamento desde o início da pandemia. A primeira foi aberta na Paraíba, em 23 de abril. A última, no Piauí, há pouco mais de quinze dias. O avanço dos criminosos sobre o dinheiro destinado à pandemia é tamanho que a PF criou uma central em Brasília apenas para acompanhar o andamento dos inquéritos que apuram o destino de verbas repassadas pelo governo federal aos estados e municípios. Investigadores já esquadrinharam quase 1,3 bilhão de reais em contratos firmados por prefeitos e governadores e estimam que o prejuízo aos cofres públicos, apenas nesses casos, pode ter chegado a 775 milhões de reais, o que representa 60% dos valores. Ou seja, mais da metade do dinheiro que foi enviado para ações sanitárias acabou ilegalmente no bolso de alguém. Os inquéritos envolvem mais de 300 pessoas, entre servidores públicos, empresários, vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais e pelo menos seis governadores — três deles já foram alvos diretos de operações: Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, Wilson Lima, do Amazonas, e Hélder Barbalho, do Pará. Trinta e nove pessoas foram presas até agora.

Os golpes seguem a cartilha tradicional que mistura política com negócios. A lei que dispensou a exigência de licitação e permitiu compras governamentais mais ágeis e desburocratizadas durante a pandemia também abriu caminho para toda sorte de golpes. Alguns de extrema audácia. Com pequenas variações, boa parte das fraudes funciona assim: um operador promove a aproximação de quem quer comprar com quem pretende vender — e cobra uma taxa de sucesso sobre o negócio. Essa taxa, paga pelo empresário que vendeu, normalmente é embutida no valor da mercadoria ou do serviço oferecido, o que leva ao superfaturamento dos preços. Por fim, ela é dividida entre algum político e/ou funcionário público, ambos atuando em parceria. Bem conhecida dos brasileiros, essa engrenagem foi movimentada pela pandemia de uma maneira que fazia tempos não se via. A bandalheira foi tamanha que uma empresa especialista em venda e instalação de ventiladores de teto foi contratada para fornecer equipamentos de ventilação pulmonar usados por pacientes em estado grave. Uma outra, de autopeças, disputou e ganhou uma concorrência para fornecer equipamentos de reposição para sofisticados aparelhos hospitalares. Por óbvio, nenhuma das duas entregou o prometido, e o dinheiro desapareceu.

Em Rondônia, o governo comprou máscaras de proteção para uso profissional. O preço de mercado de cada uma era 2,58 reais, mas foi vendida à Secretaria de Saúde local por 15,30 reais, uma majoração de 500%. Isso, por si só, já seria ilegal. Mas a tramoia era ainda maior: as máscaras que foram entregues nada tinham de profissionais. Eram cópias feitas de pano. O lote de 20 000 unidades teve de ser inutilizado. Uma piada de mau gosto. No Maranhão, quando o estado entrava no ápice dos casos de Covid, foi a vez de uma empresa sem nenhum funcionário e sem expertise alguma na atividade médico-­hospitalar ser contratada para vender respiradores a três prefeituras, que pagaram antecipadamente pelos equipamentos — que, óbvio, nunca receberam. Quatro pessoas foram presas.

Segundo a Polícia Federal, a simulação de compra e venda de respiradores é um dos crimes mais recorrentes na pandemia. No novo normal, os preços de mercado do equipamento, geralmente importado da China, variam de 90 000 a 100 000 reais. Para alguns governos e prefeituras, eles custaram o dobro. Houve casos de um único respirador ser orçado em cerca de 370 000 reais. No Rio Grande do Sul, a PF flagrou um político em um grampo telefônico orientando funcionários de um hospital a pulverizar a cidade com vapor d’água no lugar de materiais desinfetantes “porque ninguém ia perceber”. Em São Paulo, uma das investigações apura desvios em um contrato de 11 milhões de reais que envolve o fornecimento de aventais hospitalares. De novo, os indicativos são de conluio de servidores com empresas sem nenhum preparo técnico. No Pará, um dos inquéritos apura desvios em um contrato de cerca de 74 milhões de reais para compra de cestas básicas para alunos da rede estadual de ensino. Com o isolamento social, crianças que tinham a merenda como principal ou única refeição do dia passaram a receber os alimentos em casa. O Pará, aliás, já foi alvo de quatro operações da PF desde abril, o que o coloca, empatado com o Rio de Janeiro, como o terceiro estado com maior número de irregularidades investigadas, atrás de Pernambuco e do Amapá.

A lista, como se vê, é longa. Os 39 inquéritos da Polícia Federal revelam a dimensão da miséria moral de um pedaço da sociedade brasileira. Os desvios, porém, são muito maiores. A Controladoria-Geral da União (CGU) estima um rombo de pelo menos mais 3 bilhões de reais em fraudes no auxílio emergencial do governo. Esses casos ainda serão minuciosamente apurados pela PF, que já identificou situações em que grupos organizados falsificaram cadastros e receberam os pagamentos no lugar de pessoas humildes, que ficaram sem o dinheiro. Uma covardia. A audácia das quadrilhas não tem limites. No Paraná, empresários venderam a um órgão público um carregamento de álcool em gel que, em sua composição, tinha muito gel e quase nenhum álcool. Em outras palavras, não servia para nada. O órgão público foi a própria Polícia Federal. “A Covid deve bater a Copa do Mundo em casos de corrupção e volume de desvios”, estima um investigador do caso, admitindo que, até o fim da pandemia, as fraudes podem atingir cifras ainda maiores. Essa doença, pelo visto, não tem cura.


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