20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘A educação sexual é uma ferramenta muito importante para identificar a violência’, diz antropólogo

Publicado em 24/08/2020 12:00 -

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O que o combate à ideologia de gênero tem a ver com o conservadorismo que atingiu uma criança de 10 anos, violentada desde os seis por um tio e precisou fazer um aborto por conta dos recorrentes estupros? Tudo.

É o que afirma o antropólogo Lucas Bulgarelli, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, pesquisador e doutorando em Antropologia Social pela FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP). O tema do doutorado é justamente a relação entre gênero, sexualidade e conservadorismo e tem como objetivo entender o repertório construído por pessoas contrárias aos direitos LGBTs.

Durante as pesquisas de campo, que começaram em 2019, Bulgarelli descobriu que há uma relação direta entre o combate ao que se chama de “ideologia de gênero” com as violências, físicas e sexuais, que crianças e adolescentes são vítimas no Brasil. Principalmente em cidades pequenas e interioranas.

Segundo dados divulgados pela BBC Brasil, o país tem 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas. Essa também foi a denúncia feita por Bulgarelli, que ouviu relatos de professores e diretores enquanto pesquisava em campo para o seu doutorado.

O caso da menina de 10 anos ganhou repercussão quando a extremista bolsonarista Sara Winter, que já integrou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, divulgou dados da criança, como nome e localização, ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente.

“A impossibilidade de trabalhar com esses temas faz com que os professores e diretores soubessem do que estava acontecendo e não pudessem fazer nada, porque a tendência é deixar isso para a família. Mas é justamente na família que isso acontece”, argumenta Bulgarelli.

 

Qual foi a sua descoberta fazendo o doutorado em relação aos abusos sexuais na infância?

A ideia do doutorado tem sido fazer um mapeamento da circulação da ideologia de gênero no Brasil, pensando que essa é uma ideia que não surge com o governo Bolsonaro, ela já está por aqui desde 2013 quando começa o debate do Plano Nacional de Educação. Mas ela é bem mais antiga do que isso.

Então a ideia da minha tese é fazer um mapeamento e entender de onde ela surge, como que ela chega aqui, por quem ela é utilizada e que conjuntos de ações ela opera. Com o tempo, eu passei a entender que há uma interpretação da ideologia de gênero, que é utilizada pela esquerda e pelo campo progressista, que tenta minimizar essa ideia, como se fosse uma invenção, algo que não existe. 

Como é essa construção da ideologia de gênero?

De fato, a ideologia como é colocada não existe. O que se considera “ideologia de gênero” é uma concepção de que o debate de gênero e sexualidade é feito em um sentido conspiratório, que seria uma conspiração global envolvendo organizações internacionais como a ONU e tudo mais, que atuaria no convencimento nas escolas, essa ideia de tentar fazer lavagem cerebral das crianças. Nesse sentido ela não existe. Mas na medida que isso passa a surgir e circular, não só em espaços cristãos, mas também nas campanhas políticas isso começa a existir. A gente costuma dizer que ela existe e não existe.

Ela é uma interpretação bastante influenciada por uma moral cristã sobre o que é o gênero e a sexualidade. É uma tentativa de re-biologizar as diferenças sexuais, dizer que essa construção social colocada pelos movimentos feministas e LGBTs não existe. A criação de um vocabulário cristão também ajuda muito, porque você coloca como uma luta do bem contra o mal e o mal seria representado por essas mudanças que a sociedade tem passado e o bem seria a retomada desses valores tradicionais da família.

Como funcionou a sua pesquisa de campo?

A pesquisa de campo começou no ano passado. Eu comecei a fazer o que, na antropologia, a gente chama de etnografia multissituada, que é quando não existe um objeto de estudo em um lugar demarcado, então passamos a criar conflitos. A etnografia estava tentando olhar as cidades, sobretudo em contextos de interior, cidades pequenas, onde alguma coisa tivesse acontecido em relação a ideologia de gênero. No Sul do país isso estava muito forte, no Paraná, em Santa Catarina. Então comecei conversando com os diretores de escolas, professores, tentando olhar essas questões que são mais demarcadas desse tipo de disputa. 

Por que que se defende a criança? O Paul B. Preciado, filósofo queer [uma teoria sobre o gênero que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual são o resultado de um construção social], fala que a infância serve para esse repositório da heterossexualidade [atração sexual e/ou romântica entre indivíduos de sexos opostos] e da cisgeneridade [condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento], então você precisa que a criança seja hétero e cisgênera para justificar porque somos héteros e cis e porque isso é o normal.

Como a violência sexual apareceu nesse contexto?

Olhando um pouco daí eu comecei a ir para as escolas entender como isso acontecia lá. Foi quando a violência começou a aparecer. Não era algo que eu estava procurando, mas começou a aparecer. Conforme eu conversava com os professores eles traziam que existia uma reação dos pais, que não era organizada, como se o “Escola sem partido” fosse responsável por isso, mas de uma autonomia de atores que traziam que ouviu dizer que estava tendo o debate de gênero e sexualidade e que isso era uma ameaça. Estava tendo isso, mas ao mesmo tempo os diretores, sobretudo, traziam a pauta da violência contra as crianças, tanto no sentido do abuso físico quanto no sentido do abuso sexual. E aí foi quando eu comecei a perceber que as coisas estão ligadas.

Não é à toa que retiram esse debate das escolas e passam para as famílias. É um mecanismo que a Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro], com a proposta de abstinência sexual para adolescentes. São coisas que são lidas como coisas sem sentido, mas que fazem sentido quando você pensa que a ideologia de gênero tem criado muito engajamento afetivo, de que o mal se representa de muitas formas e isso pode ser enxergado como o hipotético professor trans ou professor de História comunista.

Você mencionou em uma postagem no Twitter sobre os ciclos de estupro. Como foi essa descoberta das conversas feitas na pesquisa de campo?

Conversando com os professores e diretores sobre como o debate da ideologia de gênero estava sendo criado, eles reclamavam muito disso que você falou, que a educação sexual é uma ferramenta muito importante para identificar a violência entre as crianças e os adolescentes. A impossibilidade de trabalhar com esses temas faz com que os professores e diretores soubessem do que estava acontecendo e não pudessem fazer nada, porque a tendência é deixar isso para a família. Mas é justamente na família que isso acontece.

Então eu ouvi situações de ciclos de estupros, em que pais ou padrastos estupram as filhas. Existem essas situações em que algumas são consideradas ilegítimas e outras legítimas, porque existem tendência de criação de parcerias em que as jovens são muitos jovens em contextos interioranos. Algumas dessas relações são legítimas, como quando o homem pega para criar a menina, ainda que ela seja uma menina muito jovem, às vezes existe essa compreensão. 

Muitas vezes o que entendemos como pedofilia, em alguns casos é visto como uma relação sustentável. Quando se era visto como algo reprovável, nada era feito. O que de fato era um debate público era esse debate da ideologia de gênero. Era aí que as questões eram colocadas. Para muitas pessoas, o gênero, o debate de gênero, ainda não chegou, em cidades do interior, mas a ideologia de gênero havia chegado, elas sabiam que aquilo era um mal que podia corromper a família.

Quando a gente fala de conversar com as crianças sobre sexualidade e gênero, a gente tá falando sobre evitar esse tipo de abuso, para que uma criança que é violentada sexualmente entenda que aquilo é uma violência.

Perfeito. E isso é a tônica do que tem acontecido. A educação sexual vai revelando uma série desses casos. Nas cidades menores eu percebi que era outra coisa. O olhar de uma cidade como São Paulo é de um jeito e de uma cidade com 5 mil habitantes é de outro. Nesse contexto menor, eu percebi que as pessoas até conheciam, existia até uma certa naturalização de coisas que são pedofilia. Com o tempo eu comecei a entender como isso funcionava. Como isso não incomoda, mas o hipotético professor que vai ensinar teoria queer incomoda?

Aí eu ia vendo, conversando com os professores e diretores, que eles tinham muito medo de debater esses assuntos. Só a criação de mecanismos para denunciar os professores já coloca eles sob risco. A maior parte evita falar disso, só fala na aula de Ciências, quando fala do sistema reprodutivo, e é justamente esse debate que possibilitaria e tem possibilitado as crianças poderem falar. É uma política que transfere para a família a administração quase que exclusiva desses conflitos sendo a família um espaço de violência e abusos, tanto com meninas quanto com pessoas LGBTs.

Quais são as interlocuções que dá pra gente fazer entre a sua pesquisa e as campanhas pró-vida ou antigênero?

As campanhas pró-vida e antigênero articulam, de certo modo, uma interpretação bastante influenciada pelos ideais cristãos de compreensão do gênero e da sexualidade. A palavra ideologia de gênero tem origem circunscrita, ela foi criada no contexto de produção de conteúdo sobre teoria da família no Vaticano, por setores ultraconservadores da Santa Sé. Isso está mapeado em artigos do Rogério Diniz Junqueira. Sabemos da influência do cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, o Papa Bento XVI, nesse contexto. A gente sabe que essa palavra foi muito testada, não surgiu do nada. Houve muitas tentativas e acabou virando ideologia de gênero. 

Isso acontece na virada dos anos 1980 e 1990 em contextos fora do universo acadêmico, justamente porque os argumentos acadêmicos não vão nesse sentido, as evidências e tudo mais. A palavra surge e tem uma origem católica. Aqui acontece uma aliança estratégica entre evangélicos e católicos, que são duas forças que não se unem tradicionalmente, mas que no discurso da ideologia de gênero se convergem. Por mais que hoje em dia a gente olhe mais lideranças evangélicas falando sobre isso, sabemos que existe uma participação da Igreja Católica muito grande.

E como isso chega no Brasil?

O conceito surge nesse momento, em que gênero e sexualidade passam a ser inscritos na Ordem Internacional de Proteção Global, ou seja, nos direitos humanos, no contexto das Conferências do Cairo e de Pequim, que aconteceram em 1993 e 1994, em que gênero e sexualidade viram direitos humanos, mas por meio da ideia dos direitos sexuais reprodutivos. Nisso a Igreja Católica já estava muito organizada para poder pautar esses debates.

De certo modo, temos no Brasil uma efetivação ainda que pelas metades. Não dá para dizer que o Brasil é um país protetivo para as mulheres e LGBTs, mas avançamos nesse sentido. Esse pouco avanço se torna argumento das campanhas pró-vida e antigênero, para dizer que o Estado havia sido corrompido.

Eles enxergam que a corrupção não acontece apenas por meio do dinheiro, mas acontece por meio da inserção de valores morais distintos dos valores que seriam cristãos. Tem essa ideia de que o Estado foi corrompido e, portanto, esse movimento que aconteceu em 2018, das campanhas políticas, serve para livrar o Estado disso. Por isso pensamos que a Damares fala muito, mas não faz nada, mas tem parecido cada vez mais que esse não fazer nada não é sem intenção. Há intenção nisso. 

Qual papel do atual governo federal nisso?

Isso se reflete quando o Eduardo Bolsonaro [deputado federal pelo PSL de SP] vai no seu Twitter e fala que a queda no número de assassinatos de pessoas trans em 2019, divulgados pela Antra, fala que isso é por causa do governo Bolsonaro, que atua para todo mundo e para as minorias. Essa ideia de que a liberação do armamento pode proteger uma mulher ou uma pessoa LGBT de um agressor. Tem uma lógica que não é de negação dos direitos, mas é de uma reinterpretação do que seriam os direitos.

As campanhas pró-vida e campanhas antigênero são contrárias a direitos, mas elas tentam emplacar uma visão específica do que seriam direitos e direitos humanos. O que eu tenho feito na pesquisa é acompanhar o que acontecem em termos de políticas de gênero e sexualidade no Brasil, que, de certo modo, tem sido transformada em políticas antigênero e antissexualidade. Até a própria ineficácia da política faz parte desse projeto de não realizar o específico para realizar o geral. Isso casa muito com o argumento de muitas pessoas LGBTs que votaram no Bolsonaro.

Temos o levantamento do Datafolha que aponta que 33% das pessoas LGBTs votaram nele. Cidadania para eles era colocar o coletivo sobre o individual. O individual seriam os direitos LGBTs e o coletivo os direitos de toda a nação. Isso é ser LGBT do ponto de vista LGBT de direita. Tem uma jogada que repercute e o governo ganha. A ideologia de gênero tem sido um pouco desse conectivo, de ser algo muito plástico e que pode se moldar.

Temos exemplos?

Isso se refletiu na vinda da Judith Butler, filósofa queer estadunidense, no Brasil em 2017, que é ainda anterior ao governo atual. A articulação contra a ideologia de gênero nesse episódio juntou atores muito distintos. Católicos, evangélicos, militaristas, Direita SP, MBL. Era uma mistura muito heterogênea. Na pesquisa tenho visto isso. Essa visão aparece nas esquerdas, de diferenciar as questões, de colocar como questões morais e econômicas. Mas essa ideia da cortina de fumaça tem se mostrado cada vez menos eficiente para explicar a conjuntura.

Não se trata só da Damares lidar com questões morais e o [Paulo] Guedes [ministro da Economia do governo Bolsonaro] com questões econômicas, uma coisa tem retroalimentado a outra, são políticas que dependem um da da outra. Existe um viés econômico no que a Damares faz, como por exemplo o home schooling, que é uma proposta de tentar implementar um modelo privado de educação infantil gestado pelas famílias, ao mesmo modo que existe uma tendência de pensar a precarização da forma que a política econômica tem sido implementada que vai de encontro com o que a Damares tem produzido.

E qual é o papel da ministra Damares Alves nisso tudo?

A figura da Damares acaba sendo muito importante nesse sentido de publicizar o combate de ideologia de gênero, porque ela é esse sujeito que fala coisas que as pessoas concordam, mas não querem falar. Assim como o Bolsonaro. É muito imperativo ver o Bolsonaro ser preconceituoso, porque muitas vezes as pessoas guardam os preconceitos, mas quando tem o representante que faz isso, você vai e vota nele, porque ele te representa não só naquilo que ele propõe, mas naquilo que ele pensa. Isso se tornou forte e as campanhas pró-vida e antigênero estão conectadas com isso, não com os mesmos atores, mas em contextos que perpetuava essas ações. Você combate a ideologia de gênero e pode manter as coisas como elas são. E como elas são? Muitas vezes repletas de violência e com o conhecimento dos familiares.

Isso é muito interessante. Porque antes a gente tinha um racismo e uma LGBTfobia muito mais velado, mas agora que temos pessoas públicas que falam sobre esses temas isso acaba endossando. Você acha que a ideologia de gênero, então, é um projeto de governo?

Dá para afirmar que tem sido, sim, uma política de governo. O gênero e sexualidade foram implementados na política brasileira como políticas de Estado, ou seja, elas são políticas que não dependeriam muito do posicionamento do governo para serem operadas, justamente por conta desse histórico de aceitação de compromisso do Brasil em acordos internacionais. Quando Bolsonaro chega no governo essas coisas vão se alterando.

Para muitos defensores da ideologia de gênero, os direitos sexuais reprodutivos seriam uma abertura para o aborto, a ideia de que, assim, a mulher teria autonomia e abortar. Essas coisas foram se tornando menos veladas. No processo eleitoral de 2018 ajuda muito nisso, quando vemos candidatos à presidência e ao parlamento defendendo abertamente essas coisas.

Isso cria uma legitimidade sob o preconceito, entende-se que isso pode ser falado sem tantos problemas. São coisas que com certeza interferem como o preconceito passa a ser mais alargado. Isso tem sido visível na mudança de cultura e nas construções de projetos de leis, não só nas escolas, mas em relação a permanência de pessoas trans nos esportes, ao atendimento de saúde com base em gênero e sexualidade. É mais do que só um discurso de ódio, isso tem uma certa operação, ainda que ela não seja orgânica, organizada. 

A Damares não é uma pessoa que surge do nada. Ela tem uma trajetória evangélica bastante forte. Ela é uma das fundadoras do Anajure [Associação Nacional de Juristas Evangélicos], que é uma das entidades responsáveis pro fazer pressão, tanto no STF [Supremo Tribunal de Justiça] quanto no Congresso desde 2005 quando surge a luta pelos direitos sexuais reprodutivos. Muita gente se espantou quando a Damares surgiu como ministra, mas ela é uma das figuras chave nesse processo todo. Dá pra gente contar a trajetória dos direitos de gênero e sexualidade, mas também dá para pensar isso a partir dos embates, que sempre tiveram ali, mas agora tem uma abertura maior.

Pensando na sua pesquisa e nos dados sobre abortos em crianças e adolescentes, o que podemos avaliar dos casos de subnotificação desses casos?

A gente já tinha dados que nos afirmavam que crianças e adolescentes tinham, no Brasil, um índice de violência doméstica e gravidez precoce muito acentuado em relação à América Latina. Isso é pré-Bolsonaro. Até então, no campo das políticas públicas se vinha falando da prevenção e redução da gravidez precoce. No campo da sexualidade particularmente se falava da educação, de você utilizar essa ferramenta para evitar discriminação.

Eram medidas que vinham sendo implementadas com dificuldades por outros governos e agora, com o governo Bolsonaro, aconteceu um foram interrompidas. No caso da criança de 10 anos [estuprada pelo tio desde os 6 anos de idade, que, aos 10, engravidou e precisou lutar na Justiça para realizar um aborto], nem a campanha de abstinência nem o home schooling auxiliariam de nada nesse processo. A criança precisaria de um espaço em que ela pudesse, antes de quatro anos de abuso, já ter expressado isso. E certamente não seria a abstinência sexual que evitaria esse estupro.

E em relação a forma que o país enxerga o aborto?

Esse caso mostra que mesmo conquistas já determinadas pela lei serem questionadas. Esse não é um caso de um aborto considerado ilegal, é um dos pouquíssimos casos em que o aborto é considerado legal. Ela cumpria dois quesitos, risco à própria vida e ser vítima de estupro. Mesmo assim isso foi questionado. Não se trata só de não criar direitos, mas de revisitar e reavaliar direitos que já estão consolidados.

Isso mostra como isso tudo tem sido um projeto, tanto político quanto de mobilização das emoções. Eu não vi ninguém nas bolhas bolsonaristas que eu avaliei no último fim de semana, na internet, se mostrando errado ao defender o que estavam defendendo. Elas se viam como corretas, como justas, se viam como alguém combatendo o mal.

Uma coisa que muito se falou é que a gravidez dessa criança já estaria avançada, mesmo sem ter uma data-limite para interrupção em caso de estupro. Como que isso pode ser entendido?

Com o mapeamento que fiz das bolhas bolsonaristas esse era o argumento mais usado. Para eles, ter o bebê seriam riscos iguais, riscos semelhantes. Então por que fazer o aborto se ela poderia ter o filho e colocar para adoção. Concordar ou discordar tanto importava nos argumentos, mas havia uma aliança de ser contra o abordo. 

No caso da concepção, a defesa pró-vida se coloca na defesa da vida do feto e na defesa da vida da gestante. Por mais que a gente não tenha um limite legal para realizar o aborto, existe padrões e procedimentos médicos que estudam isso, mas aí a gente começa a entrar nessa disputa de narrativa. Havia quem argumentava que o risco era igual, mas ginecologistas afirmaram que dar a luz nessas circunstâncias era muita maior do que realizar o aborto, ainda depois das 8 semanas.

Esse detalhe se coloca como técnico, mas é cheio de motivações que participam muito das campanhas pró-vida e antigênero em que se atribui o ato do estuprador e o aborto como coisas equivalentes. Cria-se uma certa ideia que o estupro e aborto estão errados.

A divulgação do nome da criança pela Sara Winter fere o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Sem dúvidas. A divulgação do nome e das informações jamais deveria ter sido espalhada pelas redes sociais. Há algumas iniciativas do meio jurídico para responsabilizar a Sara Winter e relacionando ela ao Ministério de Direitos Humanos, já que ela foi empregada por um tempo. Essa responsabilização deve acontecer não só em relação a Sara, mas todas as pessoas que colaboraram, inclusive instituições se foi o caso.

É preciso investigar como que a criança saiu do Espírito Santo, chegou no Recife e quase que imediatamente havia um grupo de pessoas organizadas ali? Isso é inadmissível do ponto de vista do direito. Fere o ECA porque não só a família, mas o Estado tem responsabilidade sobre essa criança. O Estado deveria proteger a identidade dessa menina.

Para não sermos tão pessimistas, o que esse caso mostra é que temos um movimento feminista e uma resistência que não está silente em relação a isso. O que nos deixa atordoados é que estamos correndo sempre atrás do que a direita tem pautado. A direita passa a pautar as questões de gênero e sexualidade e a gente passa a correr atrás.


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