29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Marcelo Freixo: ‘A milícia é o crime organizado mais perigoso à ordem democrática brasileira’

Publicado em 24/08/2020 12:00 -

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Uma das principais figuras da esquerda brasileira hoje, o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) faz política com um dos pés fincado na esperança da reorganização das forças progressistas do país e o outro que pisa firme, porém cauteloso, o movediço chão da atual realidade brasileira. Ao mesmo tempo em que diz acreditar na formação de uma frente democrática (e outra de esquerda) para derrotar o governo de Jair Bolsonaro, por exemplo, o deputado admite que isso só acontecerá mesmo em 2022, ao que tudo indica: “A relação com o Centrão dá a ele uma impossibilidade grande de ser cassado, de sofrer impeachment. Não há número para isso, não há votos para isso”, diz.

Mesmo levando em conta elementos como o auxílio emergencial e o repasse de verbas para alguns municípios, Freixo não esconde certa surpresa com a recuperação de Bolsonaro nas pesquisas de opinião: “Diante de um governo tão desastroso, com mais de 100 mil pessoas mortas, o Bolsonaro respira mais do que se imaginava que conseguisse fazer”.

Nesta entrevista, Freixo afirma não se arrepender de ter retirado sua candidatura à Prefeitura do Rio, apesar do anunciado fracasso das agora pulverizadas candidaturas de esquerda na cidade. Fazendo referência ao enfrentamento ao governo Bolsonaro no Congresso Nacional, o deputado afirma que “não fazia sentido eu sair de um cenário de uma disputa importante para entrar em uma disputa dividida no campo da esquerda”.

Sobre o avanço das milícias no Rio, o parlamentar diz: “A milícia não é um estado paralelo, a milícia é um estado leiloado, interessa a muita gente. A milícia elege senadores, elege prefeitos, ajuda a eleger presidentes, inclusive”. Apesar do momento adverso na política, Freixo diz acreditar que a polícia chegará aos mandantes do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco: “É muito importante para a democracia brasileira a gente saber quem mandou matar, qual grupo político e por que razão mandaram interromper a vida da Marielle”.

 

Após iniciar movimentos de pacificação na relação do Executivo com os demais poderes, o governo Bolsonaro parece ter ganhado fôlego, inclusive nas pesquisas de opinião. A grande mídia, por sua vez, bate em Bolsonaro, mas sustenta a política de Paulo Guedes. Há, hoje, condições políticas para afastar Jair Bolsonaro da Presidência?

O fortalecimento da imagem do Bolsonaro vem de algumas razões muito claras. Primeiro, o auxílio emergencial de R$ 600 que foi aprovado no Congresso – e não pelo Executivo, que só queria pagar R$ 200. Mas, a comunicação do Executivo é mais eficiente do que a comunicação do Congresso, e [o auxílio emergencial] parece ser coisa do presidente, que é quem paga. Outra razão é o auxílio que chega a algumas prefeituras específicas e faz com que a vida das pessoas consiga reagir em um momento tão dramático. Esses são fatores de materialização muito claros do governo Bolsonaro, o que dá a ele um fôlego nesse momento.

Há também sua relação com o Centrão. Ou seja, o toma-lá-dá-cá clássico da velha política feito hoje pelo governo Bolsonaro com mais ou menos 200 deputados com grandes interesses fisiológicos e o interesse também de fugir das investigações da Lava-Jato. Isso dá a Bolsonaro uma estabilidade política que faz com que ele tenha margem de crédito dentro da vida política brasileira. Isso dá a ele, evidentemente, uma impossibilidade grande de ser cassado, de sofrer impeachment. Não há número para isso, não há votos para isso.

Mas é claro que, pensando no tempo de governo – e sendo um primeiro governo –, a relação entre aprovação e rejeição ainda é desfavorável se comparada a outros presidentes. De fato, diante de um governo tão desastroso, com mais de 100 mil pessoas mortas, o Bolsonaro respira mais do que se imaginava que conseguisse fazer.

Qual é o teu posicionamento em relação à discussão Frente Ampla x Frente de Esquerda que é hoje travada entre as forças progressistas da política brasileira? E por quê?

Frente ampla e frente de esquerda são duas coisas distintas. A frente ampla é necessária em um debate pela democracia. Quando um governo avança em uma pauta de fechamento de Congresso, fechamento de Supremo, produção de fake news, você tem que ter uma frente democrática, tem que ter um diálogo amplo com todos os setores comprometidos com a democracia para não permitir um governo que tem claro viés autoritário.

Outra coisa é um debate eleitoral, um programa que você vai fazer para disputar as eleições e que aí pode e deve começar com uma frente de esquerda, a qual eu também sou amplamente favorável. A eleição tem dois turnos exatamente para que você possa fazer uma frente programática e ideológica no primeiro turno e uma frente mais pragmática no segundo turno. Para isso foi criado o segundo turno nas eleições.

Eu acho que o mais importante é criar uma frente democrática para derrotar Bolsonaro em 2022. Mas, garantindo que no primeiro turno se tenha ao menos uma frente de esquerda. Na eleição municipal, isso não está sendo possível em todas as cidades brasileiras. Eu espero que a gente tenha um amadurecimento daqui até 2022 e consiga fazer um programa eleitoral capaz de derrotar o projeto do Bolsonaro e devolver tranquilidade à democracia brasileira.

O Rio de Janeiro parece caminhar para uma disputa que se polarizará entre os candidatos Marcelo Crivella (Republicanos) e Eduardo Paes (DEM) para a Prefeitura. Algum arrependimento de ter retirado tua candidatura?

Não, eu não tenho nenhum arrependimento de ter retirado a minha candidatura. Foi uma medida muito pensada, muito conversada. Há uma polarização grande com o enfrentamento ao Bolsonaro no Congresso Nacional onde eu tenho a minha utilidade, onde o nosso mandato e o nosso trabalho está inserido, organizando uma frente de esquerda e uma frente democrática para o enfrentamento da agenda bolsonarista, uma agenda econômica, social e ecológica que é um retrocesso sem igual na história do Brasil.

No Rio de Janeiro havia uma divergência e uma dificuldade muito grande de unidade do campo democrático. Então, não fazia sentido eu sair de um cenário de uma disputa importante para entrar em uma disputa dividida, uma disputa fragmentada no campo da esquerda. Não foi possível no Rio nesse momento uma unidade, mas a gente espera que alguma candidatura do campo da esquerda cresça e consiga ir para o segundo turno.

Mais uma vez pulverizadas, as candidaturas da esquerda carioca têm alguma chance de reverter o aparente quadro eleitoral?

Ainda está cedo, mas eu sem dúvida estarei no Rio apoiando a candidatura da Renata Souza, que é a candidatura do PSOL, e torcendo para que ela cresça porque é uma candidatura muito importante, que dialoga com o que está acontecendo no mundo nesse momento. É uma mulher, negra, que vem da Favela da Maré e muito capacitada. Foi uma das deputadas mais bem votadas e conhece bastante o Rio de Janeiro. Então, ainda tem muita coisa para acontecer no Rio, mas a decisão de fortalecer nosso trabalho no Congresso Nacional, sem dúvida, foi acertada.

A eleição municipal no Rio, por questões históricas, absorve parte das discussões sobre a conjuntura nacional. Dessa vez não será diferente, e o debate sobre as ameaças à democracia que caracterizam o governo Bolsonaro fará parte da campanha. Como a esquerda, e o PSOL em particular, deve agir para disputar com a centro-direita representada por Eduardo Paes a bandeira da defesa da democracia e o apoio do eleitor médio carioca?

O debate nacional vai estar colocado principalmente nas grandes cidades brasileiras. Os temas da violência, da mobilidade urbana. O tema da desigualdade no Rio de Janeiro é muito grande e tem relações com o governo federal, tem relações com a reforma tributária, relações com os efeitos da pandemia. Então, mais do que nunca, no Rio, que sempre foi uma caixa de ressonância e sempre teve um debate nacionalizado, esse debate vai acontecer sem dúvida alguma.

Acho que a candidatura do Eduardo Paes é uma candidatura muito marcada pela herança de uma corrupção estrutural que acabou com o Rio de Janeiro na Era [Sérgio] Cabral. Não tem como desassociar o Eduardo Paes de tudo o que foi feito na Era Cabral, ele estava ali junto e suas campanhas foram financiadas pelos mesmos corruptos que financiaram a estrutura criminosa do governo Cabral. Não é uma alternativa para a democracia.

A gente está falando de outra democracia, uma democracia que brota das áreas pobres, que brota das favelas e periferias e que é representada pela Renata e até por outras candidaturas, mas não por uma candidatura vinculada aos interesses de quem afundou o Rio de Janeiro. Então, não ser bolsonarista neste momento não significa estar do lado da democracia ampla, principalmente em um lugar como o Rio de Janeiro, marcado por uma tragédia política tão recente e tão viva na memória dos cariocas.

A guerra entre grupos de traficantes e milicianos assombra algumas áreas do Rio, como a Praça Seca, para ficar no exemplo mais recente. Em boa parte da Zona Norte da cidade, a aliança entre a milícia e uma das maiores facções do tráfico, com a participação de policiais militares da ativa, já é uma triste realidade. Você concorda que aparentemente o crime organizado venceu o Estado de Direito no Rio? Ou existe luz no fim do túnel?

Eu venho denunciando a milícia como o crime organizado e máfia mais perigoso à ordem democrática brasileira desde 2008, quando presidi a CPI das Milícias [na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] e nós indiciamos ali mais de 200 milicianos, entre eles deputados e vereadores. Todos os líderes de milícia foram presos na CPI das Milícias e a gente continuou defendendo a democracia nessas áreas mais pobres e vulneráveis. A milícia não é um estado paralelo, a milícia é um estado leiloado, interessa a muita gente. A milícia elege senadores, elege prefeitos, ajuda a eleger presidentes, inclusive. Então, é muito grave, é o domínio de território transformado em domínio eleitoral, domínio econômico sobre a vida das pessoas, com um poder de fogo muito grande e com carteira do Estado. Então, é máfia.

Sem dúvida, a situação do Rio piorou muito nos últimos anos, exatamente pelos acordos entre crime, polícia e política, de onde tanta gente surgiu ultimamente. Isso não é novo, não é uma política nova, não é a não política. Isso é a coisa mais antiga e violenta que o Rio tem. Esse [combater às milícias] não é um compromisso que tenha de ser da esquerda. Esse é um compromisso de todo mundo. E, também não pode ser um compromisso só de quem vive em área de milícia. É preciso que todo o Rio de Janeiro, principalmente quem não vive em área de milícia, faça alguma coisa porque quem vive não consegue e não pode.

Até hoje a sociedade brasileira aguarda um desfecho aceitável para as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco, sobretudo no que diz respeito à identificação do(s) mandante(s) do crime. Como parlamentar – mas, sobretudo como amigo que foi de Marielle – você tem esperança de que esse caso seja resolvido e os verdadeiros responsáveis punidos?

Sobre o assassinato da Marielle eu não tenho a menor dúvida de que nós vamos chegar à autoria. Vamos chegar a quem mandou matar, e não só a quem apertou o gatilho. A investigação tem um tempo demasiado, a gente sabe disso. São mais de dois anos, esse é um tempo inaceitável para todos nós, mas a gente sabe que o crime foi um crime sofisticado, um crime encomendado e feito por algum grupo político poderoso e violento.

É muito importante para a democracia brasileira a gente saber quem mandou matar, qual grupo político e por que razão mandaram interromper a vida da Marielle. A Marielle virou um símbolo de muita força no mundo inteiro. Tinha muita gente que não a conhecia, mas quis conhecer. Sem dúvida alguma ela será sempre muito maior do que quem tirou sua vida. Mas, a gente precisa saber quem foi, e acho que as investigações da Polícia Civil, mesmo com todas as dificuldades do momento inicial, vão avançar e chegar à autoria do crime.


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