29/03/2024 - Edição 540

Poder

STF proíbe Governo de monitorar opositores e fecha cerco sobre abusos de Bolsonaro

Publicado em 21/08/2020 12:00 -

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O Supremo Tribunal Federal proibiu que o Ministério da Justiça elabore relatórios de inteligência contra opositores do Governo de Jair Bolsonaro. A decisão foi tomada pelo placar de 9 a 1. Na quinta-feira (20), a Corte concluiu um julgamento iniciado no dia anterior em que era questionada a produção de um dossiê contra 579 servidores e professores universitários apontados como membros de um grupo antifascista. Esta é a segunda vez neste mês que os ministros do STF trataram do tema inteligência e impuseram uma derrota à gestão Bolsonaro.

Na semana passada, também por 9 a 1, os ministros limitaram a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que encabeça o Sistema Brasileira de Inteligência (Sisbin). Naquela ocasião, a Corte entendeu que a Abin precisa justificar os pedidos de compartilhamento de informação feito a outros órgãos. Definiu ainda que a atividade de inteligência não pode acessar a dados protegidos por sigilo, como chamadas telefônicas e informações financeiras. Para isto, necessitaria da expressa manifestação de um magistrado. Ficou delimitado também que os outros órgãos do Sisbin só podem repassar informações para a Abin desde que seja comprovado o interesse público da medida, afastando qualquer possibilidade desses dados atenderem a interesses pessoais.

Nos dois casos o autor da ação foi a Rede Sustentabilidade ―em um deles teve como coautor o Partido Socialista Brasileiro. A relatora foi a ministra Cármen Lúcia. E o único que divergiu dos colegas foi Marco Aurélio Mello. O decano Celso de Mello não participou dos dois julgamentos por razões de saúde. Preste a se aposentar, ele se licenciou nesta semana dos trabalhos para realizar uma intervenção cirúrgica.

No julgamento de quinta-feira, os ministros entenderam que houve “desvio de finalidade” no dossiê elaborado pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça que apresentou uma relação de policiais e outros servidores que se opunham ao Governo e se declaravam antifascistas. Rejeitaram, no entanto, a abertura de uma investigação contra o ministro da Justiça, André Mendonça.

Cármen Lúcia, relatora da ação, agradeceu a imprensa por ter revelado a formulação do documento. Segundo a ministra, o próprio André Mendonça afirmou que só soube do dossiê por meio de notícias jornalísticas. “O ministro da Justiça diz nos autos, afirma, escreveu, assinou e encaminhou: só teve conhecimento de sua possível existência pela imprensa. Benza Deus a imprensa livre do meu País. E benza Deus que temos um poder Judiciário que toma conhecimento disso e que dá a importância devida para garantia da democracia”.

A delineou em seu voto a existência desse desvio de finalidade. “No direito constitucional o uso ou o abuso da máquina estatal, mais ainda, para a colheita de informação de servidores com postura política contrária a qualquer Governo caracteriza, sim, desvio de finalidade, pelo menos em tese”.

Cármen Lúcia também observou ser necessária a existência de serviços de inteligência do Estado para as seguranças pública e nacional, mas a atividade deles deve ser desempenhada dentro dos estreitos limites constitucionais e legais. Ela considerou que, caso isso não ocorra, em vez de defender o Estado, a sociedade e a própria democracia podem ser comprometidas. "A República não admite catacumbas, a democracia não se compadece com segredos, a não ser para se lembrar de situações que precisamos ter como superadas", afirmou.

Em seu voto, o ministro Roberto Barroso disse que, se o Governo Bolsonaro estivesse realmente preocupado com o risco de manifestações contra a democracia, “talvez fosse o caso de monitorar os grupos fascistas e não os antifascistas”.

Ex-titular da Justiça no Governo Michel Temer (MDB), o hoje ministro do STF Alexandre de Moraes disse que o relatório estava rotulando pessoas, o que é vedado pela legislação. “Não é possível que qualquer órgão público possa atuar fora dos limites da legalidade. Isso é grave. Estava mais para fofocaiada do que para relatório de segurança”, afirmou. Todos os ministros tiveram acesso ao dossiê. Nele, conforme Moraes, estão listados policiais de cada Estado que seriam opositores ao Governo.

Em seu voto, o ministro Luiz Fux ressaltou que o dossiê é uma afronta à liberdade de expressão e não tem qualquer embasamento legal. “Esse relatório é a cultura do medo baseada em um nada político, em um nada jurídico”, afirmou. Já a ministra Rosa Weber destacou que não cabe ao Estado definir como seus alvos em relatórios de inteligência pessoas que expressam determinada ideologia ou crença. “Um Estado constitucional não admite que sejam as ações do Estado orientadas pela lógica do pensamento ideológico”, frisou a ministra.

O único que divergiu dos demais ministros, Marco Aurélio afirmou que o relatório seria lícito e é uma espécie “cadastro de pessoas naturais e entidades” e de “movimentos que estão ocorrendo no território brasileiro”. Afirmou ainda que os levantamentos desses dados “são necessários e indispensáveis à manutenção da segurança pública.”

O advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, haviam defendido o arquivamento do processo, denominado ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Ambos entenderam que o relatório não se trata de uma peça de investigação, mas de informação. Para Aras, ele era um compilado de dados públicos acessados pelas redes sociais dos alvos do dossiê, o que não seria ilegal, em sua opinião.

Após o julgamento, o ministro André Mendonça emitiu uma nota para tentar amenizar sua derrota na Corte. Afirmou que a decisão “reconhece a importância do regular exercício da atividade de inteligência como essencial para o Estado Democrático de Direito e a segurança dos cidadãos”. Mendonça ainda agradeceu as manifestações dos ministros do STF sobre a “integridade, transparência e isenção” dele neste episódio. Ele é um dos cotados pelo presidente Bolsonaro para assumir uma vaga no Supremo neste ano, com a aposentadoria compulsória de Celso de Mello, em novembro.

Análise

A ministra Carmen Lúcia olhou o bicho e concluiu: se tem tromba de elefante, orelhas de abano de elefante, presa de elefante, altura, e caminha como um elefante, só pode ser um elefante. E assim condenou o uso do aparelho do Estado para espionar servidores públicos contrários ao governo.

“No Direito Constitucional, o uso ou abuso da máquina estatal para a colheita de informações de servidores com postura contrária ao governo caracteriza desvio de finalidade”, disse a ministra no seu voto. A sessão do tribunal foi interrompida e será retomada hoje com o voto dos demais ministros.

Em julgamento, a questão suscitada por um dossiê produzido pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 servidores públicos e três professores que se declararam antifascistas. Ser antifascista ou fascista não é crime. Por que então investigar os antifascistas e deixar os fascistas em paz?

Arapongagem é crime. É coisa da época da ditadura militar de 64 que criou o Serviço Nacional de Informações, extinto pelo presidente Fernando Collor em 1992. O atual Sistema Brasileiro de Inteligência conta com 42 órgãos de coleta de informações. O presidente Jair Bolsonaro quer usá-los ao seu gosto.

Na semana passada, ao julgar outra ação, o Supremo decidiu que isso não é possível. E estabeleceu limites para o acesso e a troca de informações entre os órgãos e a presidência da República. Bolsonaro queria centralizar as informações na Agência Brasileira de Informações comandada por um delegado amigo seu. Não pode.

O ministro André Mendonça, da Justiça, não rebateu a existência do dossiê nas explicações que ofereceu ao Supremo, disse apenas que tomou conhecimento dele pela imprensa. A ser verdade, admitiu desconhecer o que se passa no quintal do seu ministério. Talvez por isso tenha mandado embora o militar autor do dossiê.

O episódio serve para mostrar que Mendonça se alinha com seu chefe no costume de atravessar a rua para pisar em casca de banana. Não só ele. Augusto Aras, mais advogado de Bolsonaro do que Procurador-Geral da República, chamou o dossiê sobre os antifascistas de relatório que “antecipa riscos”. Quais? A quem?

A propósito: como chamar um governo que, vira e mexe, afronta o Estado de Direito?


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