25/04/2024 - Edição 540

Especial

Outros muros nos envergonham

Publicado em 07/11/2014 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Neste domingo, dia 9, precisamente às 23h, completa-se 25 anos que um dos maiores símbolos do totalitarismo veio abaixo como um castelo de cartas soprado por uma criança. O Muro de Berlim, consequência direta da ilusão de que o socialismo possa ser imposto de cima para baixo durou 28 anos (do dia 13 de agosto de 1961 ao dia 9 de novembro de 1989), custou a vida de centenas de pessoas e condenou a uma divisão forçada quatro milhões de seres humanos que, até então, dividiam uma identidade. Na prática, uma cidade que funcionava como um único organismo urbano foi cortada ao meio com o bloqueio de 81 pontos de cruzamento e 193 ruas, separando famílias, amigos e casais, afastando trabalhadores dos seus empregos, estudantes de suas escolas, dividindo um povo em dois.

O propósito do Muro – acabar com o êxodo dos alemães do lado oriental para o ocidental – foi justificado como uma medida adotada para acabar com o contrabando de divisas e a atividade dos espiões ocidentais. Na verdade, assim ainda ocorre em Cuba, o regime totalitário obrigava todo um povo a viver sob sua leitura distorcida do socialismo, um socialismo que vivia sua grande controvérsia: construir uma sociedade igualitária em detrimento das liberdades individuais.

Desde os primeiros momentos daquela manhã de agosto, a máquina de moer almas trabalhou incessantemente. Sua mais cruel engrenagem, a burocracia. Para atravessar de um lado a outro da cidade, o cidadão era obrigado a passar por 18 operações de controle alfandegário, incluindo a revista das malas e bagagem, da carteira de dinheiro, do carro, além de se submeter a um estudo minucioso do passaporte – tudo isso sob a mira de policiais armados. A imensa maioria dos alemães orientais, no entanto, não reunia credenciais suficientes nem mesmo para passar por esta maratona. Simplesmente foram condenados a viver isolados do mundo.

Vinte e oito anos se passaram até que esta insanidade chegasse ao fim. No entanto, estas mesmas cenas, nas quais a burocracia é usada como arma de domínio sobre todo um povo, onde direitos básicos – como o de ir e vir – se perdem no burburinho obtuso da intolerância, continuam ocorrendo neste momento, diante dos nossos olhos, sem que tomemos uma atitude concreta para detê-las.

Estas cenas acontecem neste momento nas fronteiras da Cisjordânia, onde um muro tão vergonhoso quanto o que dividiu Berlim condena palestinos ao ostracismo e israelenses ao isolamento moral; continuam acontecendo na divisa entre os Estados Unidos e o México, onde um muro fronteiriço construído sob o argumento de impedir a entrada de imigrantes ilegais separa, na verdade, o primeiro e o terceiro mundos; continuam acontecendo em Cuba, onde um muro natural formado pelo oceano ainda isola os cubanos da realidade. São todos muros ideológicos, como o de Berlim.

Um muro no deserto

O Muro da Cisjordânia começou a ser construída em 2002, durante o governo do primeiro ministro israelense Ariel Sharon com o objetivo de evitar que terroristas suicidas palestinos entrassem em Israel. Desde o início, no entanto, a iniciativa suscitou críticas da comunidade internacional, que considerou o muro como um símbolo da segregação cultural e religiosa.

Cerca de 80% do Muro situa-se em território palestino, onde adentra até 22 km em alguns lugares, para incluir como parte de território israelense áreas densamente povoadas por colônias ilegais tais como Ariel, Gush Etzion, Emmanuel, Karnei Shomron, Guiv'at Ze'ev, Oranit e Maale Adumim.

O Tribunal Internacional de Justiça de Haia declarou o Muro ilegal em 2004. A ONU, por sua vez, classificou-o como uma tentativa – também ilegal – de anexar território palestino, violando o direito internacional a pretexto de razões de segurança. Ativistas de direitos humanos, incluindo organizações israelenses como a Machsom Watch, sustentam que a construção viola as fronteiras demarcadas pela ONU, com a apropriação indevida de territórios por Israel, e que os controles militares minam o desenvolvimento econômico do povo palestino, além de limitar a chegada de ajuda humanitária.

“Você tem este enorme muro sendo construído bem no meio da Cisjordânia, como alguém pode acreditar que haverá um estado palestino ali? É um símbolo da opressão”, afirma o Rabbi Michael Lerner, da Tikkun Community.

Desde que a área localizada entre o Muro e a Linha Verde foi declarada restrita pelos militares israelenses para dar lugar ao labirinto de concreto, os palestinos que ali vivem ou que necessitam chegar às comunidades ali localizadas foram obrigados a portar vistos emitidos pelos israelenses.

Quinze comunidades palestinas reunindo cerca de 50 mil pessoas foram enclausuradas nestas áreas. Foram fisicamente separadas do resto da Cisjordânia e sua população obrigada a obter autorizações israelenses para continuar vivendo em suas casas e em suas terras.

Além do isolamento humano e econômico, o Muro viabilizou o controle israelense da quase totalidade do Aqüífero de Basin, um dos três maiores da Cisjordânia, que fornece 362 milhões de metros cúbicos de água por ano. O controle dos recursos hídricos na região é outra forma de domínio imposta pelos israelenses sobre os palestinos. Segundo o linguista, filósofo e ativista político norte-americano Noam Chomsky (entrevistado desta edição da Semana On), “o Muro já abarcou algumas das terras mais férteis do lado oriental. E, o que é crucial, estende o controle de Israel sobre recursos hídricos críticos, dos quais Israel e seus assentados podem apropriar-se como bem entenderem”.

Chomsky escreveu um artigo para o New York Times resumindo em poucas palavras as verdadeiras intenções por detrás do Muro da Cisjordânia. Disse ele: “Poucos questionariam o direito israelense de proteger seus cidadãos contra ataques terroristas ou mesmo de erguer um muro de segurança, se esse fosse um meio apropriado. Também é claro onde tal muro seria erguido se a segurança constituísse a preocupação orientadora: dentro de Israel, no interior da fronteira internacionalmente reconhecida, a Linha Verde estabelecida depois da guerra de 1948-49. O muro poderia então ser tão proibitivo quanto as autoridade quisessem: patrulhado pelo exército nos dois lados, pesadamente minado, impenetrável. Um tal muro maximizaria a segurança – e não haveria protesto internacional ou violação das leis internacionais.”

Outro deserto, outro muro

Cerca de 6 mil pessoas já morreram tentando cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos desde que o ex-presidente Bill Clinton impulsionou o programa de segurança na fronteira em 1994. As mortes aumentaram 27% em 2012, chegando a quase 500 neste ano.

Muita gente simplesmente desaparece no deserto. Morrem de sede, perdidos, são assassinados pelos “coiotes” (que cobram para guiar os imigrantes pelço desereto até a “Gringoland”) ou meso por fazendeiros estadunidenses que tomam para si o patrulhamento da região.

A morte no deserto não é misericordiosa. O corpo humano se entrega aos poucos. Em seu consagrado livro “The Devil’s Highway”, o escritor mexicano Luis Alberto Urrea descreve passo a passo este sofrimento. “Mesmo aqueles que estão em forma, cedo ou tarde se entregam. O cérebro se encarrega de desligar a máquina”. No último estágio do calor começam as alucinações, os nervos se incendeiam “como se você estivesse derretendo”, diz Urrea. “Sua temperatura corporal vai às alturas, o sistema sanguíneo na superfície da pele se dilata para tentar esfriar a pele. Seus olhos ficam vermelhos, as veias queimam e, então, o tecido literalmente cozinha”. É uma maneira horrorosa de morrer.

Ainda assim, cruzar a fronteira para os Estados Unidos é o objetivo comum de milhares de mexicanos e de imigrantes ilegais das Américas do Sul e Central. Gente que enfrenta a fome, a sede e a violência em busca de melhores possibilidades de vida na imensa selva do "american dream".

O muro fronteiriço Estados Unidos–México – hoje com cerca de 965 km – inclui barreiras de contenção, iluminação de alta intensidade, detectores antipessoais de movimento, sensores eletrônicos e equipamentos de visão noturna, bem como vigilância permanente com veículos e helicópteros.

Além de separar geograficamente a fronteira San Diego – Tijuana, o Muro funciona como uma arma ideológica que impede a integração dos "subdesenvolvidos" com os “desenvolvidos”. É como uma linha a separar dois mundos tão próximos e tão diferentes.

Seus críticos afirmam que ele muro resolve o problema do fluxo ilegal de pessoas, drogas e armas entre os dois países. Em 1994, ao comentar a decisão de Clinton de endurecer o jogo contra os imigrantes por meio do fortalecimento das barreiras, o presidente mexicano, Felipe Calderón já antecipava esta conclusão. "O muro não vai resolver nenhum problema. A humanidade cometeu um tremendo erro ao construir o muro de Berlim, e creio que hoje em dia os Estados Unidos estão cometendo um grave erro ao construir esta barreira na nossa fronteira comum".

Além do fator ideológico, o muro entre os Estados Unidos e o México favorece o tráfico de seres humanos, torna-se um caso de direitos humanos ao ameaçar a integridade física daqueles que tentam entrar ilegalmente no país, além de destruir o habitat de inúmeras espécies, impedindo que ops animais busquem por água, perturbando seu processo de migração e causando danos ao meio ambiente. Terras de três tribos norte-americanas também foram divididas pelo muro.

Um muro de água e sal

Há pouco mais de dois anos, o ditador cubano Raul Castro anunciou um relaxamento pragmático do controle que mantem sobre os cidadãos do país. Extinguiu-se a exigência da odiada "carta blanca", uma permissão de viagem pela qual cada cubano tinha de pagar cerca de US$ 150, e da carta-convite expedida por embaixadas cubanas nos países visitados, cujo custo podia alcançar US$ 200 (um salário típico em Cuba fica em torno de US$ 20). Ampliou-se de 11 para 24 meses o período máximo de permanência no exterior.

A aparente liberação das viagens nasceu com exceções destinadas a "preservar o capital humano criado pela Revolução" e a proteger a segurança nacional. Tradução: médicos, pesquisadores, atletas e dissidentes menos conhecidos pela mídia continuam enfrentando dificuldades para deixar o país.

A interpretação mais corrente das medidas anunciadas em Havana indica como seu verdadeiro objetivo facilitar as viagens daqueles poucos cubanos – uma incipiente "classe média" – com dinheiro para realizar viagens de turismo, ou interessados em fazer compras no exterior para incrementar negócios nascentes na ilha.

O número de cubanos que viaja aos Estados Unidos aumentou. Segundo agentes da alfândega americana, mais de 22 mil chegaram às fronteiras dos Estados Unidos com o México e com o Canadá no ano passado. É quase o dobro do número de 2012. Os cubanos com voos para a América Latina ou Estados Unidos, em geral, pertencem aos estratos mais prósperos e bem relacionados da sociedade, acelerando a fuga da ilha de pessoas com mais qualificação.

Exatamente por isso, o fluxo de cubanos que tentam chegar à Flórida por mar (uma distância de 145 quilômetros) voltou em 2014 ao ritmo regular e às vezes acelerado que mantinha do começo da era Raúl Castro. São pessoas com menos recursos, mas que, ainda sim, querem sair da ilha.

Entre 2005 e 2008, a Guarda Costeira deteve uma média de 2.651 cubanos por ano, a maioria a bordo de lanchas pertencentes a contrabandistas que chegam a cobrar milhares de dólares pela travessia. Entre 2009 e 2011, a cifra se reduziu a menos da metade, e as embarcações voltaram a ser botes rudimentares, de borracha e latão. No ano passado foram 2.059 os cubanos localizados na água e repatriados para a ilha, conforme estabelece o acordo de migração conhecido como “pés secos/pés molhados”, em vigor desde 1994. Outros 780 balseiros que conseguiram alcançar o litoral dos EUA terão o status de residente garantido em um ano, como estabelece a lei.

Em setembro, pelo menos quatro naufrágios sem sobreviventes foram registrados. O mais grave foi conhecido no dia 31 de agosto, quando a Marinha mexicana resgatou dois cadáveres e 15 imigrantes moribundos à deriva a bordo de um bote de latão na costa de Yucatán. O grupo original tinha 32 pessoas e havia partido um mês antes do porto de Manzanillo, na província cubana de Granma. Um a um foram morrendo de fome e sede, e seus corpos foram atirados ao mar pelos sobreviventes. Entre eles, Yaylin Milanés Santander, grávida de seis meses. Em 24 de agosto também foram encontrados os corpos de quatro cubanos flutuando no Atlântico, poucos quilômetros a leste da praia de Hollywood, na Flórida.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *