19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Precisamos de um Estado forte’

Publicado em 11/08/2020 12:00 -

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A crise global causada pela pandemia revela uma série de contradições e fragilidades que levaram o Brasil a depender cada vez mais de importações. Para o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, a vulnerabilidade é fruto de uma visão política que pensa o Brasil como um mero exportador de commodities, como minério de ferro e alimentos. Em entrevista à Radis, o sanitarista analisou o quadro atual de dependência e lamentou a descontinuidade da política voltada para o Complexo Industrial-Econômico da Saúde, o chamado CEIS. “Essa iniciativa mostrou que o Brasil tinha todas as condições de construir uma forte base tecnológica de saúde no país”, disse. 

Temporão, que é médico, foi diretor do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), criado pelo Conselho Sul-Americano de Saúde (Unasul), um importante ponto de articulação de políticas de saúde no continente, que encerrou suas atividades em 2018. Para ele, o resultado da ausência do Estado nessa área não poderia ser outro: o Brasil é hoje um país frágil tanto no acesso de tecnologias na área da saúde como perdeu o protagonismo que tinha na América do Sul e no mundo com a implementação de políticas neoliberais. “Temos que recuperar essa visão estratégica. É impossível um país como o Brasil imaginar que vai ter um sistema universal sem ampliar a sua capacidade tecnológica em saúde”, afirma. 

 

Por que o país enfrenta esse quadro de vulnerabilidade no abastecimento de saúde?

A fragilidade da sustentabilidade tecnológica do SUS vem de longo tempo. Houve, sim, marcos históricos importantes, mas que não conseguiram reverter o quadro. A abertura comercial e indiscriminada do governo Collor, no início da década de 90, teve efeito contrário ao pretendido, já que ampliou a dependência nacional de princípios ativos para a produção de medicamentos. A aprovação da Lei de Patentes, em 1996, foi muito precoce, pois o Brasil ainda não tinha organizado sua capacidade produtiva. Em 1999, tivemos a lei de genéricos, que aumentou a dinâmica da produção, e a criação da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Muito antes, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1975, fez com que o Brasil tivesse uma capacidade única de produção de imunobiológicos entre os países em desenvolvimento. Mas à medida em que a base produtiva foi sendo fragilizada, passamos a depender de produtos e também de transferência de tecnologia. Havia um setor forte de equipamentos médicos e hospitalares, que foi totalmente desestruturado. Na década de 80, o Brasil produzia cerca de 50% dos princípios ativos que utilizamos na indústria farmacêutica. Hoje produzimos se tanto 10%. Mas perceba que a covid-19 é uma doença sistêmica e que revelou algumas fragilidades que estão presentes em praticamente todas as patologias. 

Como começa e em que se baseia a política de base do CEIS?

Em 2007, assumi o ministério, tive uma oportunidade única de transformar em uma política de Estado uma série de visões e discussões realizadas no âmbito acadêmico. Na Fiocruz, Carlos Gadelha e eu já tínhamos a visão de reduzir a dependência e de desenvolver uma base produtiva em saúde brasileira. Usamos essa janela de oportunidade e, juntos, implantamos uma política de fortalecimento do Complexo da Saúde para internalizar a tecnologia considerada estratégica para o SUS. Essa política teve início em 2009 e se manteve até 2015. Ela conseguiu desenvolver cerca de 80 projetos gerando uma grande economia de recursos para os cofres públicos. Havia a parceria entre laboratórios públicos, empresas privadas de capital nacional e empresas multinacionais detentoras de patentes de medicamentos. 

Há um marco que permitiu a construção dessa política?

Sim, um evento bem importante foi a quebra da patente do efavirenz [para tratamento da aids], em 2007. Essa foi a primeira vez que o Brasil quebrou a patente de um medicamento por meio de um decreto do presidente Lula. Ao contrário do que o senso comum diz, é falso afirmar que elas foram quebradas quando José Serra era ministro da Saúde [1998-2002]. O que houve na época foi uma ameaça de quebra de patente para fazer acordos econômicos mais vantajosos. Com a quebra do efavirenz, começamos a produzir o genérico em Farmanguinhos com os princípios ativos sendo produzidos em um consórcio de empresas farmoquímicas brasileiras e instaladas no Brasil. Isso nos deu total autonomia de produção deste medicamento. Mas ainda era visão de produto com patentes expiradas, não tinha um componente de inovação. Porque a indústria de genéricos basicamente é uma indústria de cópias já que copia produtos que estão em perda de sua proteção de patentes.

Indo além do medicamento em si, que resultados podem ser apontados com a quebra dessa patente?

O sucesso dessa iniciativa mostrou que o Brasil tinha todas as condições para caminhar e construir uma forte base tecnológica de saúde no país. Essa visão inovadora permitiu, por exemplo, que São Paulo tivesse uma fábrica de aceleradores lineares [para radioterapia], fundamental no tratamento do câncer. O Brasil era importador do equipamento e a política permitiu que o fabricante internacional instalasse essa fábrica suprindo o mercado nacional e também exportando. Esse é um exemplo concreto de uma visão aplicada no contexto de um país como o nosso que tem todas as condições de prosperar. Infelizmente, o momento em que vivemos sob o ponto de vista político e da visão da economia, da saúde e do desenvolvimento entra em conflito com o que defendemos.  

Quando essa visão estratégica deixou de existir?

Infelizmente, toda a prioridade que essa política tinha foi deixada de lado a partir de 2015, com a entrada do governo Temer, que abandonou essa iniciativa por ter uma visão equivocada de desenvolvimento e de política de saúde. Hoje, apesar de ela continuar funcionando sob o ponto de vista formal, e algumas dessas parcerias terem avançado, perdeu-se a visão estratégica. O resultado é que temos um país frágil no acesso de tecnologias no campo da saúde. Com a pandemia, essa vulnerabilidade se expressa em toda sua dramaticidade. Não tínhamos sequer capacidade de produzir os Equipamentos de Proteção Individual [EPIs], máscaras, luvas, aventais, capotes para proteção dos profissionais de saúde, além de respiradores e testes para diagnósticos. Se tivéssemos perseverado com o CEIS e potencializado a política de inovação, com toda certeza estaríamos menos vulneráveis.

O conceito da autonomia na produção foi uma prioridade na construção do SUS?

A autonomia já estava colocada como visão estratégica no relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. No documento “A Questão Democrática no Campo da Saúde” que o Sergio Arouca [sanitarista] apresentou no 1º Simpósio de Política de Saúde na Câmara dos Deputados [1979], um dos itens citados era o fortalecimento da capacidade de produção de insumos e medicamentos. É claro que esse componente importante da política de saúde, quero destacar, nunca foi de fato uma prioridade dentro da política do SUS. Essa política só se explicita nessa visão moderna, inovadora, mais radical, digamos, em 2007, isso é fato.

Que vantagens o Brasil apresenta para implementar uma política de inovação no campo da saúde?

Por uma questão de escala, não faz sentido juntar dentro da visão de desenvolvimento as políticas de saúde, ciência e tecnologia e inovação e política industrial. Em muitas tecnologias de saúde, se não temos escala de produção, o custo para produzir dentro do país é muito alto. Nós temos de saída um mercado gigantesco que aumenta o poder de compra do Estado quando as compras são centralizadas, já que a quantidade de pessoas a serem atendidas por essas tecnologias é muito grande. O Brasil tem todas as condições que países menores menos complexos e desenvolvidos não possuem. Ouso dizer que a Anvisa é uma das cinco maiores agências reguladoras do mundo. Somos um país de dimensões continentais, com uma população de mais de 200 milhões de habitantes, o que reduz o custo do preço. Temos a base industrial mais importante da América Latina, uma base científica muito bem estruturada, com universidades e centros de pesquisa e uma base produtiva importante na área de saúde. E temos o SUS como sistema universal, que tem poder de compra. Então, faz todo o sentido implementar essa visão moderna e inovadora em nosso país.

Como recuperar a visão estratégica em um ambiente de negacionismo da ciência e da pesquisa? 

Hoje temos a negação da visão da Reforma Sanitária e do SUS como um processo civilizatório, e é algo antagônico ao que pensamos. Não temos mais política industrial. Existem vários documentos que mostram a queda brutal da participação da indústria no PIB brasileiro. O Brasil fechou fábricas e ampliou sua dependência em todos os campos, não apenas na saúde. Mantivemos a capacidade tecnológica na indústria aeronáutica, com a Embraer; alimentícia, com a Embrapa, que é a maior empresa do mundo em pesquisa e desenvolvimento de sementes e novas formas de tecnologia de plantio para a produção de alimentos; e o sistema de Ciência e Tecnologia em saúde que tem cinco décadas de construção. Essa estrutura foi atacada a partir de 2016. Já com o atual governo temos o ataque e a desvalorização da ciência brasileira e o corte radical dos recursos para a área. É preciso retomar esse caminho porque é impossível imaginar que um país como o Brasil vá ter um sistema universal sem ampliar sua capacidade tecnológica em saúde. A dependência tem que ser reduzida, não ampliada. Mas para isso a gente precisa de um outro olhar, outra visão de desenvolvimento, de nação, de política pública, de justiça social, de equidade a fim de fortalecer o sistema público de saúde. E isso não existe atualmente. Essa é a nova agenda para que as forças progressistas e humanistas se debrucem e construam uma agenda de transformação para o futuro. 

De que forma a agenda deve dar prioridade a medidas que diminuam a desigualdade?

A covid-19 é um vírus em que 100 milhões de partículas cabem na cabeça de um alfinete que nada mais é do que uma tira de RNA envolta em uma capa de proteína que conseguiu fazer uma revolução no mundo. A doença desvendou todas as contradições, mazelas, fragilidades de sistemas de saúde e econômicos, de proteção social, da questão ambiental, da desigualdade estrutural. Isso foi revelado de maneira crua e clara, em todo o mundo. Basta olhar como essa doença está matando muito mais proporcionalmente os mais frágeis, vulneráveis, negros, pessoas de menor escolaridade, que vivem nas periferias das regiões metropolitanas. A diferença de mortalidade em São Paulo entre um bairro mais rico e mais pobres é 10 vezes maior. A questão é se teremos força política para mudar estruturalmente essa situação, daqui para a frente, para que a capacidade do Estado, a importância da ciência e do sistema universal efetivamente sejam dirigidos para todos, e não como se diz cotidianamente que o SUS é muito importante para os mais pobres. Não, o SUS não foi construído para isso, ele foi pensado e inserido na Constituição para ser um sistema para todos.

Que outros aspectos o senhor aponta para o Brasil estar refém da produção industrial internacional?

A vulnerabilidade tecnológica é um dos componentes importantes, não apenas o único. Hoje o país está de joelhos, numa posição frágil, pois dependemos muito para a aquisição. Veja que 90% dos princípios ativos para produzir remédio no Brasil vem da China e da Índia. Isso é razoável? Repito que a fragilidade poderia ser menor se tivéssemos perseverado com a política iniciada em 2001. Isso se perdeu. A curtíssimo prazo estamos muito vulneráveis, mas essa questão sequer consegue ser colocada na agenda desse governo porque não há compreensão do que estamos falando. Isso claro que fragiliza ainda mais a posição brasileira. Um exemplo concreto é a posição brasileira no campo do direito das relações internacionais, a postura equivocada do Itamaraty. O Brasil era respeitadíssimo no campo da saúde pública global, teve participação fundamental na criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi fundamental na aprovação da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, teve uma participação estratégica na aprovação do acordo Trips de proteção patentária [da Organização Mundial do Comércio (OMC)], que permitiu a quebra da patente do efavirenz. O Brasil foi líder no tratamento universal da aids por meio do coquetel e na produção de genéricos para o tratamento da doença. O Programa Nacional de Imunização [PNI] é considerado referência internacional. Nesse momento, todo esse patrimônio está se esvaindo por conta da postura do governo no enfrentamento da covid-19. 

Qual a sua expectativa para o futuro?

Eu destaco sete dimensões para serem pensadas. A primeira é a questão ambiental, pois ficou evidente que o surgimento do vírus tem a ver com o desequilíbrio ecológico. Segundo, é a importância da ciência brasileira, pois não há futuro para o Brasil no contexto das nações e numa visão de redução da desigualdade e prosperidade, sem uma ciência forte. A terceira é que a sociedade percebeu que o SUS é importante e abre-se uma oportunidade de repensar suas bases de financiamento e a sua vulnerabilidade tecnológica. Quarto é que ficou evidente o conflito que houve na distribuição de papéis e responsabilidades, da repartição de recursos e política fiscal, entre União, estados e municípios. O tema terá que ser repensado e afeta profundamente a área de saúde. O quinto ponto é a governança global em saúde com o fortalecimento da OMS como instância de defesa da saúde global. O coronavírus não será o último episódio que vai exigir um esforço global integrado e articulado entre as nações. O sexto ponto é a redução da desigualdade estrutural. Precisamos de um Estado forte que seja indutor de políticas, regulador, formulador e que possa liderar, implementar e executar políticas públicas voltadas para a redução dessa desigualdade estrutural. Não há como imaginar que o mercado resolve tudo. No campo da saúde e das políticas sociais resolve-se muito pouco sem um Estado forte e presente.

Por que a produção científica brasileira resulta em poucos produtos patenteados?

A ciência brasileira pública muito em revistas indexadas, mas esse conhecimento não é traduzido na produção de patentes, de conhecimento aplicável. Isso envolve uma relação orgânica entre o mundo da produção e da ciência. Enquanto a maior parte do mundo de produção de ciência está nas universidades e institutos públicos, a produção está no setor privado. O Brasil teve algumas iniciativas positivas na legislação, que permitiu avançarmos um pouco, mas estamos muito distantes do que seria razoável. Para mudar esse quadro, é preciso ter esforço nacional e esse tema deve entrar na agenda central da política de desenvolvimento. É preciso estreitar as relações entre os centros de pesquisa, laboratórios públicos, universidades, e as empresas que produzem e fazer com que elas invistam em inovação. Mas para que isso aconteça temos que ter uma visão de longo prazo. Não se enfrenta esse quadro com o olhar de um governo de quatro ou oito anos. Essa é uma agenda para 20, 30 ou 40 anos. Infelizmente, a sociedade brasileira não conseguiu criar consenso para isso. A hegemonia do pensamento nesse campo tem uma visão diferente da que defendemos e não vê na ciência nenhuma importância estrutural para o desenvolvimento do país

A área da saúde aumenta o tamanho do problema ou é parte da solução para sair dele? 

A saúde é parte da solução. Ela tem uma dualidade: é política fundamental para a melhoria das condições de vida de uma população, mas tem dinâmica econômica específica subjetiva que lhe dá uma singularidade. Estamos falando de 10% do PIB. Se eu falo de um PIB de 7 trilhões de reais, são 700 bilhões de reais ao ano que a saúde movimenta, considerando todas as suas dimensões. Veja que 10% dos empregos mais qualificados no Brasil estão na saúde. Ao contrário de outras áreas da economia, quanto mais tecnologia a saúde incorpora mais trabalho humano de qualidade precisa. E ela está na fronteira do conhecimento junto com a indústria de guerra das novas tecnologias do futuro: nanotecnologia, novos materiais, química fina, microeletrônica, biotecnologia. É lamentável não ter essa visão de que a saúde é um componente da solução da crise econômica e deve ser incluído na visão macroeconômica de qualquer política pública. Isso reforça os argumentos de que a saúde, enquanto política social, não é uma despesa, mas investimento, como também o é na sua dimensão econômica de criação de emprego, de riqueza, desenvolvimento e inovação.

Qual o cenário das relações e da diplomacia em saúde entre os países na América do Sul?  

O cenário é o pior possível. O Isags e a Unasul acabaram em 2018. O Isags, que eu me dediquei de 2011 a 2016, tinha um papel fundamental para articular os 12 países da América do Sul no campo da saúde. O Brasil perdeu completamente o protagonismo e a liderança, que construímos ao longo de algumas décadas. Tudo foi jogado fora. Não creio que a pandemia vá ter alguma influência estrutural de mudanças que sejam perceptíveis nos países da América do Sul em relação aos sistemas de saúde da maneira como estão estruturados hoje. A perda da Unasul e a destruição do Isags foram graves porque estávamos construindo um processo de discussão, de aprofundamento, de qualificação, de capacitação de recursos humanos, de construção integrada de políticas. Será preciso muito trabalho para reconstruir essa articulação. E ela só é possível com a mudança de todo o contexto político num prazo muito curto, o que não me parece plausível. Mas as bases estruturais, o acúmulo de conhecimento, a produção de documentos, a capacitação de pessoas, a construção de estratégias conjuntas está viva e pode ser recuperada num prazo relativamente curto. Mas repito que, para isso, o contexto político tem que mudar profundamente. Mudou na Argentina, está mudando no Chile, mas no Brasil, que é o líder e foi o motor de todo esse processo de integração sul-americana, o quadro é totalmente adverso.


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