23/04/2024 - Edição 540

Brasil

A cruzada do governo contra a saúde indígena

Publicado em 06/08/2020 12:00 -

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O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, obrigar o governo Jair Bolsonaro a adotar medidas para proteger a população indígena durante a pandemia. Na verdade, o Executivo já deveria estar atuando nesse sentido (mesmo que não por iniciativa própria). Uma decisão liminar em favor da ação julgada no último dia 5 já está valendo desde o dia 8 de julho. Por coincidência, foi nessa data que o presidente retalhou um projeto de lei aprovado no Congresso com o objetivo de proteger não só indígenas, mas também quilombolas e outros povos tradicionais na crise sanitária. A caneta de Bolsonaro riscou, por exemplo, a obrigação de fornecer água potável a esses territórios. O PL, que se tornou o mais vetado da história brasileira, previa a execução de um plano emergencial com várias ações, como testagem e controle do acesso às terras indígenas.

Por isso, a decisão do Supremo está sendo considerada outra derrota para o governo, obrigado a cumprir um papel constitucional que recusa.  Entre as ações impostas, está a elaboração de um plano de enfrentamento à pandemia voltado para os povos indígenas, a criação de uma sala de situação para monitorar mortes e casos, a instalação de barreiras sanitárias para proteger aldeias em isolamento e o desenho de outro plano, desta vez para retirar ocupantes ilegais de áreas protegidas. 

Esse último ponto causou divisão entre os ministros do STF. A ação movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em conjunto com partidos políticos pedia a retirada de invasores de sete terras. No território Yanomami, por exemplo, a situação chegou ao limite, e há cerca de 20 mil invasores atraídos pelo garimpo ilegal. Até ontem, já havia 227 casos de indígenas infectados por lá. Edson Fachin defendeu que a retirada deveria ser imediata, dado o risco de contaminação pelo vírus. O restante votou com o relator da ação, Luís Roberto Barroso, entendendo que a União precisa planejar a desintrusão para depois executá-la. 

É de se duvidar que o plano saia do papel num contexto em que o órgão federal criado para proteger os indígenas prioriza o licenciamento de uma linha de energia ao invés da proteção de índios isolados. O repórter André Borges revela que o presidente da Funai enviou uma carta aos indígenas Waimiri Atroari, de Roraima, em que argumenta que “não dá para esperar o fim da pandemia” para enviar tradutores ao local. Esse trabalho é necessário para que a ligação entre o estado e o sistema de transmissão de energia nacional seja feita – “e o presidente Jair Bolsonaro cobra a liberação desde que entrou no Palácio do Planalto”, ressalta a matéria. Os indígenas tiveram de responder o óbvio a Marcelo Xavier: “Não vemos novas alternativas eficientes que impeçam essa doença de chegar à terra indígena senão o isolamento social e respeito à quarentena”.

Xavier completou um ano de Funai. Sua atuação segue o script bolsonarista de colocar em postos-chave pessoas que atuam contra a missão dos órgãos que comandam: “Nos 365 dias em que esteve à frente da Funai, ele seguiu à risca a promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro de não demarcar ‘nenhum centímetro’ de terra indígena e não deu sequência a nenhum processo de homologação de terras indígenas. Mais: o órgão vem desistindo de processos de demarcações em disputa na Justiça, mesmo quando há decisão favorável aos indígenas em instâncias anteriores”, resume o site De Olho nos Ruralistas, que desencavou uma história e tanto.

Em 2014, Xavier foi afastado da coordenação das ações de desintrusão da terra indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso, depois que interceptações telefônicas mostraram que ele colaborava com os invasores. Mais tarde, Xavier atuaria como consultor dos ruralistas na escandalosa CPI da Funai e do Incra aberta no Congresso para criminalizar indigenistas.

Indígenas são especialmente afetados pela crise da covid-19, aponta relatório

A população indígena vive uma situação de especial fragilidade em meio à pandemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus. Há dificuldade para acesso ao auxílio emergencial, ausência de políticas públicas para esses povos nas cidades, além de discriminação e ampla desassistência.

A situação foi relatada por mais de 50 instituições, centros de investigações, movimentos sociais e fundações em um dossiê que reúne informações de todo o continente latino-americano, a partir de um grupo de trabalho do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso).

Essas informações foram encaminhadas para o relator especial sobre os direitos dos povos indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), José Francisco Cali Tzay. O relator deve elaborar um relatório detalhado sobre a situação dos povos indígenas em toda a América.

As reivindicações por condições dignas por esses povos ganham mais visibilidade a partir deste fim de semana. É quando tem início diversas campanhas no âmbito do agosto indígena, marcado pelo Dia Internacional dos Povos Indígenas (9 de agosto).

Entre as denúncias está a subnotificação dos casos de covid-19 entre indígenas, especialmente nas cidades. O documento relata o racismo institucional que chega a impedir a assistência adequada a essas pessoas. “O racismo institucional tem feito com que muitos indígenas que procuram atendimento pelo SUS sejam registrados como pardos ou, até mesmo, brancos. Isso quando o atendimento não é recusado a este indígena”, afirma Tzay.

“Por parte do Estado, não há qualquer contabilização dos dados de indígenas contaminados ou suspeitos em contexto urbano. Essa contabilização está sendo feita por organizações indígenas e não indígenas. Mesmo assim, devido ao fato de a maioria dos indígenas viverem em cidades, esses levantamentos estão longe da realidade”, completa.

A falta de políticas públicas direcionadas para essas populações também é um problema-chave relatado. Muitas vezes, esses povos sequer tem o seu direito à ampla informação garantido. “Há um processo institucionalizado de invisibilização desses indígenas, o que promove discriminação e desassistência inclusive com desinformações sobre a possibilidade de atendimento nos hospitais de campanha e a participação nas políticas públicas de saúde de forma geral.”

Auxílio emergencial

As dificuldades também são relatadas em relação ao auxílio emergencial de R$ 600, articulado por parlamentares de oposição ao governo federal. O presidente Jair Bolsonaro defendia um auxílio de apenas R$ 200. O valor foi aumentado na Câmara dos Deputados. Entretanto, cabe ao Executivo operacionalizar. E existem problemas, especialmente em relação aos povos indígenas, que não possuem nenhum programa ou assistência específicos.

“Muitos parentes tiveram dificuldades por não saber lidar com as tecnologias e depender de terceiros, alguns sofreram roubo de terceiros que fizeram seus cadastros”, relata a indígena Poranga Pituna, residente em Porto Velho. “Poucas com estudos e ocupando profissões na área da saúde e educação. Tem mulheres indígenas também em situação de rua e mulheres imigrantes indígenas que pedem ajuda nas ruas ou mesmo brasileiras vindas de estados vizinhos de Rondônia”, afirma.

A dificuldade no acesso é relatada pelo documento da Clacso, que lembra de um projeto de autoria da deputada federal Joenia Wapichana (Rede), mulher indígena, que busca um auxílio específico para seu povo. “Nem todos estão conseguindo acessar o programa do governo federal (…) O projeto (de Joenia) institui valor de um salário mínimo mensal por família, incluindo indígenas que residem em zona urbana. Ele admite ainda a distribuição direta às famílias de alimentos, remédios, luvas, máscaras, álcool em gel e material de higiene”, afirma Poranga.

Comunicação

O documento reafirma a inexistência de comunicação oficial com esta população, tanto sobre programas como sobre a covid-19. “A informação não chega via órgãos oficiais, ao contrário, são passadas sobretudo oralmente, pela tradição comum de esclarecimento dos mais velhos aos mais jovens, em sua própria linguagem e cultura. É o que relatam os grupos envolvidos nesse relatório, como os indígenas habitantes em Blumenau, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, pertencentes aos povos Xokleng, Xukuru do Ororubá, Guarani, Karajá, Terena, Kariri Xocó e outros.”

Grupo de risco

O relatório traz a visão do médico sanitarista Douglas Rodrigues, que defende a formalização dos indígenas como grupo de risco para a covid-19. “Essas populações apresentam vulnerabilidades nos dois polos, ou seja, prevalência alta de doenças infectocontagiosas e de problemas crônicos, como diabetes e hipertensão, além de índices elevados de obesidade e desnutrição”, afirma o médico.

“Nesse sentido, as medidas adotadas partem de iniciativas privadas protagonizadas por organizações indígenas e não indígenas que contam com o apoio de outras entidades para garantir alimentação, acompanhamento dos casos suspeitos, disseminação de informações e acesso a máscaras e álcool em gel”, completa o relatório.

Força ao garimpo

Enquanto isso – na quarta-feira (5) – o ministro do Meio Ambiente se reuniu com garimpeiros clandestinos (dentre eles indígenas), e defendeu a atividade ilegal, que vem sendo combatida nas últimas semanas pelo Ibama no oeste do Pará. “É importante que a gente faça esse debate de maneira aberta. Parem de fazer de conta de que os indígenas não querem garimpar ou produzir lavoura, ou que não querem fazer atividades ligadas ao setor madeireiro florestal como se isso fosse verdade absoluta”, disse Ricardo Salles.  

Após a reunião com o ministro, os garimpeiros se sentiram fortalecidos a ponto de invadir uma pista do aeroporto de Jacareacanga e impedir a decolagem de uma aeronave da FAB que estava no local para auxiliar uma operação do Ibama na terra indígena Munduruku. 

Mundo

O genocídio indígena na pandemia não é um problema só do Brasil. Ao menos 70 mil indígenas foram infectados e mais de 2 mil morreram de covid-19 nas Américas até o final de julho.


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