20/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Uma resposta ao vereador Elizeu Dionízio

Publicado em 31/10/2014 12:00 -

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Diante das declarações do eminente vereador Elizeu Dionízio, publicadas na entrevista concedida por ele à revista digital Semana On no dia 24 de outubro, nos aparece a oportunidade de expormos algumas considerações, chamando todos e todas à reflexão e problematização de alguns inarredáveis temas relacionados à democracia e aos valores e princípios republicanos de nosso Estado de Direito.

Assim o fazemos em respeito à representação por ele em nossa Câmara Municipal, e porque vocaliza um número substancial de cidadãos e cidadãs que lhes confiaram seu voto no último pleito para uma vaga no Parlamento Federal.

Afirma ele que “a politica ela é o reflexo da sociedade e a sociedade brasileira vem passando por transformações” (sic). Neste ponto, não vemos objeções, mas nossa plena concordância, haja vista que a evolução de pensamentos e ideias é que, verdadeiramente, provoca mudanças do ponto de vista cultural. E é a cultura um fenômeno unicamente humano, se referindo à capacidade que os seres humanos têm de dar significado às suas ações e ao mundo que os rodeia. A política, portanto, é também produto cultural em paulatina construção. E, nessas transformações é que, inevitavelmente, residem polêmicas e reações conservadoras, especialmente no campo das conquistas dos direitos humanos, entre elas a igualdade substancial e a liberdade (de expressão, de disposição sobre o corpo, dos direitos sexuais e da afetividade).

O que se deve acautelar, sob pena de violação do princípio da laicidade do Estado, é quando a religião, majoritária em determinado momento histórico, pretenda imprimir seus valores de forma ampla e plural. Isso é extremamente desastroso para a vivência democrática.

 “(…) o povo cristão, evangélicos e católicos, vem crescendo”(sic). Segundo estatísticas oficiais do senso demográfico de 2010, a migração dos católicos para o movimento protestante (tradicional, pentecostal, neopentecostal e restauracionista) foi marcante para o aumento de evangélicos, todavia, por essa perspectiva, vê-se que cristãos permanecem no Cristianismo, apenas migrando para outras vertentes. O que tem ocorrido mundialmente, no aspecto das religiões monoteístas, é o aumento real do Islamismo, especialmente na América do Norte e América Latina, considerada a religião mais ascendente do Planeta. No campo das religiões politeístas também há um crescimento tímido, mas ainda assim crescimento. As religiões de matriz africana também apontam ascendência, sem olvidarmos de um forte movimento brasileiro gnóstico e também espírita kardecista.

Importante esse olhar para o panorama atual, uma vez que a religião exerce um papel de relevo na cultura dos povos. Veja-se que existe um trabalho científico de uma pesquisadora da Unicamp relacionando o progressismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconhecido como o tribunal de vanguarda do Brasil, com a vertente Metodista, visto que naquele estado se concentra o maior contingente de fiéis dessa denominação no país. O que se deve acautelar, sob pena de violação do princípio da laicidade do Estado, é quando a religião, majoritária em determinado momento histórico, pretenda imprimir seus valores de forma ampla e plural. Isso é extremamente desastroso para a vivência democrática, pois ameaça os pilares do Estado de Direito, entre eles a dignidade humana, a cidadania e o pluralismo, aqui entendido como diversidade. E não podemos admitir qualquer discurso nos espaços democráticos em que as diferenças sejam manobradas para diminuir, denegrir ou impedir a vivência plena de direitos de qualquer cidadão ou cidadã deste país, seja cristão, seja budista, seja muçulmano, seja espírita, candomblecista, umbandista, exotérico, bruxo, agnóstico ou ateu. Igualdade é um princípio indissociável da democracia.

Família

Sobre a “bancada cristã e da família” é importante que se diga que é legítima a representação desse grupo social, unido por ideais e interesses comuns pautados na experiência cristã. Todavia, registremos nossa total indignação e preocupação com esse discurso “da família”, aliás, tão reprisado nos programas eleitorais e eleitoreiros que assistimos há pouco. Não deslegitimando a composição nuclear familiar (pai, mãe, filho/s e filha/s), até porque esta representação existe culturalmente e está no campo das liberdades dos seres em se unir e constituir família/s, conforme se infere do Artigo XVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), de que “Os homens e mulheres (…) têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”. Destaque-se que, tecnicamente, não há obrigação para que esse direito de constituir família seja exercido por homens “com” mulheres, pois a norma não expressou deste modo e sim “homens e mulheres têm direito”, muito embora a discussão do ponto de vista teleológico não caiba neste curto espaço, por sua alta complexidade, mas que não pode ser desprezada.

Não há obrigação para que esse direito de constituir família seja exercido por homens ‘com’ mulheres, pois a norma não expressou deste modo e sim ‘homens e mulheres têm direito’, muito embora a discussão do ponto de vista teleológico não caiba neste curto espaço, por sua alta complexidade, mas que não pode ser desprezada.

Sobretudo, é primordial refletir que a família nuclear — representação ainda dominante, mas em menor percentual pelo IBGE-2010 — coexiste com outros formatos como as de pai ou mãe com filhos/as, as chamadas famílias monoparentais, onde as mães com filhos (número bastante elevado no Brasil) se tratam de mulheres abandonadas, viúvas, mães solteiras ou independentes; as famílias extensas (composta pelo casal, familiares distantes e agregados); as famílias homoafetivas (constituídas por casal homossexual: homem-homem, mulher-mulher); famílias constituídas com filhas e filhos adotivos; famílias constituídas por mães e pais separados/as, que trazem para a nova relação filhas e filhos de outros relacionamentos/casamentos (circunstância em que surge a figura do meio-irmão/ã); famílias constituídas a partir de novas técnicas de reprodução (que tornam tecnicamente possível uma criança ter um total de cinco pais: três tipos de mães – a genética, a gestacional e a de criação, e dois pais – o biológico e o de criação); família intacta (que não sofreu separação); família de casal sem filhos; e ainda um grande número de LGBT que, solteiros, cuidam de seus pais e mães na velhice e viuvez, enfim, na atualidade existem muitos arranjos e possibilidades de ser uma família.

Ao classificar os tipos de famílias e os sujeitos que as compõem, a sociedade rotula, distingue, discrimina e estabelece perigosas e desastrosas divisões, que geram marginalização e violências.

Não toleramos nenhum discurso que venha diminuir a dignidade de outros grupos e formas de ser família, pois isso é da maior gravidade contra os fundamentos e objetivos constitucionais do Brasil.

Organização social

“Se você tiver um grupo social organizado, você consegue fazer o que bem entender.” (sic). Alto lá! Fazer o que bem entender, desde que não viole os fundamentos republicanos, especialmente da cidadania, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político, e que preserve os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, consoante os incisos I e IV do art. 3º da CF/88.

É preciso ampliar e desenvolver o entendimento de que também as minorias populacionais e mesmo as grandes populações dominadas, como o caso dos negros e quilombolas, tem seu papel no deliberar democrático.

Ora, é preciso ampliar e desenvolver o entendimento de que também as minorias populacionais e mesmo as grandes populações dominadas, como o caso dos negros e quilombolas, tem seu papel no deliberar democrático. Isso porque a Constituição Federal assim determinou, concedendo o poder ao povo como um todo, como consta do § único do art. 1º que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Em assim sendo, significa que as populações minoritárias não deixam de ter e exercer o poder através dos mecanismos eleitos para tanto, como os organismos de controle social (conselhos populares) e instituições como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil.

 

“Os cristãos lutam para que não sejam privados de seus direitos religiosos, dentro de suas instituições.” (sic). A nosso ver, não há justificativa para esta suposta luta. O Estado Brasileiro tem firmes bases na laicidade, o que protege definitivamente o direito e a liberdade de crença, inclusive os locais de culto (inciso VI do art. 5º), de modo que jamais haverá interferência estatal no âmbito eclesiástico e/ou religioso. As regras internas de cada religião são acatadas livremente pelos seus adeptos sem que haja qualquer ingerência externa. Mesmo as regras dissonantes do princípio da igualdade de gênero do inciso I do art. 5º (homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição) não obriga, por exemplo, a Igreja Católica Romana a conferir cargos eclesiásticos (sacerdócio) às mulheres por conta desta prescrição constitucional. Justamente pela barreira pensada pela Carta Magna, que é o Estado Laico, a solução dada é absolutamente eficaz. Da mesma forma que a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77) impera no âmbito do Direito Civil, a religião é livre para defender a indissolubilidade do casamento aos seus membros.

União civil

“Hoje já existe o reconhecimento de que se pode ir a um cartório e registrar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Este direito já foi adquirido. A briga deles agora é para entrar em nossas igrejas e receber as bênçãos.” (sic). Primeiro, há um enorme equívoco quanto ao direito de união estável conferido às pessoas do mesmo sexo. Já está assegurado pela Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o direito ao registro civil do casamento, cujo tratamento plural foi alcançado a partir da interpretação sistematizada da Constituição Federal e ordenamento infraconstitucional que admite a conversão das uniões estáveis em casamento o que fora ampliado também para os casais formados por pessoas do mesmo sexo/gênero.

Segundo, não existe no movimento LGBT nenhuma pauta relativa a “bênção religiosa” para os casamentos, absolutamente. Se o fosse, seria da maior incompatibilidade com nosso sistema laico constitucional que, ao mesmo tempo que impede as religiões de ingerirem nas políticas públicas estatais, assegura a inviolabilidade da liberdade de crença e protege os locais de culto. Portanto, se algum LGBT pretender receber bênçãos matrimoniais, que o faça em interesse eminente particular e não como bandeira de movimento social, e o que poderá ser firmemente negado, com o nosso apoio, sob bases das respectivas crenças.

Não existe no movimento LGBT nenhuma pauta relativa a “bênção religiosa” para os casamentos, absolutamente. Se o fosse, seria da maior incompatibilidade com nosso sistema laico constitucional.

Título da ATMS

Sobre o trabalho realizado pela ATMS, é importante que se diga, que esta ONG cumpre um papel social da maior grandeza e relevância. Isso porque evidentemente que o Poder Público não comporta todas as ações necessárias ao atendimento e proteção da população por ela representada, que são as travestis e pessoas transexuais (mulheres trans e homens trans) os quais, em sua maioria, vivem à margem da sociedade, sem acesso à educação formal, ao mercado de trabalho, à formação e capacitação profissional, e mesmo nos serviços de saúde são frequentes vítimas de constrangimentos e até mesmo negado atendimento digno, como o caso recente de uma médica que se negou a examinar uma paciente trans por questões religiosas, a qual foi a óbito, em casa, sem o devido e digno atendimento. Assim sendo, o Estado não cumpre seu papel perante essa parcela populacional.

Além do que todo o rol de legislação vigente em MS para proteção dos direitos da diversidade sexual foram de iniciativa e interlocução da ATMS, o que beneficia hoje, aproximadamente, uma população LGBT estimada em 250 mil pessoas em Mato Grosso do Sul e, segundo projeções do IBGE (10% populacional como sendo LGBT), em Campo Grande seriam aproximadamente 84 mil habitantes.

Parada LGBT

Sobre a Parada LGBT, as justificativas de ônus público não merecem ser assim pensadas, uma vez que é dever do Estado promover e garantir a saúde e a segurança, e que intercorrências como brigas e excesso de bebidas ocorrem em tantos eventos de outras naturezas, desde um baile sertanejo, um rodeio, uma festa junina, ou um show de rock. A reunião de jovens, música e bebidas são combinações que fazem fugir ao controle que, deve ser pensado mais profundamente, que é a preservação das liberdades e o acesso a uma educação transformadora pela qual temos trabalhado e idealizado.

Sobre o fato de ter amigos homossexuais que fazem trabalhos sociais, diferenciando-se dos drogados, promíscuos ou violentos, é importante não cairmos no reducionismo das teses meritocratas e higienistas, pois também os homossexuais promíscuos, violentos, dependentes químicos, pobres ou analfabetos não perdem, em razão disso, sua humanidade digna e merecem as mesmas proteções dadas àqueles privilegiados pelo sucesso e oportunidades profissionais ou mesmo por famílias que lhes proporcionaram meios de superação das desigualdades.

Educação sexual nas escolas

Sobre a “cartilha que quer fazer a orientação sexual” (sic) nas escolas, emerge um grande equívoco de como esse material de combate à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero foi erroneamente divulgado para a sociedade. Primeiro, falta clareza na compreensão quanto à expressão “orientação sexual”, que não tem a ver com orientar ou estimular crianças neste ou naquele comportamento, como temos ouvido de pessoas que não dominam a temática educacional. Orientação sexual diz respeito a uma das dimensões da sexualidade humana, também compreendida pelo sexo biológico e pelo gênero, ou identidade, ou expressão de gênero. Orientação tem o significado de como o desejo da pessoa é naturalmente direcionado, se para o sexo oposto, para o mesmo sexo, para ambos, ou para nenhum. Retrata, portanto, como se dá a inclinação natural de afeto/sexo ao objeto de desejo. O material jamais pretende adestrar ou doutrinar crianças a esta ou aquela prática, até mesmo porque isso está no íntimo de cada indivíduo, mas o que o material pretende é servir como ferramenta de ensino para que nossas crianças aprendam a conviver com as diferenças, pois elas são inevitáveis, seja pela cor de nossa pele, pela nossa compleição física, pela nossa condição econômica e cultural, pela nossa religião, pela integridade ou deficiência física e também pelas diferenças no campo da sexualidade. Espera-se, sobretudo com esse novo Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), que sejam cumpridas as metas dentre as quais o respeito à diversidade é uma tônica.

Orientação sexual diz respeito a uma das dimensões da sexualidade humana, também compreendida pelo sexo biológico e pelo gênero, ou identidade, ou expressão de gênero.

Sexualidade e promiscuidade

Sobre sexualidade e promiscuidade, aparece-nos um perigoso jogo de palavras que, bem sabemos, encontra eco em muitos indivíduos, até mesmo porque para muitos destes as discussões sobre sexualidade se resumem ao uso das genitálias para procriação. Mas, como ele mesmo argumenta no início, a sociedade está em transformação, e promiscuidade, registre-se, é questão de fundo comportamental, que nada tem a ver com orientação sexual, tanto que existem homossexuais e também heterossexuais promíscuos, como também existem heterossexuais e homossexuais castos, bígamos, polígamos. O que esperamos é que discutir sexualidade seja tão natural como falamos de afetividade, de intelectualidade e mesmo de espiritualidade, que são dimensões humanas que nos tornam seres completos.

Jean Wyllys

Sobre a suposta fala do deputado federal Jean Wyllys sobre pedofilia, trata-se de assunto da maior deslealdade intelectual, porquanto jamais essa fala foi por ele proferida e que enseja vários inquéritos na Polícia Federal por crimes de falsidade por meios cibernéticos, cujos autores têm sido paulatinamente desvendados e já respondem por tais crimes. Ocorre que o movimento evangélico criou uma repulsa imediata e irracional do referido deputado, cujos posts difamatórios circulam nas redes sociais sendo compartilhados sem qualquer checagem do lastro de veracidade. Mas nessa semana, o Pastor Davi Morgado, tornou público seu pedido de “perdão” a Jean Wyllys que teve mais de 4 mil curtidas e centenas de compartilhamentos, atitude que nos pareceu bastante sensata e digna.

Registro, por fim, que nosso papel social é promover debates construtivos que nos proporcionem uma recíproca alfabetização em democracia, em cidadania, sem jamais secundarizarmos o grande pilar da dignidade humana, lembrando sempre que o Brasil tem compromissos inarredáveis de defesa dos direitos humanos, numa agenda de respeito e de convivência pacífica, em prol de uma cultura de paz, que almejamos seja edificada em nossa Capital Morena.

Júlio Valcanaia – Presidente Comissão da Diversidade Sexual da OAB/MS e vice-presidente do Conselho Estadual da Diversidade Sexual (CEDS/MS)


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