23/04/2024 - Edição 540

Especial

Após a doença, as sequelas

Publicado em 03/08/2020 12:00 -

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Passados mais de cinco meses desde o primeiro caso de Covid-19 diagnosticado no Brasil, médicos do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade (PRMFC) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp começam a observar o surgimento de uma nova demanda de atendimento nos serviços de Atenção Primária em Saúde (APS) de Campinas: a chegada de pacientes com sequelas pulmonares, cardíacas ou renais decorrentes da Covid-19.

“São pessoas que necessitam de atendimento contínuo na rede pública de saúde, e que dão entrada no Sistema Único de Saúde (SUS) pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) ou Unidades Básicas de Saúdes (UBSs). Neste cenário, as equipes que atuam nesses locais, especialmente os profissionais da área de Medicina de Família e Comunidade, desempenham papel relevante no acompanhamento longitudinal desses indivíduos”, explicou o docente do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, Rubens Bedrikow.

Dentre os problemas apresentados, os pacientes com sequelas pulmonares, cardíacas ou renais da Covid-19 apresentam sintomas como cansaço intenso, diminuição da função respiratória e dificuldade para realizar as atividades da vida cotidiana. “Nesses casos, é crucial o acompanhamento e controle rigoroso de doenças crônicas como hipertensão arterial, diabetes, insuficiência cardíaca, asma, bronquite, enfisema, entre outras”, comentou o especialista.

Os indicativos de sequelas diversas causadas pelo novo coronavírus em pacientes com quadros graves e leves evidenciam uma necessidade urgente no sistema de saúde brasileiro: estruturar os serviços de reabilitação no País.

Algumas unidades, como o Hospital das Clínicas, em São Paulo, têm se adaptado para atender a essa demanda, mas ainda não há uma estratégia nacional que envolva definições de como deve ser o atendimento e quais os equipamentos e profissionais da saúde necessários nessa etapa, como fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos e nutricionistas.

Há cerca de dois meses, especialistas elaboraram uma sugestão de protocolo para o Ministério da Saúde, a pedido da própria pasta, mas essas orientações ainda não foram formalizadas. O documento não teria força de lei, mas serviria para guiar gestores locais.

“Inicialmente era uma capacitação de profissionais e acabou se tornando um documento com a chancela do ministério com a finalidade de orientação de melhores práticas”, afirmou o pneumologista Gustavo Prado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, envolvido na iniciativa.

O Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe-Uerj), em Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro, também criou uma ala na enfermaria de cuidados especiais para receber pessoas que tiveram covid-19. O objetivo é atender paciente que ficou internado no centro de terapia intensiva (CTI) e que, após o tratamento, mesmo sem a presença do novo coronavírus, não tem ainda condições clínicas para retornar com segurança para casa.

O médico intensivista do Hupe-Uerj Marcelo Canetti lembra que, durante o período de pico, o hospital chegou a ter mais de 160 doentes internados, praticamente a metade deles em terapia intensiva. Após a alta do CTI, os pacientes ainda continuavam o tratamento no hospital até ficarem negativados para o vírus.

A ideia de uma enfermaria no hospital para recuperação pós-covid surgiu em maio quando a primeira foi aberta com 13 leitos. Hoje, 18 pacientes estão sendo reabilitados nesse atendimento. Segundo Canetti, as enfermarias para tratamento pós-covid já atenderam cerca de 60 pacientes.

“Muitos negativavam a covid-19, mas continuavam precisando de cuidados hospitalares ou pela doença de base, que não estava compensada, como um diabético ou um paciente com problema cardíaco crônico, ou pelas sequelas da doença. Com períodos de internação prolongado no CTI, os pacientes saíam com fraqueza muscular intensa, dificuldade de se alimentar sozinho. Como ficavam entubados muito tempo, tinham uma atrofia muscular severa. Saíam do CTI, mas não podiam ir para casa”, disse o médico.

No local, eles recebem cuidados de uma equipe multidisciplinar com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, assistentes sociais e suporte psicológico das sequelas do isolamento e do período de internação.

De acordo com painel do Ministério da Saúde, os recuperados somavam 1.844.051 até o último dia 31. Para a OMS (Organização Mundial da Saúde), são considerados recuperados aqueles que tiveram dois resultados negativos para Sars-CoV-2 com pelo menos um dia de intervalo. No Brasil, o grupo inclui pessoas hospitalizadas que receberam alta e também os casos leves em que não houve internação ou óbito nos últimos 14 dias.

O contingente foi citado pelo secretário de vigilância em saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Correia de Medeiros, como motivo para, segundo ele, mostrar que o Brasil é “um grande exemplo de combate [à pandemia] no mundo”. O total de óbitos por covid-19 no País se aproxima de 100 mil.

Embora o discurso de integrantes do governo de Jair Bolsonaro e do próprio presidente seja de focar nos recuperados, na prática, o Ministério da Saúde não tem uma resposta específica para tratar pacientes que passaram pela fase mais aguda da covid-19 mas não conseguiram voltar às atividades normais.

Em nota, a pasta informou que “pacientes que apresentarem sequelas pós-covid-19 vão ser tratados da mesma forma que outros pacientes que precisam de reabilitação motora, sendo encaminhados para centros especializados já existentes em todo o território nacional”.

Quem precisa de reabilitação pós-covid?

Ainda não se sabe quantos brasileiros precisariam de um atendimento especializado, mas profissionais que trabalham na área estimam um contingente significativo, considerando a disseminação do vírus no País. 

Estudos feitos até agora tanto no Brasil quanto em outros países mostram uma incidência alta de dor de cabeça, fadiga e alteração do olfato, do paladar e da memória.

Um relatório com 217 pacientes hospitalizados em Wuhan, na China, origem da pandemia, encontrou manifestações neurológicas em quase metade dos pacientes com infecção grave (40 de 88), incluindo complicações cerebrovasculares, como AVCs (acidente vascular cerebral), encefalopatias e lesões musculares. O estudo foi publicado em abril no JAMA (Journal of the American Medical Association).

Fenômeno semelhante foi observado na Espanha, um dos países europeus mais atingidos pela covid-19. De 841 pacientes internados em dois hospitais na cidade de Albacete, 57,4% desenvolveram um ou vários sintomas neurológicos, de acordo com pesquisa publicada na revista especializada Neurology.

O levantamento feito pela Unicamp com 504 pacientes mostra que “aproximadamente 70% persistem com queixas mesmo após terem se ‘curado’ da infecção por covid”, de acordo com a neurologista Clarissa Lin Yasuda, responsável pelo estudo. Desse grupo, 90% teve quadro leve e não chegou a ser internado.

Presidente do Conselho Diretor do Instituto de Medicina Física e Reabilitação Lucy Montoro, a fisiatra Linamara Battistella, que tem trabalhado diretamente com pacientes na reabilitação pós-covid, estima que entre 50% e 60% tenham sintomas como “confusão mental, perda da concentração, da memória, e depressão”.

De acordo com ela, esses tipos de distúrbios têm sido transitórios até o momento, apesar de frequentes. O centro de saúde que ela coorderna é referência na colaboração com a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde), braço da OMS nas Américas, no campo da reabilitação.

Um quadro mais grave do pós-covid é aquele que desenvolve um tipo de fadiga que impede a pessoa de realizar as tarefas que antes eram parte da rotina. Ainda há dúvidas sobre o que causa esse quadro, semelhante ao da chamada síndrome da fadiga crônica, mas esse é o perfil de paciente que tem sido atendido pelos serviços de reabilitação.

Uma síndrome pós-covid?

Ainda não se sabe o percentual de infectados pelo SARS-CoV-2 com essa fadiga incapacitante nem fatores que tornam alguém mais ou menos suscetível a esse quadro. Alguns estudos investigam se há relação com danos no sistema nervoso e com a resposta imunológica.

Após as epidemias de síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), em 2003, e da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012, – ambas causadas pelo SARS-Cov-1 –  foram relatadas várias sequelas neuropsiquiátricas, incluindo narcolepsia, convulsões, encefalite, encefalopatia e síndrome de Guillain-Barré, por exemplo. 

Essa última consiste em um distúrbio autoimune após uma infecção, e ocorreu com mais intensidade no Brasil após os surto de zika, iniciado em 2015. A doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti também levou a um segundo problema de saúde: a síndrome congênita do zika, que atingiu fetos de mulheres infectadas na gravidez. 

Nos anos seguintes a essa epidemia, falhas tanto no diagnóstico quanto na oferta da estimulação precoce deixaram famílias sem assistência. Reportagem do HuffPost Brasil no sertão alagoano mostrou dificuldades de transporte e de oferta dos serviços sanitários. De acordo com boletim mais recente do Ministério da Saúde, com dados até 16 de maio, foram confirmados 3.534 casos de síndrome congênita do zika.

Parte de um grupo técnico da OMS que discute a reabilitação de pacientes de covid-19, a fisiatra Linamara Battistella alerta que irão faltar recursos de atendimento para essa população. “O mundo não estava preparado para esse número grande de pessoas que vai chegar no serviço de saúde. A zika era localizada e foi pequena para dimensão do Brasil. É muito diferente do que estamos vendo com a covid. Tenho medo de que a zika tenha sido um ensaio e a peça verdadeira esteja acontecendo agora”, afirma.

Ao comparar as duas epidemias, a médica também aponta para uma dificuldade maior do acompanhamento após a alta agora, uma vez que na síndrome congênita da zika havia contato com a gestante durante o pré-natal.

“Agora os pacientes saem do hospital e vão para casa. Você perde o indivíduo de vista. Você salva uma vida, mas não devolve aquela vida para a sociedade. Isso é um problema. É custo para o País. A pessoa que recebeu alta do hospital pode não estar 100%. Esse é o público que está nos trazendo preocupação”, afirma.

De acordo com a fisiatria, está em discussão um protocolo mundial para orientar a reabilitação. A OPAS já publicou diretrizes que mostram a importância da intervenção precoce. O documento aponta para a necessidade de treinamento especializado para profissionais de saúde para lidar com quadros de função pulmonar comprometida; descondicionamento físico e fraqueza muscular; deficiências cognitivas; deglutição e comunicação prejudicadas; além de transtornos da saúde mental e apoio psicossocial.

O grupo coordenado pela OMS também está desenvolvendo um estudo para acompanhar pacientes de médio e longo prazo “e nos anteciparmos com protocolos de acompanhamento para todas sequelas que eventualmente apareçam”, de acordo com Battistella. “A tentativa é de não apenas monitorar pacientes para saber o que eles têm, mas padronizar as intervenções”, completa a fisiatra.

O foco dos protocolos é na funcionalidade do paciente. “Essa doença não escolhe idade. As pessoas jovens sobrevivem, e a gente não pode permitir que elas sobrevivam com restrições de funcionalidade. Você pode ter uma lesão no coração e isso não se limitar em nada ou se ela não for adequadamente tratada, te deixar com uma sequela que te dificulta subir escada ou levantar peso”, afirma a médica.

Como é a reabilitação pós-covid?

De acordo com Eduardo de Melo Carvalho Rocha, vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação (ABMFR), pacientes desse grupo têm tido bons resultados após dois ou três meses de acompanhamento. “É fundamental um trabalho de exercício, fisioterapia, terapia ocupacional e também o suporte nutricional e psicológico porque tem complicações psicológicas importantes dessa internação prolongada”, afirma. 

O processo de reabilitação é individualizado, mas o especialista aponta para 3 grandes frentes: controle da dor, das necessidades psíquicas – com psicólogo e medicamentos, se necessário – e a fase motora.

“Dentro da fisioterapia, a gente pode dividir no ganho motor de movimento, na parte neurológica de coordenação e controle do movimento e na parte respiratória. A volta da capacidade respiratória é importante. Existem exercícios específicos de fisioterapia, mas são amplamente associados ao quanto de músculo você tem. Quanto mais músculo você tem, vai ajudar seu corpo ao respirar melhor. Quanto mais bem nutrido você estiver, melhor você vai respirar também. É um trabalho conjunto”, afirma Rocha.

Há danos provocados no corpo pelo SARS-CoV-2, mas também os causados pela internação nos casos graves, o que os médicos chamam de “síndrome-pós-UTI (unidade de tratamento intensivo)”. As queixas incluem dificuldade para engolir, feridas causadas pela posição em que o paciente fica no leito e danos motores devido à perda de massa muscular e à compressão dos nervos.

De acordo com Rocha, há pacientes que pesavam 60 quilos e perderam 15 ou 20 quilos de massa muscular na internação. “Eles não têm como se sustentar em pé, como fazer atividades pela perda brutal de massa muscular”, afirma o vice-presidente da ABMFR.

Para quem a recuperação é mais difícil?

A recuperação tem sido mais difícil para pacientes com condições médicas prévias, de acordo com relatos dos médicos. Também há estudos que apontam para um agravamento de enfermidades anteriores à infecção pelo novo coronavírus, como Alzheimer e doença de Parkinson.

Fatores sociais também têm pesado nesse cenário. “Infelizmente observamos atendendo várias classes sociais que aqueles pacientes que já não tinham alimentação adequada infelizmente sofrem mais porque já partem de um limiar mais baixo que outros pacientes. Eles têm uma perda muito maior comparativamente a outros que eram bem alimentados, que tinham uma condição social e física prévia melhor”, afirma Eduardo Rocha, da ABMFR. 

Sem coordenadas do Ministério da Saúde, especialistas em reabilitação têm avançado nos debates e práticas para tratar sequelas da covid-19.

O Hospital das Clínicas liderou esse processo. “A gente criou ambientes absolutamente isentos, com grande nível de segurança, com ginásios para o atendimento separado, equipes multidisciplinar dedicadas ao paciente para evitar exatamente que o paciente ficasse exposto a outros riscos.”, conta Linamara Battistella. A equipe também faz atendimento remoto de pacientes que estão contaminados, mas com quadros leves, sem internação.

Além da estrutura física e da capacitação da equipe, a médica chama atenção para desafios novos da pandemia. “Há uma sensação de medo que às vezes é até difícil caracterizar. Você quer que o paciente fique em pé e ele não consegue e às vezes não é porque não têm músculo. É porque tem muito medo”, conta.

O medo, junto com ansiedade, também interfere na recuperação da memória, de acordo com o observado pela fisiatra. “Tem muito a ver com o grau de ansiedade que o paciente desenvolve, que tem a ver com o medo que você passou, com a sua história anterior. Ansiedade é uma coisa que às vezes a gente tem e está sob controle, e às vezes, quando você enfrenta uma situação nova como essa e que está muito falada e tem um discurso muito errático em que cada um diz uma coisa, você entra num processo de ansiedade que não consegue controlar. Esses distúrbios a gente precisa olhar com atenção”, afirma.

A médica ressalta que a covid-19 tem assustado muita gente e que, de fato, é preciso tomar cuidado para evitar a contaminação, mas pondera que “a sobrevivência e a recuperação são boas”. “Tem um tratamento, uma abordagem e acaba resolvendo. A grande maioria dos casos se resolve. Só que precisa de uma recuperação intensiva. No nosso hospital, a reabilitação começa na UTI. A gente têm tido um acompanhamento muito completo do paciente e está vendo que valeu a pena”, completa.

Quais as sequelas dos recuperados da covid? Das falhas de memória à fadiga incapacitante

Após cerca de 7 meses desde a primeira infecção pelo novo coronavírus e com mais de 17 milhões de casos no mundo, as consequências a médio prazo do vírus no corpo variam de fadiga, perda do olfato e do paladar até falhas na memória, ansiedade, depressão e alteração no sono. A reabilitação tem resolvido boa parte de problemas ligados à recuperação de movimentos, de acordo com profissionais do setor. Por outro lado, as dúvidas sobre efeitos no sistema nervoso têm gerado inquietação em pacientes e em pesquisadores.

“É dramático, eu comprei um chip [de celular] para isso e as pessoas ficam mandando mensagem, ligam desesperadas porque estão cheias de problemas. Elas querem um tratamento, uma resposta, e ninguém tem. O País vai ter de se preparar para fazer reabilitação das pessoas”, afirma a neurologista Clarissa Lin Yasuda.

“Os relatos dos voluntários que nos procuraram assustam porque aproximadamente 70% persistem com queixas mesmo após terem se ‘curado’ da infecção por covid. Os pacientes não conseguem voltar a fazer o que faziam previamente”, revela.

Em outros países, pesquisadores têm investigado a relação entre o SARS-CoV-2 e sintomas neurológicos, mas ainda é cedo para determinar se as sequelas neuropsiquiátricas são permanentes ou temporárias.

Também há indicativos de que pacientes que passaram pela fase mais grave da doença — que inclui a tempestade de citocinas, uma resposta imunológica aguda — podem ter um declínio cognitivo, especialmente aqueles com condições prévias, como Alzheimer e doença de Parkinson.

“As evidências sugerem fortemente que os pacientes que sobrevivem à covid-19 correm alto risco de desenvolvimento subsequente de doença neurológica e, em particular, da doença de Alzheimer. Neurologistas, psiquiatras e cuidadores devem ser alertados para um possível aumento nesses casos em sobreviventes da covid-19”, alerta estudo publicado em junho por pesquisadores da Universidade de Bonn, na Alemanha, em conjunto com cientistas da University of Massachusetts Medical School e de da Michigan State University, ambas nos Estados Unidos.

Clarissa Lin Yasuda pretende acompanhar os 504 pacientes por 3 anos para monitorar os impactos do SARS-CoV-2. A primeira etapa da pesquisa no hospital envolve uma avaliação neurocognitiva, em que é testada principalmente a memória e a coordenação motora fina do paciente. Também será feita ressonância magnética e coleta de amostra do sangue para estudos imunológicos. A possível relação entre a resposta imunológica e as sequelas no sistema nervoso é um dos principais aspectos estudados em diversos países.

“A ressonância poderá evidenciar alterações no bulbo olfatório que podem estar associadas às alterações de olfato; poderemos identificar áreas isquêmicas e outros tipos de alterações mais sutis”, explica a pesquisadora. De acordo com neurologista, a equipe também irá analisar imagens de alta resolução para estudar em detalhes a substância branca e substância cinzenta do cérebro (através de imagens estruturais), bem como a conectividade cerebral (através de imagens funcionais).

A fadiga pós-covid

Uma queixa recorrente entre pacientes que passam pela fase mais grave da doença é uma fadiga que, em alguns casos, impede a pessoa de realizar as tarefas que antes eram parte da rotina. “Existem alguns estudos laboratoriais de alterações de anticorpos e de ressonância, mas, na prática, não tem nenhum marcador laboratorial para esses sintomas. O que a gente vê em alguns pacientes é uma angústia muito grande porque não consegue comprovar o que estão sentido. É algo que, do ponto de vista legal trabalhista, vai ter suas implicações”, alerta o neurologista Gabriel de Freitas, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O médico é parte de um grupo de pesquisa liderado pelo IDOR para investigar sequelas neurológicas da covid-19 em pacientes com quadro graves. Ao menos 70 pacientes devem ser acompanhados por um ano. De acordo com Freitas, deve ser feita uma avaliação um mês após o início dos sintomas e outra 3 meses depois, para monitorar esse quadro semelhante ao da chamada síndrome da fadiga crônica.

De acordo com o neurologista, ainda não se sabe o percentual de pessoas com esse fadiga incapacitante nem fatores que tornam alguém mais ou menos suscetível a desenvolvê-la. Até o momento não parece haver uma correlação com a gravidade da doença ou com a idade, segundo o médico.

Se a falta de respostas sobre sequelas da doença preocupa, por outro lado Freitas afirma que geralmente pacientes com fadiga que têm acompanhamento multidisciplinar de reabilitação mostram boa evolução e não ficam com danos definitivos a longo prazo.

Epidemias e doenças neurológicas

Após as epidemias de síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), em 2003, e da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012, foram relatadas várias sequelas neuropsiquiátricas, incluindo narcolepsia, convulsões, encefalite, encefalopatia e síndrome de Guillain-Barré, por exemplo. Essa última consiste em um distúrbio autoimune após uma infecção e ocorreu com mais intensidade no Brasil após os surto de zika, iniciado em 2015. 

Tanto a SARS quanto a Mers são causadas pelo SARS-CoV-1, o primeiro coronavírus. Por ser um patógeno parecido com o SARS-CoV-2, são esperadas consequências semelhantes à pandemia atual. “A gente é um pouco míope. Um pouco depois do SARS-CoV-1 tem isso documentado na literatura. Foi um pouco de ingenuidade nossa não ver o que os outros vírus geraram e começar a investigar isso. Talvez tenha sido um pouco de ingenuidade, um pouco de correria de pessoas que estavam correndo tanto para salvar vidas, mas é provável que [isso] seja um problema nos próximos meses”, afirma Freitas.

Ainda não está claro por que algumas pessoas diagnosticada com covid-19 têm manifestações neurológicas e outras não. Pode ser que dependa do próprio organismo – como respostas imunes diferentes – ou que tenham sido infectadas por diferentes tipos do SARS-CoV-2.

Também não está comprovada a relação da fadiga com danos neurológicos. “Somente com a avaliação de um grande número de participantes poderemos analisar as ressonâncias em busca de algum biomarcador específico associado à fadiga. Neste momento, ainda não temos respostas. Pode ser que a fadiga tenha a ver com a fraqueza respiratória. O quanto ela é emocional, respiratória ou muscular, a gente não sabe”, acrescenta a neurologista Clarissa Lin Yasuda, da Unicamp.

Confusão mental e perda de olfato

De acordo com a fisiatra Linamara Battistella, presidente do Conselho Diretor do Instituto de Medicina Física e Reabilitação Lucy Montoro, a fraqueza muscular após a internação por covid-19 muitas vezes está relacionadas a “alterações afetivas e emocionais, em que a pessoa passa a ter distúrbios de sono, de ansiedade”. “Elas têm tanta importância quanto as questões que aparecem como a neuropatia periférica, que aparece com muita dor”, afirma.

A professora da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) também chama atenção para um quadro de perda da autonomia. “A pessoa tem distúrbios de consciência, amnésias passageiras. Eu assumo um compromisso com você e no final do dia eu tenho dúvidas se assumi esse compromisso”, afirma. De acordo com ela, esse tipo de distúrbios tem sido transitório entre os pacientes infectados por coronavírus e acompanhados na reabilitação.

Essa alterações cognitivas têm sido chamadas de brain fog em alguns estudos sobre a covid-19 em outros países — o equivalente a uma “confusão mental”.

Ainda não há conclusões científicas sobre as consequências da pandemia ligadas a transtornos mentais. Estudos apontam para possível ocorrência de transtorno do estresse pós-traumático em pessoas contaminadas, assim como agravamento de quadros psiquiátricos de pacientes com condições prévias.

Pesquisadores também entendem que podem surgir danos à saúde mental em quem não foi infectado, associados ao isolamento social e aos impactos econômicos provocados pela crise mundial.

Outras sequelas da covid-19 ainda em estudo são agravamento de quadros de dor crônica e impactos a longo prazo de sintomas da fase aguda, como perda de olfato e disfunções renais.

Sequelas da covid ou da internação?

Há uma relação entre a fadiga e as sequelas no corpo causadas pela própria hospitalização, em casos graves. “Nos pacientes com internação prolongada pelo quadro grave, há uma perda de massa muscular muito intensa. Tem pacientes que pesavam 60 quilos e perderam 15, 20 quilos de massa muscular na internação. Eles não têm como se sustentar em pé, como fazer atividades pela perda brutal de massa muscular”, afirma o fisiatra Eduardo de Melo Carvalho Rocha, vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação (ABMFR). 

De acordo com o pneumologista Gustavo Prado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, a miocardite, uma alteração no músculo do coração, também pode contribuir para essa fraqueza. “Saiu um estudo recentemente mostrando que, mesmo em casos leves, metade dos pacientes apresenta alteração na ressonância magnética do coração depois de um tempo após a alta”, conta. “É uma doença que acomete provavelmente todos os sistemas orgânicos, seja pela ação direta do vírus, seja por essa resposta inflamatória muito exagerada do organismo. A tradução disso tardiamente é a manifestação de vários sintomas: fraqueza muscular, mudança de humor, falta de ar, tudo isso por um período às vezes bastante longo”.

Há danos provocados no corpo pelo SARS-CoV-2, mas também os causados pela internação nos casos graves, o que os médicos chamam de “síndrome-pós UTI (unidade de tratamento intensivo)”. As queixas incluem dificuldade para engolir, feridas causadas pela posição em que o paciente fica no leito e danos motores devido à perda de massa muscular e à compressão dos nervos.

“As internações têm sido muito prolongadas e pacientes com internações prolongadas, especialmente em UTI, permanecem um período longo em ventilação mecânica. Portanto, [ficam] com sedação, que muitas vezes pode ser profunda, às vezes com drogas que bloqueiam a condução muscular e o uso prolongado dessa estratégia e a imobilidade aumentam os riscos de desenvolvimento de neuropatias – alterações das funções dos nervos, principalmente os nervos motores, responsáveis pela condução dos impulsos que origina movimentos – mas também disfunções dos músculos, as miopatias”, afirma Gustavo Prado.

Um dano permanente do pós-covid pode ocorrer nos pulmões: a fibrose, um tipo de cicatriz após uma lesão que pode ser provocada tanto pela doença quanto pela própria ventilação mecânica. “Quando o paciente desenvolve fibrose pulmonar, na imensa maioria das vezes, ela não só não é reversível, como pode ser progressiva, independe de cessado o estímulo original, que foi o gatilho dela”, afirma o pneumologista.

O que acontece nesses casos é que esse novo tecido nos pulmões deixa o órgão mais endurecido, “muito difícil de ser expandido, pouco funcional e interfere na troca de gases, que é o papel principal do pulmão”, aponta Prado. Com isso, a pessoa passa ter menos fôlego e pode se cansar facilmente para tarefas como subir uma escada ou carregar peso. Outro sintoma é uma tosse seca difícil de controlar, de acordo com o pneumologista.

Em casos extremos, pacientes em cuidado intensivo também sofreram amputações devido à trombose, que reduz o fluxo sanguíneo para partes do corpo, ainda que sejam usados anticoagulantes para evitar chegar a esse ponto. “Nós não estávamos acostumados. A gente não tem um [quadro] similar com outras doenças prévias. Muitas dessas alterações estamos descobrindo nesse momento”, aponta Eduardo Rocha.


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