26/04/2024 - Edição 540

Poder

Militares pedem mais dinheiro para defesa em novo plano que ameaça paz na América do Sul

Publicado em 31/07/2020 12:00 -

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“A guerra é importante demais para ser deixada nas mãos dos generais”.

A famosa frase do primeiro-ministro Georges Clemenceau, que liderou a França nos anos finais da 1ª Guerra Mundial, segue tão importante na época quanto hoje, mais de um século depois. Adaptando-a para o atual cenário político brasileiro, podemos dizer que a defesa nacional é importante demais para ser deixada na mão dos militares. As novas minutas da Política Nacional de Defesa, a PND, a Estratégia Nacional de Defesa, a END, e do Livro Branco de Defesa Nacional, LBDN, apresentadas na quarta-feira, 22 de julho, pelo Ministério da Defesa ao Congresso Nacional, são um bom exemplo do porquê disso.

As novas versões dos documentos de defesa trazem rupturas significativas na forma como o Brasil se apresenta a seus vizinhos sul-americanos, ameaçando a emergência de uma nova corrida armamentista e uma deterioração do dilema da segurança na região. Pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), o Brasil ameaça formalmente que poderá entrar em guerra contra outro país vizinho para defender seus interesses. Mesmo não mencionando diretamente a Venezuela, a PND afirma que o Brasil “poderá ver-se motivado a contribuir para a solução de eventuais controvérsias ou mesmo para defender seus interesses” – um tom ameaçador inédito ao tratar seus vizinhos em toda a história republicana.

Podemos atribuir essa mudança nos novos textos à militarização da defesa nacional – ainda que esta seja uma característica histórica dos temas ligados à defesa nacional no Brasil. Ou podemos reconhecer que o desinteresse da sociedade, refletido no Congresso Nacional, apresenta-se em anuências automáticas desses documentos, dando ampla liberdade aos militares para sua redação.

Antes mesmo da entrega formal dos documentos ao Congresso Nacional, já havia protestos contra o conteúdo da revisão da PND. O Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, Cebrapaz, publicou uma nota denunciando que a mudança de tom em como o Brasil vê a sua própria região é problemática e perigosa para o país.

Nem mesmo nos piores momentos de crises regionais o Brasil ameaçou militarmente um vizinho como o fez nesta PND. A visão militarista ignora todos os esforços de resolução pacífica de controvérsia conduzidos, criados e sustentados pelo Brasil historicamente. Ignora, ironicamente, os mais bem-sucedidos esforços de cooperação regional em defesa e solução de controvérsias que a América do Sul já viu, através da Unasul, instituição que teve altíssimo engajamento dos militares brasileiros, em especial no Conselho Sul-americano de Defesa, o CDS. Ignora, por fim, a Constituição Brasileira, nos capítulos que definem os parâmetros de sua Política Externa, que é expressa em declarar que o Brasil não será uma ameaça imperialista a seus vizinhos, que buscará resolver pacificamente suas controvérsias e, em especial, que respeitará a soberania e a autodeterminação dos povos.

Para entender como chegamos até aqui, temos que voltar ao final da década de 1990, ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, mais precisamente 1996, quando a primeira versão da Política de Defesa Nacional foi lançada. À época, foi um marco histórico, pois buscava organizar, pela primeira vez sob o regime democrático, as diretrizes para a reestruturação e atuação das Forças Armadas brasileiras. Três anos depois, um dos passos mais importantes para o início de fato de um controle civil dos militares se deu com a criação do Ministério da Defesa, dando fim aos ministérios da Aeronáutica, do Exército, da Marinha e ao Estado-maior Conjunto das Forças Armadas. Foi simbólico que, 14 anos após o fim da ditadura, um civil, o político Élcio Álvares, ficasse hierarquicamente à frente dos comandantes militares.

Para dizer que os militares aceitam a subordinação ao poder civil é preciso muito mais do que um ministro e um Comandante em Chefe (cargo, no Brasil, que cabe ao presidente da República) civis. Mas este é um pré-requisito importante, e que foi respeitado até 2018, quando Michel Temer nomeou o general Joaquim Silva e Luna para o Ministério da Defesa, rompendo com um simbolismo importante do pilar democrático das relações civis-militares. Desde então, o ministério segue em mãos militares, com a nomeação do também general Fernando Azevedo e Silva por Jair Bolsonaro.

Voltando ao histórico dos documentos de defesa, a primeira PDN foi a que ficou mais tempo em vigor, até 2005, já sob o governo Lula, quando teve a sua primeira revisão. Nesta, vemos que o teor, em larga medida, se manteve semelhante, tendo a atualização explicado melhor alguns conceitos, como o que se entende por defesa nacional e por segurança nacional. Como notou à época o ex-embaixador Rubens Barbosa, via-se uma grande influência do Itamaraty, então conduzido pelo ministro Celso Amorim, nesta primeira revisão da PDN.

Outro marco importante na estruturação dos documentos de defesa brasileiro se deu em 2008, quando, sob a condução do então ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, o professor Mangabeira Unger, foi criada a primeira versão da Estratégia Nacional de Defesa, a END. Nas palavras de seu principal articulador, a END tinha, como proposta, “Defesa para valer, liderança civil”. A ideia era que, consolidada em leis, a END a direcionasse as Forças Armadas em um processo de capacitação, reaparelhamento e democratização. Há que se notar que o processo de redação da END foi o primeiro que contou com a participação e condução civis, com especialistas e ministros sendo ouvidos e participando da elaboração do texto.

O ápice da consolidação democrática dos documentos de defesa brasileiros se deu em 2012, sob a condução novamente do ministro Celso Amorim, agora titular da pasta de Defesa, quando foi lançada a primeira versão do Livro Branco de Defesa Nacional, além da primeira revisão da END e de nova revisão da Política Nacional de Defesa – que, pela primeira vez e, mais uma vez, com objetivo simbólico da subordinação ao poder civil, grafou-se com o “Nacional” antes de “Defesa”, tornando-se agora a PND. Nessas revisões, buscou-se um diálogo maior entre a PND e a END, a primeira ficando a cargo de apresentar a visão política do país para sua Defesa e a segunda mostrando o que deveria ser feito para que os objetivos políticos fossem alcançados. O LBDN, mais abrangente de todos, busca apresentar às sociedades brasileira e internacional como o Brasil busca garantir sua defesa, o que tem à disposição e o que tem feito e os princípios para assegurá-la.

A redação do LDBN de 2012 atraiu a atenção da sociedade brasileira como jamais houvera – e infelizmente jamais repetida – para qualquer documento ou legislação ligada à defesa nacional no Brasil. Houve diversos seminários, em todas as regiões do país, que contaram com a participação de militares, acadêmicos, jornalistas, ONGs e representantes da indústria de defesa nacional. O clima de otimismo e de cooperação entre civis e militares era notório nesses encontros – e digo isto por ter participado de dois deles, e se refletiu em cooperações institucionais entre civis e militares nos anos seguintes.

Também significativo foi que, a partir de 2012, os três documentos passaram a ter, sob orientação de lei, uma renovação quadrienal, como forma de mantê-los sempre atualizados ao governo, uma medida para assegurar o seu controle civil, e ao cenário político internacional. Todavia, o turbilhão da crise política que assolou o país a partir de 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, atingiu também as bases colaborativas dos documentos de defesa brasileiros.

As revisões de 2016 caíram relativamente em qualidade. Por vezes, na comparação com as edições anteriores, parecia que a atualização vinha sem ter o documento anterior como base, em especial a END. A falta de transparência das redações dos novos documentos, circunscrita a alguns militares dentro do Ministério da Defesa, foi frequentemente trazida à tona nos encontros regionais e nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa entre 2017 e 2018 – para citar eventos que pude presenciar diretamente –, o que já indicava uma militarização dos debates acerca dos documentos nacionais de defesa.

Logo, a recente explosão da militarização da política brasileira não nasceu no atual governo. E, lamentavelmente, as minutas das revisões de 2020 dos três documentos apresentadas pelo Ministério da Defesa passaram a refletir essa militarização não apenas na forma de redação dos documentos, novamente feita por militares e sem o diálogo com a sociedade civil, como era o intento original, mas também na forma como o Brasil oficialmente passa a ver o seu cenário de defesa.

Se mantida a redação das minutas tal qual apresentadas, abriremos um precedente perigoso para a estabilidade política regional. Por seu tamanho, o Brasil sempre foi visto com desconfiança por seus vizinhos. Foi preciso muita habilidade e comprometimento histórico aos princípios republicanos, estabelecidos pelo chanceler fundamental, o Barão do Rio Branco, assim como uma construção crescente de medidas de controle democrático das Forças Armadas – e tudo isto está sendo, uma vez mais, desconstruído irresponsavelmente pelos militares, sob a tutela de Jair Bolsonaro.

Logo, é mais importante do que nunca que a sociedade brasileira, em especial seus representantes eleitos, o Congresso Nacional, discuta de forma transparente, inclusiva e orientada constitucionalmente o conteúdo dos três documentos de defesa nacional. Se não forem revistas as redações da PND, END e do LBDN, corremos o risco de alimentar desconfianças históricas regionais contra o Brasil e de precipitar uma corrida armamentista na região – corrida esta que, com seus parcos 1,4% do PIB em investimentos em defesa, nós talvez não consigamos sustentar.

Não à toa, a entrega dos documentos ao Congresso pelo ministro da Defesa Azevedo e Silva foi acompanhada de um pedido de aumento dos investimentos em defesa para 2% do PIB. O motivo parece claro, financiar um reaparelhamento substantivo das Forças Armadas. Não que o aumento em defesa seja sempre um problema – não o foi à época da Unasul, pois contava com o CDS para aumentar a transparência dos gastos e evitar qualquer tentativa de imperialismo brasileiro.

Contudo, um aumento substantivo dos gastos em defesa acompanhado de uma retórica formalmente belicista passa exatamente a mensagem oposta aos demais países da região. Resta saber se a sociedade brasileira e seus representantes vão aceitar calados a transformação do Brasil em ameaça a nossos vizinhos sul-americanos. A conta virá, e não será barata.

Após posse de Bolsonaro, presença de militares no governo mais que dobra

Desde o início do governo Jair Bolsonaro, o número de militares que ocupam cargos civis no governo federal mais do que dobrou, de acordo com um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) realizado a pedido do ministro Bruno Dantas. Segundo o relatório divulgado no último dia 17, a quantidade de militares – tanto da ativa quanto da reserva – passou de 2.765, em 2018, para 6.157, em 2020. 

Nesse mesmo período, o número de militares que ocupam cargos comissionados cresceu de 1.934 para 2.643. Esse grupo inclui os membros da ativa ou da reserva que ocupam cargos na Presidência da República, na Vice-Presidência da República e no Ministério da Defesa. O vice-presidente é o general da reserva Hamilton Mourão (PRTB) e o titular da Defesa é o também general da reserva Fernando Azevedo.

O levantamento também mostra que uma boa parte do crescimento – 1.969 – é referente à contratação temporária, feita por meio de edital em maio deste ano, de inativos para trabalharem no INSS. O objetivo das contratações foi a redução da fila de benefícios à espera de concessão. Até 7 mil homens da reserva seriam chamados para ajudar na vazão da demanda.

O número de militares que acumulam cargos de profissionais da saúde passou de 718, em 2018, para 1.249, em 2020. A pesquisa usou o mês de março como referência e só considerou os militares que recebem remuneração referentes aos cargos civis que ocupam. Procurado, o Planalto não quis comentar o tema.

O levantamento foi repassado a todos os gabinetes do TCU, mas não há processo tratando do tema. Se algum ministro quiser tomar uma providência complementar ao levantamento, deverá fazer uma solicitação adicional. 

Pressão

A presença de militares, especialmente da ativa, tem gerado desconforto entre generais das Forças Armadas. Na visão deles, o distanciamento que a instituição precisa ter da atividade política fica prejudicado pela participação de membros da ativa na gestão Bolsonaro. Diante do quadro, há pressão para que o general Eduardo Pazuello, atualmente no comando do Ministério da Saúde, opte entre ir para a reserva ou sair do cargo de ministro interino.

A mesma pressão foi exercida sobre o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, cuja transferência para a reserva foi publicada no Diário Oficial da União na quinta-feira. Ele é responsável pela articulação política do governo.

O desconforto com Pazuello se agravou diante de uma fala do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes de que o Exército está se associando a um “genocídio”, ao se referir ao tratamento que o governo tem dado à pandemia do coronavírus

A hipérbole incomodou as Forças Armadas. Durante a semana, Mourão havia cobrado uma retratação de Gilmar: "Se ele tiver grandeza moral, tem de se desculpar".  Na terça-feira, 14, Azevedo acionou um artigo da Lei de Segurança Nacional sobre em representação à Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ministro. No dia seguinte, em um gesto para apaziguar os ânimos, Gilmar falou por telefone com o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello. Nesta sexta, no entanto, o vice-presidente afirmou que dava o episódio como encerrado.


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