29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Quem vai se responsabilizar quando o primeiro aluno ou professor morrer?

Publicado em 30/07/2020 12:00 -

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Uma campanha do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Rio de Janeiro (Sinepe-Rio) pela volta às aulas nas escolas particulares é alvo de críticas por parte de educadores. No vídeo, que circula nas redes sociais desde o último dia 26, a organização reitera que as unidades estão prontas para a retomada das aulas e adere ao tom negacionista para minimizar a importância do distanciamento social – estratégia recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e adotada em todo o mundo democrático – e incentivar a volta dos estudantes.

Médico e pesquisador do Instituto de Medicina Social da Uerj, Mario Robeto Dal Poz repudiou o vídeo do Sinepe-Rio. Para o especialista, o conteúdo, que nega a importância do isolamento, é mentiroso e envergonha os educadores: “Eles ignoraram os esforços que todo o mundo está fazendo para conter a pandemia. Esse vídeo é equivalente a fake news, porque ele parte da inverdade, transmite informação falsa. Merece repulsa das comunidades científica e acadêmica”.

Para o presidente do Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (Sinpro-Rio), Oswaldo Teles, o conteúdo do vídeo é grave e coloca os empresários da educação em situação delicada: “Muitos pais reclamaram, além de diretores e donos de escola que não apoiam esse posicionamento”.

Segundo o biofísico e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) Jerson Lima Silva, uma entidade que representa escolas negar a ciência é um fato surpreendente e lamentável: “Claro que a gente sabe de toda a situação econômica, e, quando a gente fala da educação, há problemas que têm que ser enfrentados. Mas pela ciência, e não pela anticiência. Muito menos negando o que já é mais do que sabido. Todos os países que fizeram isolamento estão em uma curva descendente. O sindicato deve pedir desculpas à sociedade”.

Fernando Cássio, pesquisador e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), vê “perversidade” na narrativa. “Além de negacionista, a mensagem de que ‘confinar é subtrair a vida’ é paradoxal. Mostra que, para os mantenedores das escolas e empresários, o fechamento das unidades é indesejado pelo fato de perderem matrículas, seus contratos de prestação de serviço educacional. O que está em jogo agora é justamente o contrário, é a discussão de o quanto a abertura das escolas vai colocar vidas em risco”, critica.

Para Cássio, a justificativa do sindicato é também “simplória” ao considerar apenas a dinâmica das crianças diante o cenário da epidemia no País. “Primeiro que os cuidados com as crianças e adolescentes não estão descartados, por elas serem supostamente ‘assintomáticas’. Depois, e os professores, os demais profissionais da escola, as famílias? Além de propiciar o contato direto, abrir escolas é aumentar deslocamento, levar mais pessoas para dentro do transporte público, isso tudo precisa ser considerado”, reitera.

Na avaliação do pesquisador, predomina o lobby do setor. “É um discurso economicista, feito não só por esse ‘varejo’ dos mantenedores de escolas privadas, mas também por fundações e institutos empresariais, que insistem que o dano econômico ao País por conta do fechamento das escolas é justificativa o suficiente para abertura massiva das unidades escolares. É como aquele ‘O Brasil não pode parar’ do governo Bolsonaro”, avalia.

No país

Um levantamento da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), atualizado no último dia 27, mostra que 11 estados têm proposições de datas para a retomada: Acre, Alagoas, Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande de Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Manaus foi a primeira capital do País a permitir a retomada das aulas presenciais desde o dia 6 de julho. Segundo o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado do Estado do Amazonas (Sinepe-AM), das 200 escolas particulares da cidade, 70% reabriram, mobilizando um total de 87.900 estudantes.

O sindicato reitera que a retomada está alinhada com as diretrizes mundiais e estaduais de saúde. As escolas vêm lançando mão de estratégias variadas para receber os alunos, desde rodízio com diminuição das turmas, até orientações para que não utilizem sapatos, façam recreio em duplas, sigam demarcações de distanciamento e regras de higienização frequentes. As diretrizes variadas constam em um plano estratégico do Sinepe, disponibilizado à reportagem.

O estado do Amazonas, sob a gestão de Wilson Miranda Lima (PSC), sinalizou que deve apresentar nesta terça-feira 28 a data de volta das aulas presenciais na rede pública. Uma coletiva de imprensa está marcada para às 9h30.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), afirmou que a prefeitura trabalha para o aval da reabertura das escolas particulares a partir do dia 3 de agosto para os alunos dos 4º, 5º 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, os mais prejudicados pela pandemia. A retomada facultativa, afirmou, seria um teste para a rede do município, que ainda não tem data para reabertura.

Para Cássio, a decisão de Crivella certamente sofre influência do Sinepe-Rio. No estado, o último decreto do governador Wilson Witzel (PSC) mantém as escolas da rede estadual fechadas até o dia 5 de agosto.

Em São Paulo, a retomada das escolas públicas e privadas não deve mais acontecer no dia 8 de setembro, conforme anunciado anteriormente pelo governador João Doria (PSDB). A condicionante seria que todas as regiões do estado se mantivessem por pelo menos 28 dias na fase 3 (amarela) do Plano São Paulo, possibilidade que foi descartada pelo coordenador executivo do Centro de Contingência do combate ao coronavírus em São Paulo, João Gabbardo, na sexta-feira 24. Ele afirmou, no entanto, que está em estudo a possibilidade das escolas municipais que estão em regiões amarelas há mais tempo puxarem a retomada.

Já no Distrito Federal, a tentativa do governador Ibaneis Rocha (MDB) de liberar a retomada aulas nas escolas particulares a partir da segunda-feira 27 foi barrada pela Justiça por um período de dez dias. A ação movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra a reabertura foi acatada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10) . Os procuradores lembraram que o Distrito Federal está no pico e com ocupação de leitos acima dos 80% e argumentaram que as escolas deveriam ser os últimos estabelecimentos a abrir.

Um levantamento feito pelo consórcio de imprensa e divulgado no último dia 21 mostra que 11 estados tiveram aceleração na variação em número de mortes em 14 dias: Amapá, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e Tocantins.

Entre as famílias também não há unanimidade quando o assunto é retomar as aulas. Dados da pesquisa nacional “As escolas brasileiras no contexto do coronavírus”, feita a pedido da União pelas Escolas Particulares de Pequeno e Médio Porte, e divulgada este mês, revelam que 73,7% dos pais e responsáveis se recusariam a enviar os filhos para as escolas caso elas reabrissem. Para 40%, o retorno deveria acontecer somente em 2021.

Entre os pais e responsáveis que não enviariam os filhos paras as escolas, 51,9% apontaram como principal motivo a indefinição sobre medidas preventivas que devem ser tomadas para preservar a saúde e 21,8% afirmaram que esperariam um pouco para saber como seria o processo.

O estudo ouviu 14.307 responsáveis por estudantes em 407 instituições de todo o país, desde a educação infantil até o ensino médio.

Cássio afirma que não há como garantir nem que as escolas privadas tenham as mesmas condições de lidar com a pandemia em seus ambientes.

“Há colégios de elite que estão recorrendo a parcerias com hospitais como o Albert Einstein [caso do colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo, que contará com a equipe do hospital para a definição de um plano estratégico]. Essa não é a realidade da maioria das escolas de pequeno ou médio porte, com ensino apostilado massificado”, atesta. O desafio, certamente, é ainda maior quando alçado às redes públicas, que atendem mais de 80% dos alunos de ensino fundamental e médio do País, segundo dados da Pnad 2019, do IBGE.

“Estamos falando de 2,2 milhões de professores no País, sem contar os demais profissionais que estão diariamente dentro das escolas. Vamos fazer testagem em massa para que possamos colocar essas pessoas no front? Vamos contratar mais gente? Direcionar mais recursos para as escolas? Grande parte das escolas públicas já não garantiam sabonete e papel higiênico antes da pandemia, o que agora se soma à necessidade de desinfetante, álcool em gel e Equipamentos de Proteção Individual (EPI)”, avalia, referindo-se, sobretudo, a uma realidade mais comum aos alunos pobres e negros que vivem na periferia das grandes cidades.

“Quem vai se responsabilizar quando o primeiro aluno ou professor morrer?”, questiona. “Estamos discutindo uma retomada como se a pandemia tivesse sido superada, e sabemos que esse não é o cenário”, critica o pesquisador, que ainda avalia o cenário do ponto de vista do direito à educação.

“Se estamos falando de um direito que deve ser garantido a todos, o Estado – que é tão responsável pela oferta do ensino público quanto pela regulamentação do ensino privado – não pode aceitar qualquer diferenciação entre estudantes e profissionais da educação de escolas públicas e privadas. O sol deveria ‘brilhar’ para todos. Os professores e estudantes das escolas privadas vão ser expostos à contaminação porque os donos das escolas precisam manter seus negócios? E as escolas públicas? Vão abrir as portas porque uma ínfima parte de escolas de elite se sentem ‘prontas’ para o retorno?”, expõe, ao novamente questionar a narrativa do Sinepe-Rio.

“Muitas famílias trabalhadoras nunca pararam suas atividades e não têm sequer onde deixar os filhos. As pessoas não são contra a abertura das escolas por capricho, ou porque estão vivendo na fartura. As pessoas têm medo.”, problematiza.

Por fim, o educador reconhece que o fechamento inevitável das escolas traz perdas para todos. Um dos exemplos são as diversas dificuldades com o ensino remoto em todo o País.

“Mas não falo só de perdas de ‘aprendizagem’ medidas em testes padronizados. Há uma perda para a educação num sentido muito mais amplo, da socialização, dos afetos, da subjetividade, vai além das competências e habilidades da Base Nacional Comum Curricular, entende? Então veja, o ano letivo já está perdido. Cabe então se perguntar: vale a pena ir para a escola e colocar a minha própria vida e daqueles que eu gosto em risco?”, finaliza.

Fiocruz estabeleceu critérios

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou nesta semana um estudo sobre o panorama da evolução da pandemia de covid-19 no Brasil. O texto tem dados detalhados e traz recomendações para o poder público, especialmente em relação ao retorno dos estudantes para as salas de aula, considerado precoce pela instituição.

O documento reforça nota técnica da instituição, divulgada no último dia 22. Na ocasião, a entidade alertou para o risco que correm 9,3 milhões de brasileiros adultos que convivem com crianças e adolescentes. O retorno presencial dos estudantes tende a provocar 3 mil mortes apenas no Rio de Janeiro, que pretende retomar as atividades em agosto.

Ao abordar o tema, a Fiocruz lembra recomendações de órgãos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Unesco. Para um retorno seguro, o poder público deve levar em conta não apenas a curva epidemiológica de casos e mortos, mas também a taxa de transmissão. De qualquer forma, em todos os cenários, o Brasil não alcança os requisitos básicos.

“A diminuição de casos e mortes pela covid-19 não é o único indicador para retorno das atividades nos países. O retorno das atividades escolares deve estar pensado após o controle no número de casos novos e óbitos, quando todas as demais atividades já estiverem funcionando, em momentos próprios para cada estado e município”, alerta.

Taxa de contágio

De acordo com estudos locais e também de centros internacionais, como a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, a taxa de transmissão no Brasil segue descontrolada. O cenário chegou a apresentar uma tendência de estabilidade no número de mortes, mas nunca reduziu em relação ao crescimento do número de casos.

Contrariando recomendações de cautela vindas de diferentes cientistas, estados e municípios passaram a abrir o comércio de forma precoce. De fato, suspenderam, entre meados de junho e o início de julho, as já fracas medidas de distanciamento social impostas, especialmente no mês de abril. O resultado foi a ampliação do descontrole do contágio.

A taxa de contágio é comumente designada em estudos da área como ‘R’. Esta variável indica a média de potencial de contágio de uma pessoa. Se a taxa ‘R’ estiver em 1, por exemplo, significa que, em média, uma pessoa passa o vírus para outra. A Fiocruz indica que um bom cenário seria ‘R’ em 0,5, apontando para uma redução no valor total de contaminados.

“Quanto maior o valor, maior será a chance de contágio. Valores acima de 1 mostram que a região está com contágio ascendente e abaixo de 1, a curva de contágio está descendente”, afirma a entidade. No Rio de Janeiro, por exemplo, este número está em 1,29. Desde o início da pandemia o Brasil não conseguiu atingir o objetivo proposto pelos cientistas.

Planejamento

A Fiocruz defende que a política de reabertura das escolas deve ser flexível e pensada em etapas, de preferência articulada entre autoridades da Saúde e da Educação. Aqui um grande desafio; o governo do presidente Jair Bolsonaro despreza o combate ao coronavírus. O país está desde o dia 15 de maio sem ministro da saúde, após a demissão de dois profissionais, justamente por eles defenderem a ciência.

“O retorno às aulas tem sido o maior desafio para os países que conseguiram controlar a epidemia e reduzir casos e óbitos, após a oitava semana. Alguns países, mesmo seguindo a orientação da OMS, tiveram que retornar ao fechamento após surgirem novos casos nas escolas, entre alunos, trabalhadores e parentes”, afirma o estudo.

Então, um retorno seguro deve ser planejado em três momentos distintos, defende a Fiocruz. “O primeiro momento contempla toda a preparação para a abertura; o segundo momento contempla o início das atividades com monitoramento por algumas semanas para ajustes finos, junto com toda a comunidade escolar; e o terceiro momento é o acompanhamento, com possibilidades de fechamento de grupos, de turnos ou da escola, a depender do surgimento de algum caso de covid-19”.

Critérios para o retorno

A Fiocruz elencou 11 critérios para o retorno das atividades escolares. Todos os tópicos foram pensados por cientistas em conjunto com a comunidade acadêmica. São eles:

– A transmissão da doença deve estar controlada. O município deve ter disponibilidade de pelo menos 30% de leitos disponíveis. Diminuição constante do número de hospitalizações e internações em UTI de casos confirmados e prováveis pelo menos nas últimas duas semanas. Diminuição do número de mortes entre casos confirmados e prováveis pelo menos nas últimas três semanas. O sistema de saúde deve estar pronto para detectar, testar, isolar e tratar pacientes e rastrear contatos.

– Medidas preventivas devem ser adotadas nas escolas – apresentar um plano detalhado de medidas sanitárias, higienização e garantia de distanciamento entre as pessoas, de 2 metros, no ambiente escolar e salas de aula. Adotar medidas individuais com uso de máscaras para todos os alunos, trabalhadores e profissionais da educação, não sendo indicado para crianças abaixo de 2 anos e observando o aprendizado para o uso nas crianças entre 2 e 10 anos.

– Controle dos transportes públicos e escolares para garantir o distanciamento social.

– Controle do risco de importação de doença, vinda de outros lugares.

– Comunidades escolares devem ser capacitadas, engajadas e empoderadas para se adaptar às novas regras. Os pais, sempre que possível, por meio de suas organizações, trabalhadores da educação e professores devem estar participando no planejamento do retorno.

– Atenção para estudantes especiais.

– Atenção para o bem-estar psicológico e socioemocional para toda a comunidade. Ao reabrir as escolas, os professores precisam lidar com os riscos à saúde e com o aumento da carga de trabalho para ensinar de maneiras novas e desafiadoras. As autoridades precisam garantir que os professores e toda a equipe recebam apoio psicossocial contínuo para alcançar seu bem-estar socioemocional. Isso será especialmente crítico para os professores encarregados de fornecer o mesmo apoio aos alunos e famílias.

– Inclusão de professores e suas organizações representativas nas discussões sobre o retorno à escola. As organizações devem estar envolvidas para identificar os principais objetivos da educação, reorganizar os currículos e alinhar a avaliação com base no calendário escolar revisado. Devem ainda ser consultados sobre questões relacionadas à reorganização da sala de aula.

– Trabalhadores da educação e professores acima de 60 anos ou com comorbidades devem permanecer no isolamento social.

– Garantir melhores condições de trabalho para toda a comunidade escolar. O retorno às atividades escolares pode revelar lacunas nos recursos humanos e criar horários e rotinas de trabalho difíceis. Os professores e suas organizações representativas devem ser incluídos no diálogo sobre o desenvolvimento de estratégias de recrutamento rápido, respeitando as qualificações profissionais mínimas e protegendo os direitos e as condições de trabalho dos professores.

– Ampliar e manter recursos financeiros. Para garantir a continuidade da aprendizagem, as autoridades educacionais precisarão investir em professores e trabalhadores de apoio à educação, não apenas para manter os salários, mas também para fornecer capacitação essencial e apoio psicossocial. É importante que os governos resistam a práticas que possam prejudicar a atividade didática e a qualidade da educação, como aumentar as horas de ensino ou recrutar professores não capacitados.


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