19/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Sou vítima de violência por fake news, mas discordo da decisão do Supremo

Publicado em 28/07/2020 12:00 -

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Já apanhei na rua por conta de fake news criada contra mim. Já fui alvo de cusparada por quem acreditou em fakes absurdas, como eu ser "matador de pessoas idosas". Ameaçado de morte várias vezes – não aquelas ameaças anônimas pelas redes sociais, mas abordado fisicamente por gente transbordando de raiva que se guiaram por mentiras. Já me atacaram em supermercados, em restaurantes. Já fui alvo de campanha digital cujo mote era que eu precisava morrer. Já houve megaempresa que pagou para bombar fake news contra mim, o que foi revelado após longa investigação e quebras de sigilo pela Justiça. Toda essa situação, de ataques à reputação e à integridade física, ocorre há mais de seis anos. De tão bizarra, levou o Ministério Público Federal, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, em Genebra, entre outras instituições, a monitorarem minha situação de perto.

Fiz esse brevíssimo resumo não para despertar a compaixão de ninguém – tenham compaixão de si mesmos por morarem em um lugar em que o presidente se omitiu em uma pandemia mortal, empurrando um remédio perigoso e que não funciona para forçar todos a voltarem à normalidade. Presidente que é um dos principais propagadores de desinformação e de ódio do país.

Há poucas pessoas que seriam mais interessadas em ver contas de expoentes do naco violento da extrema-direita serem derrubadas, como ocorreu no último dia 24 por ordem do Supremo Tribunal Federal. Alguns dos que foram suspensos, inclusive, já promoveram ódio e espalham mentiras contra mim. E sofri isso na pele. Repetidas vezes.

Mas a decisão do ministro Alexandre de Moraes de pedir o bloqueio da forma com que foi feita abre um precedente ruim. Com consequências de longo prazo.

A questão é que, em uma democracia, não basta garantir a proteção da dignidade dos cidadãos, mas como isso é feito. O Estado não pode combater a estupidez e a criminalidade de forma arbitrária. Ressalvadas as devidas proporções, é a mesma justificativa de alguns governadores que, questionados sobre o aumento da letalidade policial, afirmam que isso reduziu o número geral de homicídios.

Liberdade de expressão não é um direito absoluto, apesar de algumas pessoas que tiraram diploma de Direito pela Universidade do WhatsApp defenderem que sim. Não existe direito absoluto, nem o direito à vida é – tanto que podemos recorrer à legítima defesa para proteger nossa existência. Mas espera-se que punições a isso sejam feitas caso a caso, após a constatação de violação específica à lei. E não com argumentos vagos e de baciada.

"Determino o bloqueio de contas em redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram, dos investigados, necessário para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática", afirma decisão de Moraes. Isso é grave.

Contas de pessoas que comprovadamente existem (não estou falando de perfis falsos e robôs) não deveriam ser removidas com a justificativa de que, assim, irão parar de propagar determinados conteúdos, pois isso é impedir que alguém se manifeste. Se a liberdade de expressão não é absoluta, também não admite censura prévia. As pessoas têm o direito de dizer o que desejam e, caso cometam calúnia, injúria ou difamação contra terceiros ou ameacem a República, serem punidas com o rigor da lei depois.

É provável que as contas se articulavam em rede, com o uso de robôs, e pagas financiadas por empresários com o objetivo de manipular o debate público? Sim. Muitas já foram retiradas em redes à direita e a esquerda pelas próprias plataformas – lembrando que isso é violação dos termos de uso. Mas esse argumento usado por Alexandre de Moraes trata de outra coisa. E alimenta um monstro.

O ministro tinha ilegalidades de sobra para justificar uma ação contundente. Deveria ter tomado sua decisão explicitando tais condutas, em vez de usar motivos extremamente genéricos e que podem ser aplicados a qualquer situação.

Estudo e discuto há muitos anos os sistemas de desinformação política, uma das razões que me levam a ser tão atacado, além de atuar na investigação de interesses poderosos de quem escraviza e desmata. Prefiro uma sociedade contaminada com mentiras, mesmo que eu sofra sistematicamente com isso, do que um Estado com uma brecha para aplicar o silêncio de forma arbitrária.

Não podemos estabelecer uma sociedade em que as pessoas são punidas antes de cometerem os crimes. Parece que o STF tenta, dessa forma, compensar a incompetência do Estado em investigar, com celeridade, e punir quem comete crimes de origem digital. Falo por experiência própria, aguardando, até hoje, respostas em alguns casos.

Não estou defendendo espalhadores de ódio e de mentiras. Eles devem responder à Justiça, da maneira correta, pagando pelo que disseram ou fizeram, com o rigor da lei.

Defendo, por outro lado, que o STF, trincheira democrática contra o comportamento autoritário do presidente, aja de acordo com a Constituição. Não por uma necessidade de seguir princípios, mas porque – mais cedo ou mais tarde – a possibilidade aberta para o esgarçamento de direitos será usada contra qualquer um simplesmente porque emitiu a "opinião errada".

Porque o exemplo do STF será seguido por magistrados de todo o país, alguns dos quais com vontade de usar politicamente suas togas. Se o comportamento reprovável do presidente da República, que não tem pudores em passar por cima da lei, é copiado pelo "guarda da esquina", o mesmo efeito pode se reproduzir no Judiciário.

E, aí, será tarde para arrependimentos.


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