28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Número de novas armas nas mãos de cidadãos comuns cresce 601% em dez anos

Publicado em 23/07/2020 12:00 -

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Medidas que flexibilizaram o acesso às armas de fogo, aceleradas no governo de Jair Bolsonaro, levaram a um aumento de 601%, em dez anos, na quantidade de novos armamentos em poder de cidadãos comuns.

O crescimento dos novos registros ocorreu em 26 unidades da Federação, com queda apenas no Amazonas. O levantamento considerou três categorias elencadas pela PF: cidadãos, servidores (há profissões do setor público que dão direito à requisição) e caçadores de subsistência, moradores de áreas rurais que têm a atividade de caça como meio de sustento. É justamente este ofício que faz com que o Acre tenha, proporcionalmente em relação ao número de habitantes, o maior volume de armas com registro ativo na mão de pessoas físicas. Em seguida, vêm Santa Catarina e Rio Grande do Sul, estado com maior número absoluto de armamentos: 78.929.

Existem hoje 1,1 milhão de armas registradas no sistema da PF, das quais 550 mil são de cidadãos. Há ainda 341 mil com órgãos públicos, como a própria PF e polícias civis — o restante é de responsabilidade de empresas de segurança privada, entre outros. O armamento das Forças Armadas e das polícias militares é cadastrado em outro sistema, sob gestão do Exército. Já com relação ao porte, o direito de andar armado na rua, o aumento de novos registros no país foi de 227% em dez anos: foram 2.945 concessões para defesa pessoal em 2019, frente a 898 em 2009.

Promessa de campanha

A facilitação do acesso foi uma das bandeiras de campanha de Bolsonaro, que, já na Presidência, editou decretos sobre o assunto e promoveu uma mudança que ajudou a impulsionar a compra. A legislação prevê o direito à posse, quando o cidadão pode ter a arma em casa ou no trabalho, nos casos em que há a comprovação da “efetiva necessidade”. Antes do atual governo, cabia aos agentes da PF fazerem esta análise. A partir de meados do ano passado, a autodeclaração do solicitante passou a ser encarada como suficiente para atestar a necessidade — há ainda a obrigação de apresentar certidões negativas de antecedentes criminais, passar por um exame de aptidão psicológica, entre outros pontos. Em relação a 2018, o aumento de novos registros em 2019 foi de 64%.

“A mudança acelera os registros, mas não é só isso. Tem outros ingredientes (que vieram com os decretos), como o aumento da quantidade e de tipos de armas que cada pessoa pode ter e o aumento de acesso à munição. Também não podemos esquecer o discurso pró-armas, de político fazendo arminha com a mão. Cria quase um fetiche”, afirmou a advogada Isabel Figueiredo, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O número de munições vendidas entre janeiro e maio quase dobrou em relação ao mesmo período do ano passado, reflexo de uma medida do governo que aumentou o limite de compra de cartuchos.

Especialistas no tema refutam tese de que mais armas representam mais segurança, já que, na maioria das vezes, os alvos de crimes são pegos de surpresa e não têm tempo de reagir. No entanto, é a busca pela sensação de maior segurança que impulsiona a procura. A médica Gabriela Lebsa, moradora de Porto Alegre, conquistou a posse em 2019.

“Se eu sentir minha casa ou minha família ameaçada, vou saber como nos defender. Espero não usar, mas, se precisar, vou saber”, disse ela, que frequenta um clube de tiro.

Em Formosa (GO), o dono de um posto de gasolina, que prefere não se identificar, requisitou a posse em abril e, no mês seguinte, já estava com a pistola em mãos: “Fui assaltado quatro vezes na mesma semana. O poder público não chega aqui. Eu não tenho condições de contratar segurança privada”.

Pesquisas de opinião mostram que a maioria da população é contra a expansão do acesso. No ano passado, o Datafolha mostrou que 66% dos brasileiros consideravam que a posse de armas deveria ser proibida. Em maio, o mesmo instituto indicou a rejeição de 72% da população à frase em que Bolsonaro afirmou querer “todo mundo armado”.

“Ele não é só o presidente dos adoradores de armas. Quando fala abertamente sobre armar a população, ele dá o tom. Não é só aquela discussão de legítima defesa, que é uma falácia. É muito preocupante, não só o impacto para segurança pública, mas para a democracia”, reforçou a diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso.

Por que Bolsonaro defende mais armas para todos

Deitados em berço esplêndido, por leniência ou cumplicidade, os militares assistem o presidente Jair Bolsonaro armar o país, pois é disso que se trata. Em 2009, 8.692 armas foram registradas por cidadãos comuns.

No ano passado, o número saltou para 61 mil. Este ano, até abril, 33.776. A manter esse ritmo, o ano fechará com mais de 100 mil novas armas registradas. Dos 27 Estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal, só houve queda no Amazonas.

Tantas armas nas mãos de civis para quê? Segundo o candidato Bolsonaro, para que defendam a própria vida. Seria uma obrigação do Estado, como está escrito na Constituição… Mas, e daí? Como o Estado falha e o crime avança, cada um que se vire.

Bolsonaro presidente passou a dizer que o povo deve se armar para defender sua liberdade. Mas liberdade de quê? Liberdade de expressão, que Bolsonaro invoca quando se fala das fake news que rolam nas redes sociais? Ora, existem leis que asseguram isso!

Na célebre reunião ministerial de 22 de abril último, o presidente alegou que o povo precisa armar-se para desobedecer ordens absurdas como a de um soldado que algemou uma mulher porque ela se recusou a respeitar o isolamento social em São Paulo.

Quer dizer: no entendimento de Bolsonaro, a mulher poderia ter reagido ao policial informando-o de que também estava armada. Ou sacando o revólver para que não restasse dúvida de que estava armada. Ou, no extremo, atirando no policial, sei lá.

Bolsonaro seria apenas ignorante ou maluco se pensasse que de fato uma população armada estaria menos sujeita à violência. Ele mesmo, à época de deputado, foi assaltado por dois bandidos no Rio. Entregou tudo que tinha sem reagir, até uma pistola.

Deu sorte. As estatísticas mostram que um civil armado corre mais risco de morrer do que um civil desarmado. O fator surpresa está sempre do lado do bandido. É por isso que um policial armado, por mais bem treinado que seja, nem sempre reage a um assalto.

Então Bolsonaro pensa no quê ao pregar mais armas para todos? A tal pergunta, ele já ofereceu a mesma resposta em pelo menos duas ocasiões – a primeira, no ano passado, ao discursar em um quartel do Rio Grande do Sul; a segunda, na reunião ministerial de abril.

Bolsonaro quer armar os brasileiros para que eles evitem a implantação de uma nova ditadura no país. Ditadura de esquerda, naturalmente. Imagine se Lula viesse com a história de armar o povo para impedir a instauração de uma nova ditadura no país…

Na verdade, o que Bolsonaro gostaria é que os brasileiros que o seguem peguem em armas para defendê-lo em caso de necessidade. Por caso de necessidade, entenda-se: a ameaça de impeachment. Ou a ameaça de derrota nas eleições de 2022.

Por ora, Trump recusa-se a dizer se reconhecerá os resultados das eleições de novembro próximo se for derrotado. Outro dia, Bolsonaro disse ter provas de que houve fraude na eleição de 2018, e que por isso foi obrigado a disputar o segundo turno.

Cadê as provas? O gato comeu!

TCU é cobrado a dar informações sobre auditoria de rastreamento de armas

O Tribunal de Contras da União (TCU) tem realizado, desde 2016, uma auditoria sobre o monitoramento e a fiscalização do Exército sobre produtos controlados, como armas, munições e explosivos.

Sobre o tema, o acórdão do TCU de 2017 traz uma série extensa de recomendações, algumas delas dialogavam com as portarias Comando Logístico do Exército (COLOG) deste ano, mas foram revogadas pelo Exército após o o presidente Jair Bolsonaro ir para as redes sociais criticar. O TCU estava investigando a revogação com seus impactos, mas com a pandemia da covid-19, muitas das ações foram paralisadas.

O líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), entrou com um requerimento de informação, para que o TCU torne público as justificativas apresentadas pelo Exército para ter anulado as portarias e apresente uma data para retomar as investigações.

Após a publicação de Bolsonaro, o Exército revogou a portaria COLOG 46/2020, que cumpria as recomendações do TCU, quanto a monitoramento de armas de fogo e munições. Na opinião de Alessandro Molon, ao revogar as portarias que cumpriam recomendações do TCU, o Exército e o governo Bolsonaro acabam desrespeitando um acórdão do Tribunal de Contas.

O Exército negou todos os pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI) para que entidades da sociedade civil que adentraram com pedidos para terem acesso a esses documentos.

Íntegra do pedido de informação

Histórico

Em 18 de março de 2020, o Comando Logístico do Exército Brasileiro editou a Portaria nº 46/20, que criou o Sistema de Rastreamento de Produtos Controlados (SisNar). O projeto coloca os fabricantes de Produtos Controlados na obrigação de criar um sistema de tecnologia da informação que imprima uma espécie de QR Code nesses produtos, que deverá ser enviado ao Exército Brasileiro para que realize de maneira eficaz o controle de produtos armamentísticos no país.

Também foi editada a Portarias nº 60/20, que estabelece os Dispositivos de Segurança, Identificação e Marcação de Armas de Fogo Fabricadas no País, Exportadas ou Importadas, de acordo com o previsto na Portaria 46/20, bem como a Portaria nº 61/20, que regula a marcação de embalagens e cartuchos de munição no território nacional, possibilitando seu rastreamento, de acordo com o previsto também na Portaria nº 46/20.

MPF critica ato de Bolsonaro

Na época, o Ministério Público Federal, também se colocou contra a revogação das portarias que atendiam a pareceres do TCU. Segundo o MPF, o Comando Logístico havia preenchido "relevante lacuna na regulamentação do rastreamento de produtos controlados pelo Exército (PCE) e na implementação do Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército".

"Essas providências, imprescindíveis para a fiscalização do uso de armas de fogo e para a investigação de ilícitos com o emprego de armas de fogo, eram reclamadas por especialistas em segurança pública e também pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e pela 7ª Câmara de Coordenação e Revisão, órgãos do Ministério Público Federal", afirma o MPF.

O MPF então solicitou que a presidência da República publicize qual foi a base que utilizou para cancelar as portarias do Exército.


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