23/04/2024 - Edição 540

Poder

Diplomacia em cacos

Publicado em 17/07/2020 12:00 -

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A notícia de que o presidente Jair Bolsonaro contraiu a covid-19 deu a volta ao mundo, repercutindo nos principais veículos internacionais, que ressaltaram o histórico de declarações negacionistas do presidente brasileiro sobre a pandemia do coronavírus. Desde o início da crise sanitária, a cobertura sobre o comportamento de Bolsonaro, que defende que há um alarmismo sobre a pandemia e que o coronavírus é uma “gripezinha”, tem ganhado mais espaço no noticiário internacional e acelerado um desgaste da imagem do Brasil no exterior, segundo um estudo da consultoria Curado & associados.

O levantamento, que analisou as publicações de sete veículos internacionais de diferentes linhas editoriais, mostrou que essa percepção negativa do país piorou do primeiro trimestre para o segundo, e mostra uma “crise ética e de falência de gestão” do Governo. O tema da pandemia foi responsável por 68% do total da cobertura negativa no segundo trimestre, seguido pela cobertura da demissão do ex-ministro de Justiça Sergio Moro (10%) e da devastação da Amazônia (8%). O estudo mostra que a cobertura da gestão brasileira da covid-19 pela imprensa internacional cresceu 146% no segundo trimestre.

“A cobertura da crise sanitária agravou a percepção de um Governo irresponsável, de uma gestão sem liderança, cheio de declarações negacionistas sobre a doença. A notícia sobre o presidente ter testado positivo para o coronavírus, por exemplo, teve ampla cobertura pela forma desrespeitosa em que ele fez o anúncio”, diz Olga Curado sócia-fundadora da consultoria. Após informar que tinha contraído a doença durante entrevista coletiva com jornalistas no Palácio da Alvorada, o presidente tirou a máscara que usava. O mandatário brasileiro também seguiu insistindo que a infecção pelo novo vírus só é perigosa para idosos e pessoas com doenças prévias. Entre os veículos pesquisados estão o francês Le Monde, a revista inglesa The Economist, a alemã Der Spiegel e a edição espanhola do El País.

Desgaste por números alarmantes do desmatamento

A consultora ressalta, no entanto, que, desde o ano passado, as críticas sobre as políticas ambientais de Bolsonaro também permeiam bastante o noticiário e que vários veículos já projetam os impactos econômicos das ações do Governo. Em 23 de junho, por exemplo, três jornais, The Guardian, The New York Times e The Washington Post fizeram reportagens sobre alertas de “investidores de trilhões de dólares” ao Brasil pelas políticas de “desmantelamento” da Amazônia. Naquele dia, instituições financeiras responsáveis pela gestão de mais de 4 trilhões de dólares enviaram uma carta ao Governo Bolsonaro avisando sobre o risco de retirada de investimentos no país caso não houvesse uma ações mais efetivas para controlar o desmatamento. Depois, o empresariado nacional aumentou o coro sobre o tema com um manifesto semelhante assinado por 38 companhias, entre elas pesos pesados como o Banco Itaú, o maior da América Latina, Santander, e empresas ligadas ao agronegócio, como o braço brasileiro da Cargill.

Incerteza política

Para além do problema ambiental, a crise política no país e a agenda econômica diante da pandemia também preocupa investidores estrangeiros que, ao fim e ao cabo, paralisam potenciais recursos que poderiam ajudar o Brasil ainda mais neste momento de crise. “Há uma forte incerteza política, saídas de ministros, discussões entre o Executivo, Congresso e governadores. Há até mesmo uma avaliação da condução de uma crise sanitária como essa. São coisas que os investidores ponderam no momento que decidem se vão investir em um país”, diz Martin Castellano, chefe da seção de América Latina do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês).

Na avaliação de Castellano, há ainda muitas dúvidas sobre a capacidade que o presidente terá de retomar as pautas reformistas da equipe econômica. “Por conta da pandemia e motivos domésticos, as reformas ficaram de lado e perderam a prioridade. As restrições para seguir são mais desafiantes que antes”, diz. O próprio pacote de estímulo para combater os efeitos da crise sanitária, um dos mais ambiciosos da região, gera incerteza sobre o tamanho do rombo das contas públicas e o futuro fiscal do país, alerta Castellano. As primeiras consequências no curto prazo já podem ser constatadas com o aumento da saída de capital estrangeiro, principalmente do setor acionário, mas também do investimento estrangeiro direto, segundo Castellano. A projeção da Agência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) é que o o volume de capital estrangeiro para o país só tende a começar uma retomada em 2022, ano eleitoral, e um desafio em dobro para Bolsonaro que sonha com a reeleição. A forte desvalorização do real frente ao dólar nos últimos meses também é um indício dessa desconfiança crescente em relação à economia brasileira.

Do ponto de vista diplomático, o desgaste da imagem do Brasil diante da pandemia, que matou mais de 72.000 pessoas no país, já acarretou na perda de representatividade nos fóruns internacionais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) não convidou Bolsonaro para participar de debate multilateral sobre o enfrentamento à crise sanitária. “Sempre houve uma tradição brasileira, que nem os governos militares conseguiram destruir, de uma diplomacia competente e profissional, de mediação”, explica Javier Vadell, professor de relações internacionais da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Minas Gerais. Mas, agora, segue Vadell, com o alinhamento do Brasil com Donald Trump, as gafes do presidente e membros do Governo com líderes mundiais e toda a atitude negacionista sobre a Amazônia e a pandemia, “a reputação do país está no chão”.

Profissional de carreira que é, pode-se assumir que o embaixador brasileiro em Washington já cultive contatos com os democratas que provavelmente vão assumir junto com Joe Biden. Talvez áreas do governo como Economia, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, além das pastas militares, possam ajudá-lo. O pessoal da área internacional “pura” do atual governo só tem os números da turma ligada a Trump.

Se as eleições fossem hoje Trump estaria fora, e as relações do Brasil com Washington em precária situação. A opção preferencial pela pessoa do Trump feita por Jair Bolsonaro configura-se um desastre de proporções inéditas na história da nossa política externa. Não há exemplo de “alinhamento automático” tão mal conduzido. Mesmo na Guerra Fria o regime militar brasileiro levou nossos negócios em relação aos EUA de forma mais autônoma.

Cristalizaram-se nos últimos dias dois dilemas geopolíticos que se tornaram ainda piores devido ao apego de Planalto a Trump. O primeiro é o fato de que Joe Biden, o candidato democrata que hoje derrotaria Trump apresentou um ambicioso programa de recuperação econômica dos Estados Unidos baseado na “economia verde”, o que inclui a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris (que o Brasil, macaqueando Trump, maltratou).

Procura jogar a ainda maior economia do mundo numa larga avenida de investimento em energias renováveis, novas tecnologias e provavelmente exercendo ainda maior pressão política e comercial sobre o Brasil e suas políticas ambientais. Biden não vai conseguir fazer o relógio voltar para trás, mas promete retomar muito do “multilateralismo” (“globalismo”, como preferem dizer os bolsonaristas) e restituir parte da importância de agências que Trump fez questão de tentar destruir, como as da ONU (em alguns casos, com implícita colaboração brasileira).

A outra questão geopolítica é a participação da gigante de telecomunicações chinesa Huawei na infraestrutura brasileira do 5G, uma decisão que se aproxima para legisladores e governantes brasileiros, e que já causa notável angústia. O ministro Paulo Guedes resumiu há pouco o problema: “o ideal seria deixar a competição progredir, americanos contra chineses, mas surgiu essa questão geopolítica”. Trata-se da cobrança para o Brasil seguir o mesmo caminho que o Reino Unido, que foi banir a gigante chinesa de telecomunicações.

O 5G vai colocar também a cúpula militar brasileira contra a parede. Nossos militares no momento celebram, e com razão, um entendimento com os americanos que promete aplainar o acesso a tecnologias de ponta na área de defesa. Mas os sinais vindos de Washington são inequívocos: parcerias estratégicas no campo de defesa vão depender do comportamento do Brasil em relação ao uso de tecnologia e equipamentos chineses. 

Conter a China é um consenso entre republicanos e democratas nos EUA, com a diferença do mau humor em relação ao Brasil que se pressupõe inicialmente de uma administração democrata – que ainda por cima tem boas chances de conquistar nas urnas em novembro também o Senado. Boa parte do nosso governo acredita que a China precisa comer e não vai retaliar o Brasil, um de seus principais fornecedores de commodities agrícolas. É uma perigosa zona de conforto mental. A China tem condições de nos causar muita dor.

Na figura do general Hamilton Mourão, vice presidente e coordenador das políticas para a Amazônia, o governo brasileiro admitiu no Senado esta semana que a guerra das narrativas está perdida para nós, que o Brasil está na defensiva, e que precisa apresentar resultados ao mundo para “sair das cordas” (Mourão). O que deixa Bolsonaro diante de um problemão formidável de política externa pelo qual só pode culpar a si mesmo. 

Mais publicidade para agenda positiva

Com a imagem do Brasil abalada por sucessivas crises e declarações, o Governo tenta reverter o quadro apostando em mais gastos em publicidade e relações públicas para fomentar uma agenda mais positiva do país. A Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) pediu, no início de junho, a liberação ainda para este ano de 325 milhões de reais para publicidade e relações públicas ― mais que o dobro previsto no orçamento do início do ano ― e justificou o pedido de ampliação com o argumento da pandemia. Segundo a Folha de S. Paulo, em um dos ofícios da Secom à Secretaria-Geral da Presidência, se argumenta que a repercussão negativa das ações do Governo está impactando a imagem do país e é necessário incentivar a “veiculação de pautas positivas” no Brasil e no exterior. Há ainda o pedido de liberação de 60 milhões para gastar em veículos no exterior. “O Brasil tem sido citado de forma recorrente pelos principais jornais e agências de notícias internacionais, e críticas à atuação do governo no enfrentamento à covid-19 têm sido amplamente divulgadas”, diz o secretário-adjunto Samy Liberman em um dos ofícios encaminhados segundo a Folha de S.Paulo. Desde janeiro de 2019, a Secom está sem contrato para os serviços de relações públicas no exterior.

No Brasil, a imagem do presidente também sofre abalos. Segundo a pesquisa do Datafolha, feita no final de junho, a rejeição ao presidente atinge 44% dos brasileiros. A aprovação é de 32%, enquanto os que avaliam Bolsonaro como regular são 23%.


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