25/04/2024 - Edição 540

Poder

Decisão pró-Queiroz demonstra seletividade do Poder Judiciário

Publicado em 10/07/2020 12:00 -

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"A decisão que transferiu Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar é um exemplo dos piores defeitos do Poder Judiciário: seletividade e politização." A avaliação foi feita à coluna por Eloísa Machado, professora da FGV Direito-SP e coordenadora do centro de pesquisa Supremo em Pauta.

"Seletividade porque o próprio presidente da corte negou uma série de habeas corpus, inclusive coletivo, para pessoas do grupo de risco, como idosos e portadores de doenças crônicas durante a pandemia", afirma. "E politização porque essa seletividade parece estar orientada para agradar o governo Bolsonaro – o que tem sido comum das decisões de Noronha."

O ministro João Otávio Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, decidiu, nesta quinta (9), a favor da defesa do policial aposentado e ex-assessor da família Bolsonaro, que está no presídio de Bangu. Sua prisão foi decretada em meio à investigação de desvios de recursos públicos no gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador, Flávio Bolsonaro. Durante o recesso do Judiciário, cabe ao presidente do STJ decidir sobre liminares.

Noronha concordou com a justificativa de que as condições de saúde de Queiroz, que operou de um câncer no intestino e estaria em tratamento médico, poderiam colocá-lo em risco em meio à pandemia de coronavírus. Não apenas isso, mas também aceitou que a esposa do assessor, Márcia Aguiar, que está foragida da Justiça, também se beneficiasse da decisão "por se presumir que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias". Ou seja, para que ela cuide dele.

Eloísa Machado lembra que, desde o início da pandemia, uma série de pedidos foi feito para transferência de presos para a prisão domiciliar a fim de evitar a explosão de mortes em presídios e casas de detenção. As ações consideraram como grupos de risco idosos, gestantes, pessoas com diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV, doenças crônicas imunossupressoras e respiratórias, entre outras. Muitas não foram aceitas.

Ela considera que "as péssimas condições de detenção para pessoas em grupo de risco é, neste momento, uma condenação à morte". Para Machado, a Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) possibilita a substituição da prisão por outras medidas neste momento. A questão é que, segundo a jurista, isso tem funcionado para algumas pessoas, principalmente quem tem boas relações com o poder, mas não para outras – principalmente pobres e negros.

O próprio presidente da República se colocou contra a recomendação quando se tratava de outros cidadãos. "Eu, se depender de mim, não soltaria ninguém. Afinal de contas, estão muito mais protegidos dentro da cadeia, porque nós proibimos as visitas íntimas, proibimos as visitas também nos presídios, de modo que estão bem protegidos lá dentro", disse Bolsonaro, em entrevista à RedeTV, em março.

Os ambientes prisionais e as unidades de internação brasileiras estão ocupados acima de sua capacidade, sem condições adequadas de ventilação, alimentação, repouso e tratamento a quem necessita de cuidados de saúde. Dados do próprio CNJ apontam que apenas 37% dos estabelecimentos prisionais têm instalações de saúde capazes de promover o cuidado básico das pessoas presas.

O presidente Jair Bolsonaro, que trouxe Queiroz para trabalhar na política e é seu amigo de longa data, "confessou" que sentiu pelo ministro Noronha "amor à primeira vista", em um discurso em abril deste ano. "Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário". Noronha é um dos cotados para assumir uma das duas vagas no Supremo Tribunal Federal que serão abertas neste ano e no próximo.

Análise

A defesa de Fabrício Queiroz poderia ter recorrido contra a prisão do seu cliente desde o dia 18 de junho, quando o faz-tudo dos Bolsonaro foi encarcerado. Preferiu esperar pelo início do recesso do Judiciário, em 2 de julho, para atravessar um habeas corpus tóxico na mesa do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, um magistrado com quem Jair Bolsonaro diz manter uma relação especial. "Foi amor à primeira vista", disse o capitão, em abril.

Se fosse protocolado antes do recesso, o pedido de liminar cairia nas mãos de Félix Fischer. Relator da Lava Jato e do caso da rachadinha na Quinta turma do STJ, Fischer é um magistrado temido por onze em cada dez réus. No plantão, a encrenca deslizou para o colo de Noronha, cuja decisão será posteriormente submetida a Fischer e à turma.

Noronha enviou Queiroz do ambiente inóspito de uma cela no presídio carioca de Bangu 8 para o conforto da prisão domiciliar. Fez melhor: estendeu o refresco a Márcia Aguiar, mulher do operador da rachadinha de Flávio Bolsonaro. Ela nem chegou a ser presa. Foragida, vai direto do esconderijo para o aconchego do domicílio —sem o inconveniente de uma escala no xilindró. Foi condenada, por assim dizer, a um convívio compulsório com o marido.

O magistrado acatou o argumento do advogado Emílio Catta Pretta. Alegou-se que Queiroz, às voltas com um câncer, corria risco de contrair Covid-19 na cadeia. A reclusão domiciliar foi estendida à mulher dele sob o argumento de que o marido precisa de atenções especiais.

Ao desviar de Félix Fischer, o doutor Cata Preta revelou-se um bom advogado. Ao mirar em Noronha, exibiu ótima pontaria. Todos saem aliviados do episódio, exceto Noronha. O advogado celebra o êxito de um artifício. Queiroz e Márcia postergam os pensamentos sobre delação. O amor de Bolsonaro sai fortalecido. Quanto a Noronha, por mais que argumente ter decidido conforme suas convicções, não se livrará dos comentários maledicentes.

Esquema de cargos

"Queiroz é peça fundamental na estrutura indicada pela reportagem da Folha sobre os esquemas de nomeações de servidores no gabinete de Jair Bolsonaro, e na reportagem do G1, que mostra o funcionamento do Escritório do Crime", afirmou o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ). "Ele é o não-citado presente. Não apenas era o operador das 'rachadinhas', esquema de corrupção pelo qual a família desviou milhões em dinheiro público, mas é a ligação do clã do presidente com territórios dominados pelo crime organizado."

Meticulosa apuração de Ranier Bragon e Camila Mattoso, da Folha, traz indícios de que a nomeação suspeita de assessores no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro pode ter sido lesivo aos cofres públicos. Ele contratou 110 nos quase 28 anos que permaneceu por lá, realizando 350 trocas de cargos com alteração salarial, mudanças abruptas de valores e exonerações de fachada.

Por exemplo, segundo a apuração, a campeã foi Walderice Santos da Conceição, que seria funcionária fantasma do gabinete e passou por 26 trocas. Ela foi flagrada vendendo açaí em Angra dos Reis (RJ), em horário de expediente do parlamento. "O presidente deve responder quais foram as mudanças do trabalho da Wal do Açaí que levaram a alterações em seu salário", diz Freixo.

"Um presidente que defende representar a 'nova política' foi um deputado que conviveu por quase 28 anos com práticas do subterrâneo da Câmara – práticas que são aquilo que o Brasil mais ojeriza", afirma o deputado federal.

"Queiroz era um funcionário da família e ajudava a gerenciar o esquema. Mas quem nomeava era o próprio deputado. Ou seja, da mesma forma que as contratações na Assembleia Legislativa do Rio passavam pela mão de Flávio, na Câmara passavam por Jair." Para Marcelo Freixo, tudo isso comprova a existência de uma organização, com uma estrutura consolidada.

"Quem trouxe Queiroz para a política? Quem o colocou no gabinete de Flávio? Quem manda de fato nos mandatos dos filhos? A resposta é óbvia e mostra que a prisão do ex-PM comprova que o presidente representa o que há de mais antigo e podre no sistema político brasileiro", diz.

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, arquivou, na quarta (1), uma interpelação judicial feita pelo vereador Carlos Bolsonaro para que Freixo revelasse quais crimes teriam sido cometidos pelo presidente e seus filhos, de acordo com uma postagem do deputado. "Sobre o questionamento, sugeri a Carlos que fosse ao presídio em Bangu perguntar a Queiroz", afirmou à coluna.

Para ele, que presidiu a CPI das Milícias quando deputado estadual na Assembleia do Rio, a prisão de Queiroz deixou Jair Bolsonaro mais abatido do que as crises provocadas pelas demissões de importantes ministros do seu governo.

"O que explica esse silêncio inédito? O medo diante da constatação de que a prisão de Queiroz provocará o desmoronamento da ideia de que ele representa uma nova política. Afinal, o presidente só venceu a eleição porque conseguiu, depois de 2013, se apresentar como um candidato antissistema", avalia. De acordo com Freixo, "o ex-policial militar é a tampa do bueiro e Bolsonaro sabe que, agora, o esgoto está correndo a céu aberto, expondo ao país à podridão do sistema político carioca, uma mistura de crime organizado, polícia e política".

Outro levantamento, de Leslie Leitão e Marco Antônio Martins, do G1, mostra que a polícia e o Ministério Público investigam um rosário de mortes cometidas pelo Escritório do Crime, que só passaram a ser realmente investigadas após a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista, Anderson Gomes, em março de 2018.

Após deixar as Forças Armadas, Queiroz serviu no 18º Batalhão, de Jacarepaguá, com Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime – morto em fevereiro deste ano durante ação que tentava prendê-lo. A área do batalhão é dominada por milícias, segundo o deputado.

"Bolsonaro conheceu Adriano por meio de Queiroz, que ainda não havia sido colocado no gabinete de Flávio. A mando do presidente, seu filho, então deputado estadual, homenageou o criminoso com a mais importante honraria do Estado, a Medalha Tiradentes, entregue dentro da cadeia porque Adriano estava preso por assassinato", afirma Freixo.

"No mesmo ano, Bolsonaro fez um discurso no Congresso pelo qual chamou de herói o chefe do Escritório do Crime. Ali foram estabelecidas as relações, que se aprofundaram após Queiroz começar a operar dentro do mandato do primogênito do clã em 2007."

A ex-mulher e mãe de Adriano, por intermédio de Queiroz, se tornaram assessoras fantasmas no esquema de desvios de recursos públicos. Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, o matador teria repassado R$ 400 mil ao ex-PM.

Vale lembrar que a filha de Queiroz trabalhava no gabinete de Jair Bolsonaro, em Brasília, enquanto atuava como personal trainer no Rio de Janeiro. Ela repassou a maior parte do salário ao pai.

E que Queiroz depositou um cheque de R$ 24 mil na conta da, hoje, primeira-dama, Michelle Bolsonaro. O presidente diz que é devolução de parte de um empréstimo, mas nunca provou isso e atacou repórteres que cobraram dele um comprovante. "Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, tá certo?", disse.


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