19/03/2024 - Edição 540

Brasil

A pandemia já tem nítido caráter de classe

Publicado em 09/07/2020 12:00 -

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O EPICOVID19, projeto que mapeia a epidemiologia do novo coronavírus no Brasil, deixará um legado. Poucas vezes uma pesquisa científica chegou tão perto das pessoas no país. Os resultados são divulgados quase em tempo real, a cobertura da mídia tem sido incrível e os resultados publicados nas melhores revistas científicas.

O estudo nacional, conduzido em 133 cidades de todos os estados da federação, traz resultados que merecem destaque. A pandemia se comporta de forma muito distinta entre as regiões do Brasil: no Norte, cerca de 10% da população tem ou já teve coronavírus. No Sul, esse percentual ainda é abaixo de 1%.

A palavra desigualdade também salta aos olhos sob os pontos de vista socioeconômicos e étnico-raciais. Em todas as fases da pesquisa, as pessoas mais pobres apresentaram o dobro do risco de infecção em comparação às mais ricas. Além disso, indígenas apresentam um risco cinco vezes maior do que os brancos.

A EPICOVID19 mostrou ainda que as crianças têm a mesma chance dos adultos de contraírem o vírus. E que quase 89% das pessoas infectadas apresentam algum sintoma, divergindo do entendimento corrente de que a maioria das infecções é assintomática. O sintoma de perda de olfato ou paladar foi relatado por quase 60% das pessoas infectadas.

A pesquisa estimou que, de cada 100 infectados pelo coronavírus, um vai a óbito. E que, havendo um morador infectado na casa, a chance de os outros moradores também serem infectados é de 40%.

Confirmando a teoria do iceberg, que inspira o logotipo do projeto, o estudo mostra que o número real de pessoas com anticorpos é pelo menos seis vezes maior do que o número de casos que aparece nas estatísticas oficiais.

O questionamento agora é sobre o futuro do EPICOVID19. Como sempre acontece na ciência brasileira, o financiamento parece ser o maior desafio. Mesmo com o amplo apelo popular pela continuação da pesquisa, não há ainda garantias de que isso vá ocorrer. Os pesquisadores continuam aguardando posição do Ministério da Saúde sobre o tema.

Muito se tem discutido sobre ciência no Brasil. Infelizmente, na maioria das vezes o tema surge após recorrentes anúncios de redução dos investimentos em ciência e tecnologia, como cortes de bolsas de pós-graduação e bloqueios orçamentários nas universidades. Mais recentemente ele estava em evidência em decorrência do discurso anti-ciência, que chega a questionar se a Terra é plana e a eficácia de campanhas de vacinação.

“Apesar dessas tormentas recentes, com a chegada da pandemia, a ciência brasileira vem dando um exemplo de resiliência e resistência que merece ser destacado. Mesmo subfinanciada e desacreditada, está de pé, especialmente quando a população brasileira mais precisa dela”, diz Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador da pesquisa.

Negros

Outro estudo inédito, realizado em São Paulo, mostra que os negros têm 2,5 vezes mais riscos de contrair a doença; e em bairros periféricos, prevalência é quase três vezes superior à das áreas ricas. É como se houvesse dois surtos distintos, dizem pesquisadores. A pesquisa demonstra ainda que, enquanto na população mais pobre a prevalência é de 16%, nos bairros mais ricos ela é de 6,5%. No conjunto da cidade a prevalência é de 11,4%, um aumento de 2,4 vezes entre 4 de maio e 15 de junho.

A prevalência da COVID-19 na capital paulista tem cor da pele, classe social e nível de escolaridade, acompanhando a desigualdade social presente no município, mostra a segunda fase do SoroEpi MSP – Inquéritos soroepidemiológicos seriados para monitorar a prevalência da infecção por SARS-CoV-2 no Município de São Paulo, projeto conjunto entre cientistas e médicos da Universidade de São Paulo e da Secretaria da Saúde do Estado com o apoio do Grupo Fleury, IBOPE Inteligência, Instituto Semeia e Todos pela Saúde (http://www.monitoramentocovid19.org/).

De acordo com os resultados, a soroprevalência, ou seja, a frequência de indivíduos com anticorpos contra o novo coronavírus, é 4,5 vezes maior em pessoas que não completaram o ensino fundamental se comparada com aqueles que concluíram o nível superior (22,9% versus 5,1%).

O levantamento aponta que a soroprevalência é 2,5 vezes maior em pessoas adultas pretas do que brancas (19,7% contra 7,9%). Habitações com 5 ou mais pessoas apresentam soroprevalência quase duas vezes maior quando comparadas com residências com apenas um ou dois moradores (15,8% contra 8,1%). No total, a pesquisa aponta que 11,4% de moradores da capital com mais de 18 anos já foram infectados pelo novo coronavírus, um total de 958 mil pessoas.

Nesta fase do projeto, foram coletadas e analisadas 1.183 amostras de sangue em 115 setores censitários, sendo que 12 residências foram sorteadas em cada um desses setores, durante o período de 15 e 24 de junho de 2020. A capital paulista tem uma população de 8.407.202 habitantes com 18 anos ou mais. Para a realização da pesquisa, foram criados dois estratos na cidade: distritos com maior renda e distritos com menor renda, sendo que cada um deles corresponde a cerca de metade da população pesquisada.

Os participantes foram selecionados utilizando uma amostragem probabilística em dois estágios: setor censitário e domicílio. No primeiro estágio foram sorteados 115 setores censitários. No segundo estágio foram selecionados por sorteio 12 domicílios em cada setor. Todos os habitantes maiores de 18 anos das residências sorteadas foram convidados a participar. Após responderem um questionário, uma amostra de sangue foi colhida por punção venosa dos participantes. A quantidade de anticorpos contra o SARS-CoV-2 (IgG e IgM) foi medida usando o método de quimioluminescência.

A principal conclusão é de que a epidemia de SARS-CoV-2 no município de São Paulo pode ser entendida como duas epidemias com dinâmicas de propagação distintas, o que reflete as desigualdades sociais presentes no município. Além disso, mesmo não sendo perfeitamente comparáveis, considerando o início da coleta do projeto-piloto (4 de maio de 200) e desta segunda fase (15 de junho de 2020), estima-se que houve um aumento de 2,4 vezes (11,4% versus 4,7%) na soroprevalência dos moradores com 18 anos e mais.

Moradores de rua e vários outros segmentos

Em um país marcado pela desigualdade, o que esperar dos impactos da maior crise sanitária do século? Para descobrir, a ouvidoria-geral da Defensoria Pública de São Paulo também foi em busca de representantes das parcelas mais vulneráveis aos efeitos dessa crise: moradores de rua e ocupações, migrantes, catadores de material reciclável, pessoas com deficiência, população carcerária, negros, mulheres. O resultado está em um relatório de 95 páginas, divulgado em abril. Além de apontar dificuldades, esses segmentos também fizeram sugestões ao poder público de como contê-las.

Meses depois, o desfecho é pouco animador. É verdade que, no início da crise, o Estado teve uma postura ostensiva importante para frear o aumento da pandemia. Por outro lado, ignorou as necessidades singulares de cada um desses grupos. E tornou a pandemia mais severa. “Um cego se relaciona através do tato. Máscaras e luvas praticamente eliminam o contato dessa pessoa com o mundo exterior. A população de rua não consegue se isolar, e as alternativas estatais para isso são péssimas. Mulheres em situação de violência doméstica, idem”, avalia Willian Fernandes, ouvidor-geral da Defensoria Pública. 

Em tempos normais, a Defensoria atende em média 13 mil casos por ano – a quarentena inibiu a procura pela Justiça. Mas, apesar do ‘fique em casa’, continuam havendo ações como reintegrações de posse e despejos. Desde o início da crise, houve ao menos dez reintegrações de posse em São Paulo. A mais recente ocorreu na segunda quinzena de junho. Foram despejadas 900 famílias de um terreno em Guaianases, na zona leste da capital. “Isso nos preocupa muito. De um lado, o Estado recomenda às pessoas ficar em casa. De outro, apresenta uma ordem que as põe na rua”, lamenta Fernandes.  A Defensoria chegou a enviar uma solicitação ao Tribunal de Justiça de São Paulo para suspender o cumprimento dessas ordens durante a pandemia, mas os juízes continuam avaliando caso a caso. Só na capital, a fila de espera por moradias é de 200.755 mil famílias com cadastro ativo. 

A maioria dessas famílias sobrevive do trabalho informal: vende de bolos nas esquinas, águas nos semáforos, espetinhos e quentinhas. A perda dessa renda dificultou manter alimentação e a higiene adequadas. Famílias, muitas vezes numerosas, ficam restritas às humildes ‘moradas’. O fechamento das escolas e creches agravou a situação. Entre os que vivem na rua, a insegurança alimentar e a falta de moradia se somam ao um outro temor: a violência. “Com menos gente na rua, a polícia tem sido mais intolerante que o normal”, avalia. Além disso, essa população enfrenta dificuldades extras em conseguir o auxílio emergencial.


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