25/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Cobras, Vírus e Diplomas

Publicado em 08/07/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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O jovem de Brasilía picado por uma cobra naja não é um receptador de tráfico de animais. É um estudante de veterinária. 

O casal que agrediu verbalmente o fiscal da Vigilância Sanitária no Rio de Janeiro, não é cidadão. Ela é engenheira química. Ele, engenheiro civil e, portanto, "melhor que você".

Antes de devolvê-lo para a lata de lixo da história, é preciso celebrar a grande contribuição de Bolsonaro para o desmascaramento do status quo brasileiro. Deixamos de ser o caldeirão sincrético e tolerante das campanhas de turismo e assumimos com orgulho de nossas tradições estratificadoras. 

Fomos libertados da obrigação do pretexto, a única verdadeira promessa de campanha do presidente. Prometeu "acabar com o politicamente correto" e conseguiu. Nossas elites já proclamam abertamente a sinceridade anticivilizatória que costumavam praticar na encolha: a promoção e manutenção da desigualdade social.

Com o fim do Império, a titulacão real deixou de ter o prestigio que costumava ter. Só os Orleans e Bragança continuam sacolegando seus "condes" e "barões" e "príncipes".  Inspirados nos títulos clérigos e militares, a elite buscou a elaboração de novos sistemas de castas que justificassem seus privilégios. Daí a academia e a adulação dos "anéis de doutor". O diploma universitário foi criado para ser um instrumento de delimitação do fosso social. Do valor dos salários às celas especiais em caso de improváveis prisões.

Mas não é só o brasileiro que esconde desigualdade atrás do diploma. Esse é um modelo comum no ocidente. Nos EUA, por exemplo, o curso superior tem um custo proibitivo e a maioria da população é aconselhada a frequentar cursos técnicos, sendo a faculdade relegada aos que podem pagar quantias exorbitantes ou passar décadas pagando financiamentos e créditos estudantis. Mesmo entre os que chegam à universidade, há uma subcasta que divide os frequentadores das escolas de elite das menos prestigiadas. E até das universidades públicas, as chamadas "comunitárias", tão desassistidas quanto as escolas públicas do Brasil.

Curiosamente, a qualidade do ensino não é o carro-chefe das instituições de elite, lá e cá (Taí o Paulo Guedes que não me deixa mentir). O acordo velado diz respeito a acesso, não conteúdo. Seus universitários serão disputados pelos programas de trainee das maiores empresas. Aqueles núcleos acadêmicos vão reunir os herdeiros das maiores fortunas. Os colegas se relacionam e casam dentro da casta, impedindo a diluição do patrimônio e da influência econômica daquelas famílias. 

Quem está nas camadas abaixo da pirâmide pode até fingir que não vê as cartas marcadas e professar seu credo na meritocracia. Mas é da boca pra fora. No fundo, sabem que ficaram de fora da festa no andar de cima. Só lhes resta fechar os portões de acesso para os andares de baixo e preservar o que lhes sobrou do rincão. 

Quando alguém enche a boca (não coberta por máscara) para dizer que é melhor que outra pessoa porque é "engenheiro civil", estamos escancarando um segredo histórico: esta lei não se aplica a mim porque não pertenço ao seu estrato social. E se "cidadão" é um termo usado indistintamente a todos, não se aplica à minha pessoa. Não sou todo mundo. Eu sou engenheiro civil. Tenho um papel timbrado que garante acesso a este camarote. E não serão essas "leizinhas socialistas" que impedirão que eu usufrua da parte que me cabe neste latifúndio. 

Acontece que vírus e cobras não ligam muito pro tamanho do seu anel de doutor.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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