29/03/2024 - Edição 540

Poder

O ‘surto moralizante’ do governo vai derrubar apenas o ministro negro?

Publicado em 03/07/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Carlos Alberto Decotelli se demitiu por livre e espontânea pressão após o país descobrir que o novo ministro da Educação mentiu sobre ter um doutorado e um pós-doutorado – sem contar as acusações de plágio no mestrado. Cometeu fraude, em suma. E insistiu nela.

Jair Bolsonaro primeiro fez silêncio, depois elogiou o escolhido. Dizem seus assessores que, ao final, ficou indignado com a situação. Deveria, portanto, aproveitar este momento "moralização" e fazer um pente-fino em todas as pastas de sua administração e não apenas nos próximos candidatos à vaga que era do espalhafatoso Abraham Weintraub.

Não apenas para checar a capivara acadêmica dos assessores do presidente, mas outras coisas que desabonem sua conduta pública. Como ameaçar de prisão prefeitos e governadores ou ministros do Supremo Tribunal Federal.

Ficaríamos sabendo se a sua indignação é real ou se ela decorre do fato de ter que enfrentar mais um percalço num momento em que um de seus olhos mira o inquérito das fake news que atingiu seus aliados e, o outro, está atento a Fabrício Queiroz – preso provisoriamente em Bangu em meio à investigação de desvio de recursos públicos dos gabinetes de sua família.

Poderia começar limando quem tem dúvidas sobre a gravidade da pandemia de covid-19 e sobre existência das mudanças climáticas. Porque isso significa apoiar a morte de pessoas.

Depois procurar ministros que foram condenados por improbidade administrativa devido a fraude em plano de manejo.

Checar se há ministros denunciados por falsidade ideológica, apropriação indébita e associação criminosa por plantarem candidaturas-laranja nas eleições de 2018.

Verificar aqueles que tenham participado de manifestações que pediram o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Talvez até se depare, em meio ao pente-fino, com uma espécie de "gabinete do ódio" operando dentro da sede do governo federal, com ataques digitais organizados contra adversários do presidente, ministros do Supremo Tribunal Federal e a imprensa.

Tem tanta coisa moralmente e eticamente errada que pode ser encontrada com uma passada de olhos sobre esse governo que fica até difícil ser irônico.

O fato é que se esse surto moralizante servir apenas para o primeiro e único ministro negro, vai ficar parecendo aquilo que já está parecendo.

Em tempo: antes que digam que a gente vê coisas onde elas não existem, vale ressaltar que essa é a consequência da coisa toda ser estrutural. E cabe a nós autocrítica.

A mentira é instrumento deste governo

Decotelli mentiu sobre ter um doutorado e um pós-doutorado e está sendo acusado de plágio por sua dissertação de mestrado. Mas o que desconcerta, a esta altura do campeonato, é sua queda ter ocorrido apenas devido à repercussão negativa do caso. Pois isso levanta uma incômoda questão: por que esse comportamento apenas com ele?

É grave o caso? Sim, ainda mais para um ministro da Educação que não reconhece que errou. E a sociedade tem o direito de reclamar. Mas é grave também um monte de outras coisas envolvendo o alto escalão do governo Bolsonaro.

Todo governo mente. Mas neste, em especial, a mentira é usada pelo próprio presidente da República para reduzir a importância de uma pandemia que matou quase 60 mil pessoas, atacar adversários e a imprensa e tentar manipular a opinião pública. Levando isso em conta, Decotelli deveria receber um prêmio e não uma punição.

Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo, foi denunciado pelo Ministério Público de Minas Gerais, em outubro do ano passado, após a Polícia Federal indiciá-lo por envolvimento no laranjal do PSL. O esquema teria desviado recursos públicos através de candidaturas de mulheres de fachada nas eleições de 2018. Foi acusado de falsidade ideológica, apropriação indébita e associação criminosa. Continua no cargo.

Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, foi condenado em primeira instância por improbidade administrativa, acusado pelo Ministério Público de São Paulo de cometer fraude na elaboração de um plano de manejo com o propósito de beneficiar empresas de mineração e filiadas à Fiesp. A condenação saiu após ele ter sido indicado ao cargo, mas antes de ser empossado. Está lá, dando até sugestão de como aproveitar a crise do coronavírus para "passar a boiada".

Se o governo pode manter ministros denunciados e condenados, além daqueles que colocam em risco nossa economia xingando parceiros comerciais (Ernesto Araújo) e ameaçando governadores e prefeitos de prisão (Damares Alves), por que não permitiu que Decotelli assumisse?

Ricardo Vélez Rodríguez, ex-ministro da Educação, também maquiou seu currículo acadêmico, colocando como suas obras de terceiros. Não caiu, nem deixou de assumir por causa disso. Aliás, o governo conta com a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que poderia verificar as credenciais de um novo ministro, mas deve estar ocupada demais com a sociedade civil.

É inacreditável que alas do governo, como militares, afirmem estarem constrangidas com as fraudes do ex-ministro. Não lembro ouvir constrangimento de fardados no momento em que o presidente usou ataque de cunho sexual contra a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, por exemplo.

Dizer que Bolsonaro, agora, é "Jair Paz e Amor" e quer uma relação pacificada com os Poderes Legislativo e Judiciário e, por isso, suspendeu a nomeação é tanto wishful thinking na conversão do presidente ao comportamento republicano que soa à Síndrome de Estocolmo.

Não estou defendendo Decotelli, ele que se responsabilize pelo que fez. Mas vale a pergunta: por que a queda atingiu justamente o ministro negro apesar de suas práticas não destoarem de uma parte da Esplanada dos Ministérios? Talvez quase cinco séculos de história não resolvida, que moldaram nossas relações sociais, ajudem a explicar.

Sob Bolsonaro, MEC produziu crises e vexames

Na política, como na vida, o futuro é condicionado por uma tríade implacável: a morte, o erro e o imprevisto. Seria precipitado dizer que o projeto de Bolsonaro está morto. Mas o presidente produz uma série de erros que revelam uma certa vocação para o suicídio político. Para complicar, sobreveio o imprevisto da pandemia, que subverte todas as certezas. Nesse contexto, o descalabro da Educação vem sendo tratado como secundário. Se o caso do ministro da Educação que virou "ex" antes de tomar posse serve para alguma coisa é para lembrar que a estratégica área educacional vem sendo tratada por Bolsonaro de maneira inaceitável.

Em um ano e meio de governo, Bolsonaro produziu no MEC crises e vexames. Ganha uma dose de vacina contra o coronavírus quem for capaz de mencionar de memória uma mísera ideia que o governo tenha levado à vitrine para melhorar a qualidade da Educação no Brasil. Nessa área, como em muitas outras, o que se vê é um imenso pastel ideológico de vento.

Imaginou-se que a escolha do Decotelli representaria um ponto fora da curva da insanidade ideológica. Mas a ilusão durou pouco. Por uma trapaça da sorte, no instante em que Bolsonaro resolveu escolher alguém pela densidade do currículo, descobriu-se que os títulos do mestre, doutor e pós-doutor eram fakes. Manter a nomeação seria levar o escárnio às fronteiras do paroxismo.

Depois que Bolsonaro encarou com naturalidade a passagem da piada Velez Rodrigues e do descalabro Abraham Weintraub pelo MEC, a plateia aguardava pelo sinal de que o fim, ou pelo menos o indício terminal que manteria a Educação no abismo, estivesse próximo. Aguardava-se o fato que levaria o país a exclamar: "Não é possível!" O alarme, finalmente, soou. De agora em diante, tudo é epílogo para o governo Bolsonaro na área da Educação. Se o presidente tiver juízo, ele injeta meio quilo de ideias nesse epílogo.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *