29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Há uma linha que separa a liberdade de expressão de um ato criminoso

Publicado em 02/07/2020 12:00 -

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Há uma linha que separa a liberdade de expressão de um ato criminoso: a palavra da lei. Como bem resumiu o professor Guilherme Casarões, da FGV, em um tuíte recente, “difamação não é liberdade de expressão. Calúnia não é liberdade de expressão. Discurso de ódio não é liberdade de expressão. A democracia existe justamente para repreender as primeiras e garantir a segunda.”

No Brasil, a instituição máxima que assegura a constitucionalidade é o Supremo Tribunal Federal, o STF, formado por juízes das mais diferentes orientações – o que é saudável para o equilíbrio democrático justamente por incorporar diferentes leituras da Carta Magna. É este mesmo STF que se tornou, nos últimos tempos, o alvo preferencial dos grupos bolsonaristas mais radicais, motivando a criação do inquérito para investigar as manifestações contra a democracia e suas instituições no Brasil.

O inquérito, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, já fez diversas buscas, apreensões e prisões, tendo como alvo políticos, empresários e influenciadores digitais acusados de promoverem e/ou financiarem manifestações de cunho antidemocrático e ataques às instituições republicanas do país, em especial o Congresso Nacional e o STF. No entanto, apenas mais de um mês depois, em 25 de junho, quando a Procuradoria-Geral da República abriu uma apuração contra o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, por sua “Nota à Nação Brasileira”, que um militar da reserva passou a ser investigado formalmente.

É sabido que, após passarem para a reserva, os militares são livres para se manifestarem publicamente sobre questões de cunho político, incluindo a possibilidade de se candidatarem e serem eleitos para cargos públicos. Mas, tal qual para qualquer cidadão do país, suas manifestações são também passíveis de serem criminalizadas se ultrapassarem as expectativas da lei. Ainda que este não seja um hábito político brasileiro.

Herdamos do processo transitório do regime militar para a democracia alguns vícios, que acabaram por alimentar uma nada saudável impunidade para militares no Brasil. Como bem coloca o professor da USP Conrado Hübner Mendes, se o STF tivesse levado a democracia a sério, teríamos militares presos por crimes contra a humanidade, e o ovo da serpente não teria rebentado no bolsonarismo.

A Lei da Anistia e sua renovação ao cabo do governo do ditador João Baptista Figueiredo para incorporar também os crimes cometidos pelos agentes do regime após a anistia de 1979 impediram que houvesse condenação daqueles que, em nome do estado, atuaram violentamente contra a população que deveriam proteger. Em termos de ideologia, a caça aos comunistas jamais deixou de existir junto aos militares brasileiros, e é um dos elementos centrais dos grupos de pressão dos militares da reserva, junto com a defesa da ditadura.

Na Argentina, Chile e Uruguai, para pegar apenas os casos das mais violentas ditaduras sul-americanas, ninguém ousa pedir novamente os militares no poder porque a história não admite ser reinterpretada quando há julgamentos justos em regimes democráticos transparentes. Os agentes de estado que atuaram em crimes contra a humanidade foram devidamente julgados e presos nesses países. No Brasil, a transição “lenta, gradual e segura”, nas palavras do ditador Ernesto Geisel, legou-nos o ressurgimento desses fantasmas que se mantiveram impunes. Alguns deles, inclusive, recebendo constrangedoras homenagens pelo presidente da República.

O envolvimento dos militares com a política não é novidade no Brasil. É algo que fez, inclusive, parte da formação castrense no país. Motivados, talvez, por essa percepção que são livres de obstáculos por serem, em última instância, moderadores da política nacional (visão defendida por Ives Gandra, mas oficialmente julgada improcedente pelo ministro do STF Luiz Fux), militares da reserva começaram, em peso, a se manifestar contra as nossas instituições democráticas, em especial contra ministros e a instituição do STF. Há manifestações que vão desde tuítes e notas oficiais de ministros e outros do primeiro escalão do governo (incluindo o presidente e o seu vice) a notas coletivas de altos oficiais da reserva. Até a recente denúncia da PGR contra Heleno, o outro único caso de investigação contra um militar havia sido a busca e apreensão na casa do general da reserva Paulo Chagas, há mais de 14 meses, no âmbito do inquérito das fake news sob a tutela do ministro Alexandre de Moraes.

Segundo esse inquérito, que investiga as ameaças contra a democracia, seria criminosa a “divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano, bem como as suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação.” É urgente então que se analise o conteúdo desses manifestos – que se seguiram à “Nota à Nação Brasileira” de Heleno – que querem claramente constranger as instituições republicanas em seus exercícios de equilíbrio entre os poderes.

Não busco aqui, de maneira alguma, apresentar ou alimentar qualquer visão antimilitar. Pelo contrário, busco propagar a visão que precisamos dos militares como agentes do Estado, fora da política e voltados à sua missão primordial que é a defesa nacional e dos cidadãos brasileiros. Assim como podemos e devemos receber os militares da reserva na vida civil do país, com todos os direitos que são dados a qualquer brasileiro. O que não podemos é seguir tomando como normal que militares, da ativa ou da reserva, agentes do governo ou não, sintam-se livres para atacar impunemente as estruturas democráticas brasileiras.

O professor Piero Leirner, da UFSCar, identificou bem que essa suposta normalização não é gratuita, e que corremos sério risco de repetir os passos que levaram ao regime militar de 1964. A visão paranoica que somente os militares podem ser os intérpretes do conceito de nação brasileira, e que seriam os únicos moralmente gabaritados para reorganizar o país após uma anarquia que eles próprios ajudaram a criar, está se repetindo de maneira assustadora pelas vozes dos oficiais da reserva, que já se apresentam como “os verdadeiros guardiões da Constituição Federal,” de dentro e de fora do governo.

Se é criminoso atentar contra o regime republicano-democrático, o que são então as crescentes notas públicas de turmas das academias, do Clube Militar, a censura na ESG e no Colégio Militar de Brasília a professores civis que ousam discordar da leitura do cenário político da caserna, a intimidação a servidores técnicos do Ministério da Saúde e a uníssona voz dos militares no governo de criar tensões com o Congresso e com o STF? Elas criam, através de uma construção social, um mundo caótico, um país ingovernável, que justifique, uma vez mais, a intromissão das Forças Armadas na condução política do país. Eles criam o caos e se impõem como solução para o problema que eles mesmos ajudaram a criar. É o autogolpe a que o vice-presidente Hamilton Mourão se referiu com tanta naturalidade, tamanha a internalização castrense sobre o tema.

Não é normal ou natural, em qualquer democracia consolidada do mundo, que notas assinadas por militares da reserva, falando como militares e fazendo uso de suas patentes militares, ameacem uma guerra civil no caso da Suprema Corte aprofundar investigações contra um presidente da República. Fica mais grave ainda quando se tornam recorrentes e em tons igualmente autoritários. Para a defesa do regime democrático brasileiro, o conteúdo desses manifestos precisa também ser alvo de investigação pelos órgãos competentes da República.

Para os cargos mais altos do Executivo, há o foro por prerrogativa de função, o que significa que devem e podem ser investigados mediante autorização do STF. Mas, no caso das notas dos militares da reserva, é relevante lembrar que estes, como civis, não detêm nenhuma prerrogativa legal, nem mesmo de serem julgados pela contraditória e corporativista Justiça Militar. Apenas o privilégio de gozarem historicamente de autonomia e impunidade políticas em suas manifestações contra o regime democrático, os Poderes Legislativo e, em especial agora, o Judiciário brasileiro.


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