28/03/2024 - Edição 540

Poder

Projeto mira as fake news, mas pode acarretar censura e invasão de privacidade

Publicado em 26/06/2020 12:00 -

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A busca do Parlamento em dar um basta às fake news por meio de um projeto de lei acabou se tornando mais um problema para o País — já imerso em três crises: sanitária, política e econômica. A proposta em discussão no Senado que deveria ter capacidade de frear a propagação de notícias falsas gerou inúmeros alertas. As principais queixas são de censura e violação de privacidade.

Mesmo com a medida cercada de críticas, o Senado tenta aprová-la a toque de caixa. Uma das versões finais do texto foi apresentada no dia 24 e teve sua votação prevista para quinta (26), mas foi adiada para a próxima terça (30). Ainda assim, a redação final segue alvo de pedidos de alterações.

Com pressa, o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), está firme na decisão de levar o texto ao plenário. Para acelerar a tramitação, Alcolumbre recorreu a uma estratégia regimental e acatou parcialmente os pedidos de adiamento na data de votação, encerrando os debates.

Com isso, a proposta, relatada pelo senador Ângelo Coronel (PSB-BA), não poderá receber emendas. Ou seja, o texto — que é considerado necessário por parte dos senadores, mas que não agrada a maioria dos parlamentares, empresas do setor e entidades da sociedade civil — não poderá mais ter mudanças substanciais. Poderá, porém, sofrer cortes em trechos do relatório.

Privacidade

Um dos trechos mais atacados é o artigo 10º, que determina a armazenagem “dos registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, pelo prazo de 3 meses, resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens”. É considerado aqui qualquer recado mandado para mais de 5 pessoas, grupos ou listas de transmissão. 

“Os registros de que trata o caput devem conter a indicação dos usuários que realizaram encaminhamentos em massa da mensagem, com data e horário deste encaminhamento, e o quantitativo total de usuários que receberam a mensagem”, destaca o relatório do senador Ângelo Coronel. 

Para o diretor do InternetLab Francisco Brito Cruz, isso coloca o Brasil “na contramão do que existe hoje em questão de proteção à privacidade”. “Mira nas fake news e acerta na vigilância dos dados.”

“Tudo que for um pouco mais disseminado vai ser tratado como potencialmente ilícito. Isso é 'vigilantista' e não tem em nenhum outro lugar do mundo democrático. Há inclusive uma discussão de constitucionalidade, sobre reverter a presunção de inocência, não se tentando investigar a partir de um ilícito.Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab

O fato de monitorar quem dispara mensagens para grupos “não resolve o problema do rastreamento”, ressalta Brito Cruz. Se você receber uma fake news e a disparar para mais de 5 pessoas, é você quem será monitorado e possivelmente responsabilizado, a princípio. A proposta, porém, deixa brechas sobre como chegar ao real responsável pela notícia falsa, destaca o especialista. 

Outro tópico apontado pelo diretor do InternetLab como discutível é o segundo parágrafo do artigo 12. Ele trata da exclusão de conteúdo ou conta dos provedores de redes sociais e determina que isso ocorra de forma imediata “nos casos da prática de crime de ação penal pública incondicionada, com a comunicação às autoridades competentes”. 

Segundo Francisco Brito Cruz, ao não determinar que a supressão dos dados se dará após decisão judicial, deixa-se subentendido que as plataformas analisarão o que é crime. 

Censura?

Outro ponto criticado diz respeito à criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, formado por representantes do Congresso, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), além de integrantes do Comitê Gestor da Internet no Brasil, da sociedade civil, dos provedores de acesso, aplicações e conteúdo da internet e ainda dos setores de comunicação social e de telecomunicações.

Entre outros, o colegiado deverá certificar instituições de autorregulação a serem criadas por provedores de redes sociais e de serviços de mensagem privada para intensificar a transparência e a responsabilidade no uso da internet. Essa instituição poderá encaminhar ao conselho relatórios trimestrais e informações sobre políticas de uso e de monitoramento de volume de conteúdo compartilhado pelos usuários desses serviços. 

O senador Esperidião Amin (PP-SC) chamou o órgão de “departamento de censura travestido”. “A reação do Senado está sendo figadal. Liberdade de expressão, neutralidade da rede, identificação e responsabilização do Judiciário e não por um departamento de censura travestivo. Um Conselho? Esta tramitação é desastrosa”, afirmou na sessão de quinta. 

Há ainda a obrigação, pelos serviços de mensagens, de suspensão de contas dos usuários que tiverem números “desabilitados pelas operadoras de telefonia”. Quem não tem telefone ativo, não poderá ter rede social, o que exclui, na opinião de especialistas, milhões de brasileiros da possibilidade de integrar serviços de trocas de mensagens. 

O artigo 7º, outro ponto de intensa polêmica, acabou sendo modificado em uma tentativa de facilitar a aprovação da proposta. Inicialmente, exigia-se que todos os usuários que se cadastrassem em redes sociais ou serviços de mensagem registrassem RG, número de celular ou os dados do passaporte (se fosse por meio de um número de fora do País). 

A medida, considerada abusiva, foi amenizada pelo senador Ângelo Coronel. Ele deixou a exigência dos documentos apenas “em caso de denúncias contra contas por desrespeito a esta Lei, ou no caso de fundada dúvida ou ainda nos casos de ordem judicial”. 

Mais um ponto controverso, considerado um jabuti (quando a questão é alheia ao tema do projeto) está no artigo 19º: “Os provedores de aplicação de internet remunerarão as empresas jornalísticas, profissionais do jornalismo, autores de obras líteromusicais e outros pelo uso de seus conteúdos”.

Votação apressada 

A proposta, apresentada em 13 de maio, pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), redigida em parceria com os deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), fala em instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. 

No parecer protocolado nesta quinta, o relator promoveu algumas mudanças. Retirou, por exemplo, os dispositivos relacionados à propaganda eleitoral. Também inseriu o conceito de “contas inautênticas”, criadas ou usadas com o propósito de disseminar desinformação ou assumir identidade de terceira pessoa para enganar o público.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, abriu a sessão destacando a intenção de votar a proposta, mas o debate serviu mesmo como uma contagem dos votos. Os próximos dias serão de negociações para conseguir avalizar o texto. 

Mesmo quem concordava com a análise do texto, como o senador Eduardo Braga (MDB-AM), com a apresentação de um novo relatório, passou a pedir mais tempo para a apreciação. “Assunto delicado”, afirmou. 

Outros, como a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, Simone Tebet (MDB-MS), reconheceram controvérsias no texto, mas alertaram para a necessidade de votação do tema como um primeiro passo a ser dado, ainda passível de correções e revisões no decorrer da tramitação no Congresso Nacional. E o mais depressa possível. 

Após passar pelo Senado, a proposta ainda segue para a Câmara e, caso seja modificada, hipótese provável, ela ainda terá de ser submetida a uma revisão por parte dos senadores.

“É óbvio que um projeto dessa envergadura não teria como não trazer grandes embates para esta Casa. (…) Acontece, senhoras e senhores, que o que nós temos aqui é uma urgência. Nós estamos diante de fake news que, num momento de pandemia, estão disseminando inverdades, com discursos totalmente equivocados, fazendo inclusive pessoas correrem risco por conta do coronavírus”, lembrou Tebet.

A senadora ressaltou ainda que a proposta tem a intenção de combater formas virtuais de bullying, injúria racial, calúnias e vingança pornográfica. “Se nós deixarmos para depois… Lembro que esse projeto ainda vai para a Câmara, vai sofrer adequações. Vai haver mais de mês para ser debatido lá, 20 dias, e para termos audiências públicas lá. Depois, nós teremos a palavra final”, encerrou a emedebista.

Há um grupo de parlamentares com pressa na tramitação desta proposta. Alvos de ataques nas redes sociais, querem pegar carona no auge do inquérito das fake news, que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) e apura ataques à Corte e aos ministros. Negam, porém, que haja intenção ideológica na medida e alegam necessidade de regular o item, em especial no momento em que o País sofre com desinformação em meio à pandemia de coronavírus. 

Reações 

Facebook, Google e WhatsApp assinaram uma nota conjunta no último dia 19 em que defendem mais debates em torno do tema. No texto, as empresas destacam o funcionamento remoto do Congresso como um impeditivo para que isso ocorra. As gigantes afirmam que o projeto se choca com o Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, ao ampliar a quantidade de dados dos cidadão que ficarão retidos.  

“O relatório insiste e acentua problemas que poderão resultar em impacto desastroso e amplo sobre milhões de brasileiros e a economia do país. (…) Além de contrariar frontalmente a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o novo texto afronta também o Marco Civil da Internet (MCI).”

Há ainda uma carta divulgada nesta quinta por 47 entidades, entre elas associações de jornalismo e organizações de direitos humanos, pedindo o adiamento da votação e mais debate sobre a proposta. O documento foi endossado por Google, Facebook e Twitter, e assinado pela Human Rights Watch (HRW) e pela Anistia Internacional. 

As entidades afirmam que o texto põem “em risco a privacidade e segurança de milhões de cidadãos” e que a lei pode “provocar um impacto desastroso e amplo para milhões de brasileiros e para a economia do país, afetando significativamente o acesso à rede e direitos fundamentais como a liberdade de expressão e a privacidade dos cidadãos e cidadãs na Internet”.


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