20/04/2024 - Edição 540

Brasil

Remdesivir: por que o único remédio aprovado para coronavírus deve chegar com preço exorbitante ao Brasil

Publicado em 18/06/2020 12:00 -

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“Hoje nós temos um remédio com potencial para acabar com a epidemia do HIV. O problema é que a Gilead é a única proprietária, e ela cobra preços astronômicos.” A crítica feita pelo deputado Elijah Cummings, durante audiência no Congresso americano em 2019, tinha como alvo a farmacêutica Gilead Sciences, fabricante de remédios contra HIV, hepatite C e, agora, a covid-19. O alerta de um ano atrás explica por que a maioria da população mundial, incluindo os brasileiros, terá acesso limitado ao único medicamento aprovado até agora por alguns países para o novo coronavírus, o remdesivir

O problema, como disse o deputado, é que o remédio pertence à Gilead, empresa norte-americana conhecida por tirar o máximo proveito de suas patentes, mesmo quando isso impede o tratamento de milhões de pessoas. As graves acusações contra o laboratório vão desde infração da lei de patentes nos Estados Unidos, a abuso de monopólio e cobrança exorbitante de preços na Europa, África, Ásia e Américas.

A patente da Gilead garante exclusividade de venda do remdesivir por 20 anos. Mas a farmacêutica vem sendo pressionada a dividir a patente com o governo dos Estados Unidos, já que ao menos US$ 70 milhões em impostos dos norte-americanos foram aplicados no desenvolvimento da ampola – pesquisadores ligados a órgãos públicos testaram a droga tanto para combater o ebola como para outros tipos de coronavírus. No caso da covid-19, a droga não cura a doença nem diminui a letalidade, mas reduz o tempo de internação hospitalar – um ganho significativo na maior crise de saúde em 100 anos.

O dinheiro dos contribuintes e os esforços dos cientistas do governo foram essenciais para o desenvolvimento do remdesivir, afirma Peter Maybarduk, diretor do programa de acesso a medicamentos da organização Public Citizen. “A sociedade teve participação e é também dona da tecnologia. Mas, devido ao lobby farmacêutico em Washington [capital norte-americana], o governo não tomou medidas para assegurar preços justos e amplo acesso à medicação no mundo”, disse ele à Repórter Brasil.

A Gilead nega todas as acusações e afirma ser a proprietária legítima de seus produtos – ainda que tenha recebido investimentos públicos milionários para as pesquisas. A companhia garante que o remdesivir estará disponível para todos os pacientes do mundo. Mas a preocupação de ativistas e organizações de saúde é o preço que a firma vai cobrar pelo remédio mais comentado do momento, que já foi aprovado para uso em pacientes graves nos EUA, Reino Unido, Japão, Índia, Singapura e Coreia do Sul.

O custo de fabricação de cada ampola é de aproximadamente 93 centavos de dólar (US$ 0,93), segundo pesquisadores da Universidade de Liverpool (Reino Unido), que consideraram na análise o valor da matéria-prima do produto. Um tratamento de dez dias custaria, assim, menos de US$ 10 (cerca de R$ 50) por paciente.

Porém, o executivo da Gilead Andrew Dickinson calcula que o preço do tratamento poderia chegar a US$ 30 mil (R$ 150 mil), se fosse levado em conta apenas o custo-efetividade do remédio – parâmetro da indústria para precificar medicamentos. No entanto, em entrevista no mês passado, ele afirmou que o preço final será uma “fração” dos US$ 30 mil e que o remdesivir é uma “oportunidade de negócio para vários anos”.

O Instituto de Revisão Clínica e Econômica (ICER, na sigla em inglês), especializado nesse tipo de análise, publicou estudo indicando que o preço mais provável da droga durante emergência de saúde seja de US$ 4.460 por tratamento. A esse valor, seria necessário R$ 1,1 bilhão para tratar os 52 mil brasileiros que já se hospitalizaram até agora em decorrência da covid-19.  

O preço do remdesivir nos Estados Unidos deve ser revelado nas próximas semanas, já que o estoque da Gilead, atualmente em 250 mil tratamentos, foi boa parte doado ao governo americano pela farmacêutica e deve durar apenas até o início de julho. O valor nos EUA serve de parâmetro para negociações em outros países. A demanda internacional é elevada, afirma Dickinson, destacando que já há pedidos de países que planejam montar “estoques nacionais”.

‘A pílula de mil dólares’

A Gilead tem uma extensa ficha corrida de polêmicas em razão do alto preço de suas medicações. Na audiência pública de maio de 2019 com os deputados americanos, o CEO da firma, Daniel O’Day, foi convocado para explicar o alto preço do remédio anti-HIV truvada. Lançado nos EUA em 2004 a US$ 800 por mês de tratamento, o custo atual é de aproximadamente US$ 1.800. No Brasil, o preço pago pelo Ministério da Saúde é de R$ 87.

O baixo valor fora dos Estados Unidos pressiona ainda mais o laboratório em seu país de origem, já que as pesquisas do truvada, assim como o remdesvir, também receberam investimentos públicos, da ordem de US$ 15 milhões. O Centro de Controle e Prevenção a Doenças (CDC), órgão do governo americano, possui inclusive patentes do remédio. 

“Milhões em impostos, bilhões em lucro”, resumiu o democrata Elijah Cummins na sessão de 2019, ao lembrar que a Gilead faturou US$ 36 bilhões só com o truvada durante 15 anos de vendas no mundo. O’Day confirmou a cifra, mas não disse uma palavra a respeito dos investimentos públicos. 

“A política de preços da Gilead e de outras farmacêuticas não está diretamente relacionada aos custos com pesquisa e desenvolvimento e não reflete a essencial contribuição financeira da sociedade no desenvolvimento dos produtos”, diz Maybarduk, do Public Citizen. “As pessoas acabam pagando duas vezes: primeiro como contribuintes, com o dinheiro aplicado nas pesquisas. E, depois, como pacientes, ao comprar os medicamentos”, afirma Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual.

Em novembro passado, o governo americano processou a Gilead por infração da lei de patentes, medida rara nos EUA contra uma empresa privada. A disputa envolve a propriedade do truvada como tratamento preventivo: ao ser usado por pessoas sem HIV mas expostas ao vírus, o remédio consegue evitar a infecção em 90% dos casos.

O jeito Gilead de fazer negócios também é contestado por pacientes de outras doenças. Em 2014, o laboratório lançou uma droga revolucionária contra a hepatite C, que aumentou as chances de cura de 50% para mais de 90%. O custo inicial, porém, era de US$ 84 mil por tratamento. 

As críticas contra a “pílula de mil dólares”, como ficou conhecido o sofosbuvir, levaram o Senado dos Estados Unidos a abrir uma investigação sobre a política de preços da empresa. O relatório final concluiu que a Gilead busca maximizar lucros sem levar em consideração a saúde dos pacientes. Os senadores descobriram que, após um ano de vendas no país, a empresa já tinha recebido US$ 1 bilhão dos planos de saúde americanos, mas apenas 2,4% dos pacientes com hepatite C receberam o tratamento.  

A estratégia foi diferente em países de renda mais baixa e com menor potencial de retorno financeiro. O Egito se tornou um exemplo mundial de combate à hepatite C após tratar 1,6 milhão de pacientes em três anos. Um dos segredos foi, num primeiro momento, negociar com a Gilead o tratamento 99% mais barato do que nos Estados Unidos (a US$ 900). Em seguida, o país africano negou ao laboratório a patente do sofosbuvir. O preço do tratamento caiu, assim, para US$ 84. “Isso mostra como o valor cobrado pela Gilead era extorsivo”, afirma o pesquisador Jorge Bermudez, da Fiocruz, especialista em políticas de acesso a medicamentos.

A droga desembarcou no Brasil ao custo de US$ 7.000 por tratamento, sendo distribuída pelo Ministério da Saúde apenas para os pacientes mais graves. O tratamento, que inclui também outras medicações, atingiu em três anos 100 mil pacientes, diz a pasta – ou 20% de todos os brasileiros diagnosticados com hepatite C. O alto preço do sofosbuvir continua limitando o acesso dos brasileiros, como noticiou a Repórter Brasil no ano passado.

Generosidade ou marketing?

O caso do sofosbuvir desmonta o principal argumento da indústria farmacêutica para cobrar caro por medicamentos patenteados, diz Bermudez, da Fiocruz. “As grandes empresas defendem as patentes como forma de recuperar os gastos com pesquisa. Mas a Gilead não fez nenhuma pesquisa com o sofosbuvir. Ela comprou por US$ 11 bilhões uma empresa que já tinha o produto. Então colocou um preço elevado e recuperou todo o investimento em menos de três anos”, afirma.

A estratégia de abrir mão da patente em mercados menos lucrativos está se repetindo com o remdesivir, o remédio para covid-19. A Gilead fechou acordo com laboratórios da Índia e do Paquistão para que eles forneçam a droga em 127 países onde a empresa “abriu mão” da patente – as aspas são necessárias porque a Gilead receberá royalties assim que a OMS declarar o fim do estado de emergência.

A generosidade não passa de “marketing”, diz Bermudez, já que os demais países terão de pagar mais caro – compensando esse “prejuízo”. O risco agora é que o remdesivir esteja disponível em nações ricas, que conseguem arcar com os altos valores da Gilead, e também em regiões mais pobres, beneficiadas pela empresa. No meio do caminho ficarão os países de renda média com grandes populações, como os da América Latina, atual epicentro mundial da doença. 

“Embora seja um avanço as farmacêuticas terem programas de acesso [a nações menos desenvolvidas], elas sabem que os grandes mercados estão nos países ricos e de renda média. Há um risco real de o Brasil ficar entre os últimos a receber o remdesivir”, diz o advogado Vitor Ido, pesquisador do South Centre, organização que acompanha políticas de desenvolvimento para o sul global.

Procurada pela Repórter Brasil, a Gilead diz que as patentes não são uma barreira de acesso a suas medicações de HIV e hepatite C nem será um problema no caso da covid-19. “Pelo contrário, a propriedade intelectual permitiu à Gilead licenciar seus medicamentos com qualidade, apoiando o investimento em pesquisa e atuando em parceria com outras empresas na sua fabricação, permitindo assim o acesso da população a medicamentos inovadores”, diz a nota enviada à reportagem. Leia a íntegra da nota aqui.

Lucro ou saúde?

A pressão sobre o setor farmacêutico aumentou durante a pandemia. Israel, por exemplo, decidiu “quebrar a patente” do kaletra, medicação para HIV que também vem sendo testada contra o novo coronavírus. “É a primeira vez que estamos vendo a pressão crescer em países desenvolvidos”, afirmou Ido, do South Centre. “Recentemente houve reformas na legislação da Alemanha, França e Canadá que facilitaram a emissão de licenças compulsórias (quebra de patente).”

Após o anúncio de Israel, a farmacêutica Abbvie decidiu “abrir mão” da patente do kaletra no mundo. A boa ação, contudo, foi vista com reticência por especialistas, já que a medicação é antiga e de baixo retorno financeiro. “O impacto econômico não foi grande para a Abbvie, mas o departamento de marketing deles deve ter ficado feliz com a ação”, destacou Ido.

E há duas semanas, a Costa Rica lançou um movimento para criar um banco voluntário de patentes da covid-19. A ideia é compartilhar as tecnologias de saúde com fabricantes de genéricos. “A OMS reconhece que as patentes são importantes para estimular a inovação, mas neste momento as pessoas devem ser a prioridade”, afirmou o diretor-geral da OMS Tedros Adhanom, que apoia o movimento. A iniciativa foi assinada por 37 países, incluindo o Brasil, mas não conta com apoio dos países-sede das grandes farmacêuticas, como Estados Unidos, França, Suíça, Alemanha, Reino Unido, Japão, China e Índia. 

Executivos de grandes farmacêuticas criticaram a proposta. “Isso é uma bobagem e até perigoso. Há um esforço gigantesco neste momento para encontrar uma solução, e nós estamos assumindo riscos ao investir bilhões de dólares [em pesquisa]”, afirmou Albert Bourla, CEO da Pfizer, ao jornal britânico The Telegraph. “Não apoiamos o pool de tecnologia da OMS porque ele não foi testado e propõe uma abordagem única para todo o mundo e não protegeria contra interrupções na cadeia de suprimentos”, disse a Gilead à reportagem. 

A legislação brasileira permite a “quebra de patente” em caso de “emergência nacional” ou “interesse público”, mas isso depende de iniciativa do governo federal. Como a atual gestão desconsidera essa alternativa, 11 deputados apresentaram projeto de lei em março para garantir a “quebra de patente” durante emergências de saúde pública. Até o momento, porém, o projeto não andou.

Um dos principais críticos ao movimento global de solidariedade entre pesquisadores e cientistas por conta da covid-19 é o presidente americano Donald Trump. No mês passado, antes de anunciar a saída dos Estados Unidos da OMS, ele recebeu na Casa Branca O’Day, o CEO da Gilead, para autorizar o uso emergencial do remdesivir nos Estados Unidos.

De novo, nenhuma palavra foi dita sobre os US$ 70 milhões investidos pelo governo americano no desenvolvimento da droga. O’Day anunciou a doação de 1,5 milhão de ampolas aos Estados Unidos. “Uma grande empresa americana”, elogiou Trump. Definitivamente, um grande negócio para a Gilead, que, nos próximos anos, deve vender milhões de ampolas do remdesivir ao redor do mundo.


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