20/04/2024 - Edição 540

Poder

Governo adota tom golpista e volta a colocar em destaque avanço do autoritarismo bolsonarista

Publicado em 05/06/2020 12:00 -

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O vídeo da reunião ministerial do governo Bolsonaro foi divulgado em meados de maio, mas continua a ter desdobramentos. Um dos principais envolve a referência que o presidente Jair Bolsonaro fez ao artigo 142 da Constituição Federal, citando a possibilidade de "intervenção" no país.

"Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil", disse Bolsonaro na reunião.

Depois disso, o artigo começou a ser citado por apoiadores do presidente para defender a tese de que as Forças Armadas seriam uma espécie da mediador da queda de braços entre o presidente e o STF (Supremo Tribunal Federal), que autorizou investigações envolvendo filhos de Bolsonaro. Nessa visão, o presidente poderia convocá-las para intervir no poder judiciário.

O advogado Ives Gandra Martins também defendeu essa tese. No entanto, essa interpretação é considerada totalmente equivocada por juristas e professores de direito não ligados ao governo.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, é outro que segue a linha dos bolsonaristas. No último dia 1º, em participação no programa Conversa com o Bial, da TV Globo, deu sua interpretação para o Artigo 142. “Quando o artigo 142 estabelece que a s Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza” afirmou.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) deixou claro que não vê como papel das Forças Armadas uma interpretação da Constituição para definir quando um Poder invade competência do outro.

“Em que país do mundo as Forças Armadas são elevadas à condição de intérprete da Constituição?”, questionou o ministro durante entrevista para a GloboNews. “Pretender que a Constituição seja interpretada pelas Forças Armadas, ou que decisão do STF seja corrigida por uma interpretação das Forças Armadas me parece uma coisa fora de qualquer esquadro. Me parece uma viagem de lunáticos”, completou.

Um parecer preparado pela presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também aponta para a inconstitucionalidade das propostas de intervenção militar constitucional e da inadequação da perspectiva que associa as Forças Armadas ao “Poder Moderador” da Constituição – com base no famoso artigo 142.

A “tese” de que o STF não é a última instância decisória no país e, em caso de conflito entre poderes, as Forças Armadas entrariam em cena para “repor a ordem” como um poder moderador vem sendo propalada pelo jurista Ives Gandra Martins e compartilhada por apoiadores de Jair Bolsonaro.

O documento, que também é assinado pela Comissão de Estudos Constitucionais da entidade, contesta a interpretação que tem sido aventada de que o artigo conferiria às Forças Armadas poder para “intervir para restabelecer a ordem no Brasil”, atuando, em situações extremas, como Poder Moderador.

Diz a OAB: “Compreender que as Forças Armadas, inseridas inequivocamente na estrutura do Poder Executivo sob o comando do Presidente da República, poderiam intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário para a preservação das competências constitucionais estaria em evidente incompatibilidade com o art. 2º, da Constituição Federal, que dispõe sobre a separação dos poderes”.

A entidade lembra que a própria Constituição afirma que compete ao “Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição.” “Tendo sido esta a disciplina traçada pelo constituinte, inviável a tese da autoridade suprema do Chefe do Poder Executivo e, por maior razão, das Forças Armadas”, explica.

A conclusão do documento é a de que não há “poder moderador” atribuído às Forças Armadas. “É evidente a inconstitucionalidade da proposta de intervenção militar constitucional, com base no art. 142 da Constituição Federal, supostamente voltada a reequilibrar conflitos entre os Poderes”.

Moro

Apenas 40 dias depois de deixar o Ministério da Justiça, Sergio Moro faz uma avaliação ácida do governo do ex-chefe Jair Bolsonaro: "Não é o caso de falar em totalitarismo ou mesmo em ditadura, no presente momento, mas o populismo, com lampejos autoritários, está escancarado", escreveu o agora ex-ministro em artigo no jornal O Globo.

"O quadro é muito ruim", anotou Moro, com caligrafia de candidato à sucessão de 2022. "O populismo é negativo por si mesmo, seja de direita, seja de esquerda. Manipular a opinião pública, estimulando o ódio e divisão entre a população é péssimo. Temos mais coisas em comum do que divergências. Democracia é tolerância e entendimento."

Moro não vê problemas na presença de generais no comando de escrivaninhas do Planalto. Mas critica o uso da farda como vestimenta de assombração. "Não há problema na presença de militares no governo, considerando seus princípios e preparo técnico. Não há espaço, porém, para ameaçar o país invocando o falso apoio das Forças Armadas para aventuras."

Regramento militar

O artigo 142 da Constituição não trata de divisão entre os poderes, mas descreve o funcionamento das Forças Armadas. Segundo constitucionalistas, em nenhum momento ele autoriza qualquer poder a convocá-lo para intervir em outro.

O texto é o seguinte:

"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."

Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas), diz que "essa interpretação de que esse artigo seria uma autorização para uma intervenção militar é absurda".

"É como se a Constituição previsse sua própria ruptura, e logicamente é algo que não faz sentido. É uma interpretação jurídica, política e logicamente insustentável", diz ele.

Uma intervenção militar é uma ruptura da ordem constitucional, explica Dias, porque a separação e independência de poderes e as garantias individuais são as principais bases da Carta.

A análise é mesma de outros juristas ouvidos pela reportagem, como a professora de direito Vania Aieta, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Ela explica que o fato de o artigo estabelecer as Forças Armadas sob a autoridade do presidente da República permite que ele o acione em caso de guerra com outros países, ou em casos como auxílio à grandes eventos, como na Copa do Mundo. Mas não dá à ele o direito de intervir em outros poderes — muito pelo contrário, diz explicitamente que "são instituições nacionais permanentes e regulares" destinadas à "à garantia dos poderes constitucionais", não à intervenção neles.

"É uma compreensão errônea que o presidente tem. Ele não faz uma distinção entre o público e o privado — sempre fala 'meu Exército, meu tribunal, meu procurador-geral', como se fosse incorporado um caráter privado à essas funções, como se estivessem ligadas à pessoa de Bolsonaro, e não ao cargo de Presidente da República", diz ela.

"Bolsonaro não conhece o que é governo e o que é administração pública." Governos são formados por representantes do povo, eleitos a cada quatro anos, e tem caráter transitório. Já a administração pública são as políticas de Estado, ou seja, têm caráter permanente.

"As Forças Armadas pertencem ao Estado brasileiro, não para satisfazer desejos pessoais do presidente", diz Aeita.

A professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Estefânia Barboza reforça essa análise.

"De maneira nenhuma pode-se imaginar que as Forças Armadas são do presidente em proveito dele da família dele. Porque a questão está sendo colocada (e gerando atritos) é a investigação sobre os filhos", afirma.

Não existe Poder Moderador

A fala do presidente e a forma como o artigo tem sido usado por seus apoiadores, diz Roberto Dias, da FGV-SP, tentam fazer parecer "como se houvesse uma previsão constitucional que dá às Forças Armadas a função de um poder moderador".

Para Gandra Martins, em artigo publicado no site Conjur no último dia 28, a Constituição prevê que "se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para reporter, naquele ponto, a lei e a ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante".

Mas juristas não ligados ao governo explicam que a previsão de um poder morador não existe na legislação brasileira há cerca de 200 anos. O Poder Moderador era previsto na Constituição do Império de 1824, e funcionava como mediador entres os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em caso de divergências, dando a última palavra.

"Estamos na vigência da Constituição de 1988, que não prevê um poder que estaria acima dos outros para intermediar. A Constituição não dá às Forças Armadas o poder de intervenção militar em outros poderes", diz Dias. "O presidente tem 200 anos de atraso na sua interpretação da Constituição."

"A Constituição de 1989, explica, prevê a separação dos poderes para haver um controle do poder pelo próprio poder, pela própria interação entre eles. As Forças Armadas não estão nesse jogo, elas não fazem parte do jogo político", explica Dias.

Estefânia Barbosa, da UFPR, diz que justamente por isso o número de militares nomeados para o alto escalão do governo Bolsonaro é "preocupante". "As Forças Armadas não podem ser governo, porque elas tem que ser neutras."

Barbosa explica que não existe previsão na Constituição de o Exército atuar contra o exercício legítimo do Poder Judiciário.

"A possibilidade de um dos poderes convocar as Forças Armadas existe, por exemplo, caso haja um ataque armado de militantes ao Supremo, ao Congresso, à Presidência da República — eles podem chamar para se defender. Mas de maneira nenhuma esse artigo justifica o ataque de um poder ao outro", explica Barbosa, da UFPR.

"Isso é o que acontece em países autoritários, com o regime do ex-presidente Alberto Fujimori no Peru e hoje no regime da Venezuela", diz.

Os constitucionalistas afirmam que existem diversas hipóteses para a interpretação do presidente.

"Ele pode estar juridicamente mal assessorado, com pessoas que escolhem submissão total por focar em um indicação ao Supremo", diz Vania Aeita, da UERJ.

Já Roberto Dias, da FGV-SP, diz que a hipótese mais provável é que o presidente "pretenda dar um verniz de legalidade para uma possível intervenção militar".

"Uma intervenção com essa justificativa seria um golpe sem dizer que é golpe", afirma.

"É o que explicam diversos estudiosos sobre como governos derrubam a democracia sem golpe", diz Dias, citando o professor de Harvard Steven Levitsky, autor do livro Como as Democracias Morrem.

"Você vai corroendo a democracia por dentro, destruindo as instituições, dando verniz de legalidade. Mas é evidente que a Constituição não está prevendo sua autodestruição".


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