19/04/2024 - Edição 540

Poder

O fator Mourão

Publicado em 05/06/2020 12:00 -

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O vice-presidente, general Hamilton Mourão, classificou os pedidos de fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e de intervenção militar nos atos golpistas em apoio a Jair Bolsonaro como “liberdade de expressão” em entrevista ao jornal O Estado de SP na última quinta-feira (4).

“Dentre os que se manifestam a favor do presidente, é óbvio que tem uma turma ali que apresenta as bandeiras que não são as mais corretas. Então, a bandeira de fechamento do STF, pressão em cima de determinados parlamentares ou ministros do STF, intervenção militar: isso é liberdade de expressão”, disse o vice-presidente, que afirma não ver “enquanto as manifestações a favor do presidente se mantiverem dentro da lei e da ordem, que elas sejam efetivamente antidemocráticas”.

“A partir do momento que se agredir pessoas, ministros do STF, parlamentares, depredar patrimônio público, aí barras da lei para eles”, afirmou.

Mourão ainda minimizou a encenação fascista do grupo “300 do Brasil”, liderado por Sara Winter, e relacionou o movimento aos “carecas do ABC”.

“Esses existem no Brasil há mais de 20, 25 anos. Vamos lembrar dos carecas do ABC e outros que já ocorreram ao longo da nossa história. São grupos extremamente minoritários. Assim como os grupos de extrema esquerda, os grupos de extrema direita são extremamente minoritários. Quando olhamos, por exemplo, aquele grupo (‘300 do Brasil’, da ativista Sara Winter, que foi com tochas e máscaras para a frente da Corte) que foi citado fazendo manifestação na noite de sábado, na frente do STF, aquilo não enche um caminhão. Enquanto mantiverem esse tipo de manifestação, é nada mais, nada menos, do que expressão da sua opinião”.

Um dia antes das declarações acima, Mourão já havia, em artigo publicado no mesmo jornal, classificado os participantes de movimentos de rua pró-democracia de “delinquentes”

“A apresentação das últimas manifestações contrárias ao governo como democráticas constitui um abuso, por ferirem, literalmente, pessoas e o patrimônio público e privado, todos protegidos pela democracia. Imagens mostram o que delinquentes fizeram em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Registros da internet deixam claro quão umbilicalmente ligados estão ao extremismo internacional”, afirmou o vice-presidente, na mesma linha que seu chefe supremo, o presidente Bolsonaro, para quem os manifestantes são “terroristas”.

“Quem promove o caos, queima a bandeira nacional e usa da violência como uma forma de ‘protestar’ é terrorista sim. Manifestante, contra ou a favor do governo, é outra coisa”, disse o presidente, que têm tentado seguir o exemplo do presidente norte-americano, Donald Trump, e classificar grupos antifascistas como “terroristas”. Há um projeto do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) neste sentido. Grupos com tendências paramilitares que defendem Bolsonaro, como o “300 pelo Brasil”, não são enquadrados da mesma forma.

No mesmo artigo, Mourão chegou a “repreender” o ministro Celso de Mello, do STF, por sua carta aberta apontando semelhanças entre o momento político atual e a Alemanha de Hitler.

Novo tom

O novo tom adotado pelo vice-presidente é fruto da possibilidade de que avance um processo na Justiça Eleitoral para cassar a chapa Bolsonaro-Mourão.

O inquérito das fake news, que corre no Supremo, mas deve abastecer com provas as ações no TSE, tira o sono da família Bolsonaro. E é por isso que Mourão fez uma guinada “bolsonarista” em seus últimos manifestos públicos: uma coisa é ficar olímpico e falar em nome da democracia quando o risco maior é de impeachment, processo que leva o vice-presidente a assumir. Outra é ser colocado no mesmo balaio num processo de cassação por financiamento ilegal de campanha por empresários para comprar disparos de fake news — linha que pode ser seguida pela Justiça Eleitoral.

Mourão vinha tentando se mostrar leal a Bolsonaro, mas diferente. Daí porque seus artigos, entrevistas e caras e bocas em reuniões públicas sempre denotassem certa ironia ou condescendência diante dos arroubos do presidente. Daí também por que ele insistisse em dar declarações dissociando as Forças Armadas do governo e afastando o risco de intervenção militar ou autogolpe — iniciativa que ele defendeu como possível durante a campanha de 2018, é sempre importante lembrar.

Setores civis do governo e expoentes de diversos partidos do Congresso, além de ministros do Supremo, avaliam que, caso as investigações no STF (são várias) e no TSE avancem e convirjam para o afastamento da chapa e novas eleições, Mourão se unirá a Bolsonaro, aí sim com a participação dos militares, para defender o governo. E os protestos de rua podem ser a desculpa ideal para uma ação nesse sentido.

Reações

Políticos da oposição utilizaram suas redes sociais para criticar o posicionamento de Mourão. O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) criticou o silêncio do vice-presidente sobre os atos que vêm acontecendo contra as instituições e diz que a saída é “a anulação das eleições 2018 por fraudes”. Para o ex-candidato à Presidência Guilherme Boulos (PSOL), o artigo desfez a imagem de mediador que o vice estava tentando construir e completou que as falas do general não vão “intimidar a lura pela democracia”. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) afirmou que Mourão é um “autoritário que resolveu tirar o seu disfarce equilibrado”. Para Ivan, o artigo mostra que “o golpismo é consenso no Planalto”. “O General Mourão mostra suas garras contra aqueles que lutam pela democracia. Ele se cala quando Bolsonaristas batem em jornalistas e ameaçam ministros do Supremo Tribunal Federal. A saída é a anulação das eleições de 2018 por fraudes e a realização de novas eleições”, disse Paulo Teixeira.

Análise

A forma como o vice-presidente Hamilton Mourão categoriza recentes manifestações contra e a favor do governo em seu segundo artigo sobre a conjuntura política brasileira no Estadão em duas semanas denota dois pesos e duas medidas do general na análise de como o presidente Jair Bolsonaro e seu governo e a oposição, do outro lado, atuam no atual momento do País.

Dois pesos e duas medidas nunca são um bom ponto de partida para análise política. Quando partem de um vice-presidente da República no momento em que o titular está sob questionamento e a própria chapa presidencial pode enfrentar problemas na Justiça Eleitoral é um pouco mais preocupante.

Para Mourão, manifestantes que tomaram as ruas em São Paulo no domingo passado e em Curitiba na última segunda-feira são baderneiros, ligados a movimentos extremistas internacionais, dispostos a incendiar as ruas do País a partir de uma insensata “extrapolação” de declarações do presidente e de seus apoiadores. Seriam “incensados” irresponsavelmente pela imprensa e pela oposição, com o claro objetivo de desestabilizar o governo e “importar” para o Brasil conflitos de outros países, como os raciais, que nada têm a ver conosco, uma vez que teríamos uma tradição de cordialidade racial. Esses manifestantes, diz Mourão, devem ser conduzidos “debaixo de vara” aos tribunais, sob força da lei e da ordem.

Ainda na análise que faz das críticas ao governo, diz o general que não é “razoável” comparar o momento atual com a ditadura, que ele chama de regime, que se encerrou há 35 anos, e que também seria uma fantasia dizer que as Forças Armadas hoje exercem poder político, a despeito da quantidade de patentes em cargos de livre nomeação, do primeiro ao quinto escalão da administração direta e indireta.

Já os abusos de Bolsonaro e suas investidas contra os Poderes, a imprensa, as liberdades e as instituições seriam “exageros”, e as mensagens claramente golpistas presentes em atos governistas seriam “retóricos impensadamente lançados contra as instituições do Congresso e do Supremo Tribunal Federal”.

Vamos aos pesos e medidas. Os atos da oposição são recentes e, até aqui, se contam em dois dedos de uma mão. O de São Paulo, de fato, começou pacífico, e só descambou para a violência depois que bolsonaristas foram confrontar os torcedores organizados. Concordo com Mourão que há de se colocar em dúvida intenções democráticas por parte de torcidas organizadas historicamente associadas à violência e ao vandalismo, mas daí a ver apenas nos que são contrários ao governo a explicação para a depredação é fazer o que acusa os “sessentões e setentões”, sua geração, aliás, de fazer.

Já os atos que pedem intervenção militar e fechamento do Congresso e do STF acontecem semanalmente desde março, com a participação presencial do presidente da República e de ministros, inclusive militares, seja abrindo as portas dos palácios para eles ou usando bens públicos, como carros e helicópteros, para prestigiá-los e registrá-los. As palavras usadas nesses atos não são “impensadas”, e refletem por parte dos apoiadores de Bolsonaro o desejo de reviver a ditadura que Mourão aponta na imprensa e em ministros do STF, que apenas registram e contextualizam os fatos, no caso do jornalismo, e reagem e exercem seu poder de freios e contrapesos, no do Judiciário.

O mais preocupante do texto de Mourão é que ele use os protestos que começam a pipocar no País como pretexto para reações mais duras por parte do governo. Essa intenção permeia todo o artigo e fica patente quando ele diz que “a prosseguir a insensatez, poderá haver quem pense estar ocorrendo uma extrapolação das declarações do presidente da República ou de seus apoiadores para justificar ataques à institucionalidade do País”.

Os ataques acontecem, e partem sobretudo do presidente e seus apoiadores. Querer inverter a narrativa, como a justificar medidas autoritárias de Bolsonaro, é grave e perigoso.

A raiva foi uma grande aliada de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. Mas perdeu a serventia em 1º de janeiro de 2019. Depois da posse, a raiva virou uma perda de tempo para Bolsonaro. Ao satanizar o pedaço do asfalto que se opõe ao governo, classificando genericamente de "marginais", "terroristas" e "viciados" todos os insatisfeitos, o presidente demonstra não ter percebido que sua obrigação agora é fornecer resultados e esperança.

Bolsonaro insiste na raiva porque imagina ser possível reproduzir a fórmula de sucesso. Como candidato, bastava repetir que tiraria a economia do buraco, dissolveria a coalizão com corruptos e governaria com o povo. Como presidente, o mesmo Bolsonaro minimizou uma pandemia que virou a agenda econômica do avesso, coligou-se com o centrão e acentuou a divisão da sociedade.

Faltam saúde, emprego e decência. Admita-se que o presidente não é responsável por todos os problemas. Mas ele tem a responsabilidade de se apresentar como parte da solução. E a demonização indiscriminada dos insatisfeitos não salva vidas, não cria empregos nem afasta dos cofres públicos os apadrinhados dos prontuários do centrão.

Num país normal, ninguém desafiaria o vírus em manifestações de rua. Mas o Brasil virou uma espécie de monarquia na qual reina a insensatez. O monarca prestigia aglomerações em que os súditos sacodem faixas defendendo o fechamento dos outros Poderes. E trata como bandidos todos os que ousam se manifestar contra.

Numa democracia convencional, a ocupação do asfalto é um direito do cidadão. E a prisão dos bandidos que descerem ao meio-fio é um dever do Estado. O resto é insensatez e desperdício de tempo de quem ainda não se deu conta de que o excesso de raiva tornou-se apenas uma nova modalidade de tiro contra o próprio pé.


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