24/04/2024 - Edição 540

Poder

Ricardo Salles entra na mira do MPF

Publicado em 29/05/2020 12:00 -

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O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, entrou na mira do Ministério Público Federal (MPF) depois de defender a mudança de “regramentos” ambientais com canetadas. A 4ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF enviou um ofício e solicitou providências cabíveis à Procuradoria Geral da República (PGR) e à Procuradoria da República no Distrito Federal, elencando diversas práticas questionáveis, por parte do Ministério do Meio Ambiente, que estariam prejudicando o setor. Com relação ao ministro, apontam a possibilidade, por exemplo, de uma ação por improbidade administrativa.

A iniciativa acontece em resposta à desastrosa reunião ministerial, realizada no dia 22 de abril, quando Salles defendeu “passar reformas infralegais de regulamentação e simplificação” enquanto a imprensa está distraída com a Covid-19, a já conhecida fala da boiada.

O autor do pedido, o coordenador da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão e subprocurador-geral da República, Nívio de Freitas Silva Filho, enfatiza que a política ambiental comandada por Salles vem contribuindo para resultados desastrosos, como aumento do desmatamento e a ocorrência de crimes ambientais.

“Apenas para elencar algumas das condutas praticadas no âmbito da política ambiental do país comandada pelo representado, apresenta-se a descrição resumida de algumas que deram causa direta e indiretamente ao aumento do desmatamento, das queimadas, da ocupação de terras públicas e de diversos outros crimes ambientais. Tais atos possuem origem no próprio Ministério do Meio Ambiente e nos demais órgãos que conduzem a política ambiental do país a partir das diretrizes, como agora ficou bem evidenciado na supramencionada Reunião, do Ministério titularizado pelo representado”.

Entre essas ações enumeradas no ofício, estão a desorganização administrativa que acarreta danos irreversíveis ao meio ambiente, aumento do desmatamento e desperdício de recursos públicos; a liberação da exportação de madeira nativa; exonerações de quadros técnicos e nomeações de profissionais sem qualificação apropriada para cargos que exigem qualificação; visita do ministro a área embargada pelo Ibama com a sinalização e simbolização de que os controles ambientais seriam fragilizados, entre outros.

O subprocurador destaca ainda que as declarações do ministro “revelam clara intenção de promover a desregulamentação do Direito Ambiental pátrio, oportunamente no período da pandemia, galgando-se do foco em problemas a ela associados pela mídia e população, em flagrante infringência aos princípios da Administração Pública da moralidade, eficiência, legalidade, impessoalidade e publicidade”. 

Reação Internacional

As declarações de Salles também repercutiram na Europa. Parlamentares europeus criticaram a sugestão do ministro brasileiro para flexibilizar ainda mais as leis ambientais do Brasil.

Para a eurodeputada alemã Anna Cavazzini, do Partido Verde, as declarações de Salles  no vídeo são "a confirmação inconcebivelmente descarada de algo que o governo Bolsonaro está fazendo há semanas: desmantelando passo a passo os regulamentos de proteção da Amazônia, enquanto o mundo combate o coronavírus".

Cavazzini, que é porta-voz de política comercial dos Verdes europeus, afirma que esse procedimento desrespeita princípios democráticos básicos num momento no qual a situação social no Brasil se deteriora e perante a ameaça de um colapso ecológico na iminente temporada de queimadas no país. Diante disso, a eurodeputada defende que o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia (UE) não seja ratificado.

"O acordo aumenta a pressão sobre a Amazônia e a política de Bolsonaro já viola todas as obrigações ambientais previstas no pacto", acrescenta Cavazzini, que também é vice-presidente da Delegação Europeia para as relações com o Brasil.

A declaração de Salles, no entanto, não surpreendeu a deputada Yasmin Fahimi, presidente do Grupo Parlamentar Teuto-Brasileiro no Bundestag (Parlamento alemão)."A destruição da Amazônia e a expulsão dos povos indígenas tem sido promovida sistematicamente pelo governo desde o início do mandato de Bolsonaro", argumenta.

A deputada do Partido Social-Democrata (SPD) afirma, porém, que a entristece muito ver como "aumentou a ameaça aos povos indígenas da Amazônia à sombra da pandemia do novo coronavírus". "Com sua política, Bolsonaro arrisca conscientemente a extinção de povos indígenas inteiros", acrescenta.

Fahimi também observa com preocupação o enfraquecimento de órgãos ambientais no Brasil, como o Ibama, o aumento constante do desmatamento, e iniciativas governamentais como a polêmica lei de regularização fundiária, conhecida como "MP da grilagem", cujo decreto perdeu a validade na semana passada por não ter sido votado na Câmara dos Deputados.

"De fato, nosso projeto comum de proteção da Amazônia entrou em colapso. Bolsonaro é uma ameaça à democracia, ao Estado de Direito e à sobrevivência da Amazônia", pontua a deputada da legenda que integra a coalizão que governa a Alemanha ao lado da União Democrata-Cristã (CDU), da chanceler federal Angela Merkel, e da União Social-Cristã (CSU).

Já o deputado alemão Peter Weiss, da CDU, destaca que não é aconselhado não comunicar abertamente decisões políticas controversas. "Os antigos romanos já sabiam disso", diz e acrescenta que "quem deseja aceitação de suas opiniões e decisões precisa comunicar e discuti-las com os outros".

Weiss, que também faz parte do grupo parlamentar alemão responsável por cultivar as relações com o Congresso brasileiro, lembra ainda que, no ano passado, a "Alemanha deixou claro que considera preocupante a política ambiental brasileira também em relação à proteção ambiental global".

"O Brasil corre o risco de perder a reputação que construiu durante anos", destacou o deputado que é presidente do grupo de trabalho América Latina da bancada da CDU/CSU no Bundestag.

Para o deputado alemão e porta-voz de política externa do Partido Verde, Omid Nouripour, as declarações mostram um "cinismo misantropo" quando um ministro acredita que uma doença que matou milhares no país "seria uma boa oportunidade" para enfraquecer a proteção ao meio ambiente. 

"As declarações de Salles deixam mais uma vez claro que para o governo brasileiro todos os meios são válidos para sacrificar a Floresta Amazônica em prol dos interesses do lobby do agronegócio e da mineração", afirma Nouripour.

O deputado alemão Gero Hocker, do Partido Liberal Democrático (FDP) e integrante do Grupo Parlamentar Teuto-Brasileiro, diz ser "desonesto sacar exigências políticas obsoletas sob o disfarce da covid-19 para aprová-las por debaixo do radar da atenção geral". Hocker acrescenta que a "proteção ao meio ambiente não deve ser atropelada, pois supostamente talvez ninguém estaria prestando a atenção".

O deputado Alexander Ulrich, da legenda A Esquerda, classifica a situação no Brasil como "um cenário tenebroso" com Bolsonaro ignorando as vítimas da covid-19 e Salles tentando usar a pandemia para minar leis de proteção ambiental.

"As declarações de Salles refletem uma política ambiental misantropa e racista, que é seguida por Bolsonaro desde o início do seu mandato. Resta esperar que grupos sociais democráticos e progressistas consigam em breve contrariar essas forças destruidoras e autoritárias com êxito", diz Ulrich, que também faz parte do Grupo Parlamentar Teuto-Brasileiro.

Já o eurodeputado português Manuel Pizarro, do grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu, destacou que a pandemia reforça a importância de se proteger o meio ambiente e a biodiversidade. "Combater as alterações climáticas constitui, cada vez mais, uma prioridade para a humanidade. Quaisquer medidas em sentido contrário são erradas. Todos pagaremos muito caro, no futuro, esse eventual erro", disse o parlamentar que também é vice-presidente da Delegação Europeia para as relações com o Brasil.

Questionado sobre as declarações de Salles, o Ministério alemão do Meio Ambiente afirmou que não iria comentar as falas, porém, lembrou que a liberação da verba da Alemanha destinada para a Amazônia, suspensa desde agosto, depende de um entendimento comum de ambos os governos sobre o que é necessário para a proteção do clima e da biodiversidade. "Infelizmente, ainda estamos muito longe disso", disse um porta-voz da pasta.

Denúncia

A Humans Right Watch denunciou o desmatamento ilegal na Amazônia à Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). A entidade enfatizou que o governo suspendeu multas por desmatamento desde outubro de 2019. Apenas cinco multas ambientais foram cobradas desde então.

A entidade também apontou dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que mostram um aumento de 53% no desmatamento da Amazônia entre outubro de 2019 e abril de 2020, se comparado ao período anterior.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu um comunicado no último dia 26, no mesmo sentido da denúncia. "Apenas durante o período da pandemia, o ministro do Meio Ambiente: (i) demitiu o diretor de proteção ambiental do Ibama e dois servidores que chefiavam as fiscalizações contra a atuação de garimpeiros em terras indígenas do Pará; (ii) anulou a regra que definia que o Ibama deveria autorizar a saída dos carregamentos de madeira exportados da Amazônia em 2019; e (iii) pressionou os parlamentares para a aprovação da MP 190, conhecida como 'MP da grilagem', recentemente transfigurada no PL 2633/2020", apontou a entidade.

Desmatamento ilegal

Um relatório inédito mostra que 99% do desmatamento no Brasil em 2019 foi ilegal. O estudo foi produzido pela Mapbiomas, iniciativa que reúne dezenas de entidades, entre universidades, ONGs e empresas de tecnologia.

O estudo conseguiu analisar pela primeira vez todas as imagens de satélites dos alertas de desmatamento gerados satélites de várias fontes, entre elas o Inpe. Chegou a 56 mil pontos de desmatamento por todo o país, onde comprova o antes e o depois do crime ambiental.

O desmatamento atingiu todos os biomas do país, e o seu maior impacto foi no Cerrado e na Amazônia. “Noventa e nove porcento de todo o desmatamento que aconteceu no Brasil não é regular: não tinha autorização ou estava em áreas que jamais poderiam ter sido desmatadas. Em outras palavras, a gente poderia dizer que são ilegais”, disse Tasso Azevedo, coordenador-geral da MapBiomas.

Do total de alertas, 11% foram registrados em unidades de conservação e quase 6% em terras indígenas.

Na região de Altamira, no Pará, estão as terras indígenas mais invadidas por madereiros. Também lá, os satélites identificaram o maior desmatamento do Brasil.

Os alertas foram emitidos enquanto o desmatamento acontecia, mas mais de 4 milhões de árvores foram mortas sem que os criminosos fosse impedidos.

Só na terra indígena Apyterewa foram 479 alertas. Várias terras invadidas tem índios isolados extremamente vulneráveis. Na Floresta Nacional do Jamamxim, no Pará, foram 162 alertas.

Em nota, a Secretária do Meio Ambiente do Pará informou que deve iniciar em junho ações de cmbate ao desmatamento, e que aplicou multas de mais de R$ 222 milhões no ano passado.

A escala da destruição derruba o mito de que são pequenos produtores que derrubam a floresta para sobreviver. “Uma atividade familiar não é capaz de derrubar mais que dois ou três hectares em um ano. É uma atividade muito penosa e trabalhosa, quando é manual”, afirmou Azevedo.

Segundo Azevedo, a escala da devastação exige máquinas, tratores e caminhões. A lei permite que esses equipamentos sejam destruídos, mas o presidente Bolsonaro se manifestou contra em várias ocasiões.

Análise

"Ir passando a boiada." O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, acabou por prestar um enorme serviço ao seu país por conta de sua já antológica participação na não menos antológica reunião ministerial de 22 de abril. Ele sugeriu a Jair Bolsonaro aproveitar que a imprensa está preocupada com o combate ao coronavírus para enfraquecer uma série de regras, como as de proteção ambiental e de preservação do patrimônio histórico.

"Nós temos a possibilidade, nesse momento em que a atenção da imprensa tá voltada quase que exclusivamente pro covid (…), de ir passando a boiada e mudando o regramento", afirmou Salles, como pode ser visto no vídeo divulgado, nesta sexta (22), após decisão do ministro Celso de Mello, do STF. Em outras palavras, aproveitar que o país está preocupado com uma pandemia assassina que já ceifou mais de 21 mil vidas e deve matar muito mais para fazer o que não serias possível em tempo de paz.

Salles prestou dois favores com suas declarações que vieram a público: tirou a estratégia do governo das sombras e a levou para o centro da pauta nacional e mostrou que ela é real e não "paranoia de ongueiro" – como parte do agronegócio, das mineradoras e dos militares gosta de afirmar.

Tudo o que ele disse não é novidade para organizações e movimentos de defesa dos direitos ambientais, sociais, trabalhistas, culturais, indígenas que estão diuturnamente alertando a sociedade de que o governo Jair Bolsonaro tem se aproveitado do foco da sociedade e da imprensa na tragédia para tentar reduzir o que ele considera entraves ao crescimento. Que, na realidade, são proteções à qualidade de vida no país.

Como ele mesmo cita na gravação, durante a pandemia, um despacho emitido por ele determinou que é o Código Florestal e não a Lei da Mata Atlântica que deve ser seguido por propriedades rurais nesse bioma: "essa semana mesmo nós assinamos uma medida a pedido do Ministério da Agricultura, que foi a simplificação da lei da Mata Atlântica, pra usar o Código Florestal". Com isso, abriu caminho para suspender multas, embargos, processos por desmatamento ilegal. O Ministério Público Federal entrou com ação contra a decisão.

Um detalhe: no vídeo, Salles afirma que a medida da Mata Atlântica foi assinada "a pedido do Ministério da Agricultura", da ministra Tereza Cristina.

Também houve demissões do Ibama e reestruturações no ICMBio que significaram redução no poder de monitoramento e controle por parte do Estado. Menos fiscalização sobre a região Amazônica ajuda na explosão de desmatamento na Amazônia: a taxa já subiu quase 64% em abril deste ano em comparação ao mesmo mês no ano passado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Vale lembrar que desmatador, grileiro e escravagista não respeitam quarentena.

O ministro se manifestou após a divulgação do vídeo, dizendo que sempre defendeu a "desburocratização" e a "simplificação" de normas. Pura tática de dissuasão. A questão não é propor mudanças – ele pode defender medidas anacrônicas de forma transparente, usando mecanismos adequados, como audiências públicas. O que está sendo discutido é que, de uma forma antidemocrática, ele propôs passar tudo na surdina enquanto pessoas morrem de covid-19.

A informação sobre esse tipo de comportamento do governo rompe fronteiras: a declaração de Salles pegou mal lá fora. Um representante de um fundo soberano multibilionário europeu comentou com a coluna, em condição de anonimato, que viu com preocupação a declaração. Pois se o país caminhar para redução de proteção ao meio ambiente ou do combate ao trabalho escravo contemporâneo, isso vai significar retirada de investimentos deles do Brasil.

Ou seja, perda de dinheiro para o Brasil num momento em que os países vão se estapear por recursos internacionais a fim de promover a sua retomada.

Logo depois de sua fala, Gustavo Montezano, presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, apoiou a declaração do colega. "É um momento muito oportuno pra gente aproveitar isso, e isso faz uma baita diferença no preço de um projeto, na velocidade, faz muita diferença. Então eu subscrevo aqui as palavras ministro Salles", disse.

Ou seja, a direção de um dos principais instrumentos de investimento público também se manifestou a favor de usar a pandemia para mudar regras de proteção ambiental e social.

No vídeo da reunião, Ricardo Salles apresenta, por fim, a estratégia jurídica para isso: "deixar a AGU [Advocacia Geral da União] de stand by pra cada pau que tiver".

Parece bagunça. Mas tem método. E bem organizado.


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