19/04/2024 - Edição 540

Poder

Hostilizar a imprensa se tornou uma política de Estado no Brasil de Bolsonaro

Publicado em 29/05/2020 12:00 -

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Entre as diretrizes de gestão do governo do presidente Jair Bolsonaro há uma vertente específica para o tratamento à imprensa. A política de hostilizar se tornou praxe, com incentivo do próprio chefe do Executivo. As ferramentas para criar um ambiente adverso vão desde grosserias, como um “cala a boca” para um repórter, até uma ameaça demissão ao subordinado que “for elogiado por Folha ou Globo”. Também estão entre os instrumentos de coação o desrespeito à Lei de Acesso à Informação e o estímulo à desinformação, com disseminação de informações falsas ou distorcidas.  

A relação entre veículos de comunicação e governos sempre foi de tensão, pela própria natureza da atividade de — entre outros — exigir prestação de contas, no entanto, por causa da maneira como o governo lida com a imprensa, houve um acirramento.

“O que a gente vê agora é basicamente uma política de Estado de hostilidade à imprensa, já que é feita de maneira sistemática, regular, pelo próprio presidente. Isso eleva a questão da violência a outro patamar”, diz Thiago Firbida, coordenador do programa de Proteção e Segurança da Artigo 19, ONG internacional que defende e promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação.

Para Firbida, quando a cúpula do Estado passa a ter um discurso público sistemático de hostilidade isso também é uma mensagem geral à sociedade de que esse comportamento é algo legítimo. “Portanto gera uma noção social que pode permitir, sim, o escalonamento da violência”, acrescenta. 

As agressões são em sua maioria verbais, com episódios pontuais de ataques físicos por parte de militantes. A possibilidade de que essas agressões verbais se escalonem foi um dos motivos que fizeram com que parte dos veículos de comunicação suspendessem a cobertura jornalística na porta do Palácio do Alvorada. É lá, cercado de apoiadores, que o presidente tem concedido entrevistas ou feito pronunciamentos.  

No último dia 25, o trabalho dos repórteres que cobrem a agenda do presidente contou, como tem sido recorrente, com uma enxurrada de agressões verbais de militantes, após incentivo do presidente. “No dia que vocês tiverem compromisso com a verdade, eu falo com vocês de novo”, disse Bolsonaro. Em seguida, os apoiadores se sentiram no direito de partir para cima dos jornalistas. Veio, então, uma sequência de xingamentos. “Escória! Lixos! Ratos! Ratazanas! Bolsonaro até 2050! Imprensa podre! Comunistas.”

Para Bolsonaro, boa parte da imprensa deixar a cobertura é “vitimismo”. “Globo, Folha e semelhantes decidiram não ir mais ao Alvorada para, em seguida, distorcer o que falo. Que pena!”, afirmou no Twitter. 

Além de o presidente não ver violência nas agressões que profere aos jornalistas e nas que seus apoiadores promovem, integrantes do governo também não enxergam. Em resposta ao comunicado de que veículos deixariam de trabalhar no Alvorada por questões de segurança, o GSI (Gabinete de Segurança Institucional), responsável pela segurança do local, afirmou que “criou as melhores condições possíveis para o trabalho dos profissionais de imprensa”. 

“Continuaremos aperfeiçoando esse dispositivo, para que o local permaneça em condições de atender às expectativas de trabalho e de livre manifestação dos públicos distintos que, diariamente, comparecem ao Palácio da Alvorada”, diz. Não fica claro se o GSI se refere aos xingamentos como ′livre manifestação dos públicos’. 

Violação a direitos básicos 

Essa reação é a materialização de uma das violações a tratados internacionais de direitos humanos que o governo tem promovido ao agredir e permitir agressões à imprensa. É de responsabilidade do governo proteger o trabalho do jornalista. Foi o próprio Bolsonaro quem assinou a inclusão de comunicadores e ambientalistas no programa de proteção aos direitos humanos. O programa, porém, é descrito por Firbida, da Artigo 19, como “desestruturado” e com “metodologia defasada”. 

A postura do governo implica ainda em outros tipos de violações, como defesa da liberdade de expressão e a obrigação de investigar e solucionar penalmente perpetuadores de violência. “Mas a gente vê que a impunidade ainda é padrão”, diz. 

Para o coordenador do Observatório de Liberdade de Imprensa do Conselho Federal da OAB, o advogado criminalista Pierpaolo Bottini, há possibilidade de aos poucos tentar reverter esse quadro. Ele aposta na busca por respostas institucionais, como a necessidade de fazer boletim de ocorrência e acionar a Justiça.  

“Estamos vendo agressões institucionais, o presidente da República agredir verbalmente jornalistas, milícias digitais pressionarem e ameaçarem jornalistas. Estamos vendo uma estratégia institucional de intimidação da imprensa, isso tem acontecido numa escala muito grande. Há duas formas de embate, o rechaço, repúdio, mas também a esteira judicial. É preciso empoderar jornalistas e meios de comunicação para ir ao Judiciário e pedir uma investigação. É importante responsabilizar civil e criminalmente.”

Ele cita como exemplo de sucesso dessa prática a atitude que ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) adotam quando são hostilizados. “Eles começaram a entrar com ação na Justiça contra as pessoas. Uma coisa é gritar e as pessoas fazerem nota de repúdio. Na hora que vem um oficial de justiça, um policial para intimar para prestar depoimento, aí perde a graça. Essa estratégia judicial começa a ser muito importante, ainda que seja estratégia de formiguinha, muito pequena”, salienta. 

Transparência

 A ação judicial também é resposta para pressionar o governo por transparência. Um levantamento feito pelo Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas entre os dias 27 de março e 27 de abril indica que a pandemia do novo coronavírus foi citada de maneira “injustificada” para negar ao menos 24 pedidos feitos pela Lei de Acesso à Informação (LAI). O Executivo deixou de responder questões sobre insumos para a saúde, por exemplo. 

“Se o cidadão não tem acesso à informação, não tem como ele saber se a sua necessidade está sendo atendida e, a partir daí, não consegue ter clareza para avaliar se vai votar em determinado político ou não. Parece muito abstrato, mas é algo bem concreto”, explica Marina Atoji, gerente de projetos da Transparência Brasil.

Para ela, a saída, quando a informação é negada, é reportar a falta de transparência. “Se o governo se recusa ou faz a egípcia na hora de responder um pedido sobre entrega de ventiladores, por exemplo, a população fica sem saber como está combate ao coronavírus. Há mecanismos jurídicos para buscar a informação. Não prestar conta é improbidade administrativa, é uma violação ao princípio da publicidade. A Constituição estabelece direito de acesso à informação pública como direito fundamental”, ressalta.  

O descaso com a imprensa seja em qual vertente for é um atentado à democracia e aos direitos humanos. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos também coloca a informação como um direito fundamental, afinal de contas, se você não tem acesso à informação sobre o estado, sobre as coisas do seu interesse como cidadão, você não tem como fazer controle social”, acrescenta. 

Firbida, da Artigo 19, destaca que o papel da imprensa é garantir o fluxo de informação na sociedade. “Essa comunicação não acontece de maneira automática, comunicadores são mediadores. A liberdade de comunicação garante a liberdade de expressão de maneira livre, independente e plural”, diz. 

Análise

Com muito atraso, parte dos veículos de comunicação retirou seus jornalistas da porta do Palácio do Alvorada, onde eram diariamente insultados pelo presidente da República e ameaçados por sua claque de fãs. Constatando a ausência, Jair Bolsonaro afirmou: "estão se vitimizando".

Desde o início de seu mandato, ele transformou jornalistas em inimigas, difamando-as nas redes sociais, jogando suas milícias digitais sobre elas e suas famílias, atacando-as diretamente, tornando a vida delas um inferno. O uso do feminino é proposital porque seus alvos prediletos são jornalistas mulheres.

Portanto, seria apenas mais uma dose de cinismo servida pelo mandatário, se não tivesse resolvido fazer uma sessão de terapia diante dos colegas de imprensa remanescentes ali presentes.

"Quando levei a facada, eles não falaram nada. Não vi ninguém da Folha falando 'quem matou o Bolsonaro?' Pelo contrário, levo pancada o tempo todo. Se for pegar o número de horas que a Globo fez para Marielle e no meu caso, acho que dá 100 para um, mas tudo bem. A imprensa é livre, nunca tiveram um ato meu para constranger a mídia", disse.

Primeiro, é necessário lembrar a Bolsonaro que ele não morreu. Claro que parece que sim pela ausência de um líder para a articulação e o planejamento do combate a uma pandemia que, por enquanto, em um registro subdimensionado, matou mais de 26 mil brasileiros e contaminou mais de 400 mil.

Segundo, o presidente prova mais uma vez que não é afeito ao hábito da leitura daquilo do qual discorda, ao contrário dos grandes líderes que são ávidos por vozes contraditórias. Pois teria visto que o repúdio ao abominável atentado que sofreu, no dia 6 de setembro, foi a tônica dos veículos de comunicação que tanto ataca.

A imprensa responsável escreveu textos criticando duramente quem duvidava do ataque e desejava a morte do então candidato. Pois não importava que Bolsonaro tivesse dado, de forma sistemática ao longo dos anos, as piores declarações possíveis, falando de fuzilamento, elogiando torturadores e defendendo tudo o que há de pior. Um ataque a um candidato presidencial era um ataque à democracia e precisava ser apurado.

E foi isso o que aconteceu. A Polícia Federal chegou à conclusão de que Adélio Bispo agiu como um lobo solitário. Mas Bolsonaro não aceitou a conclusão – seja por paranoia, seja porque essa narrativa não lhe interessa. Afinal, precisa de uma conspiração para alimentar seus seguidores.

Terceiro, não há dúvidas que se ele tivesse sido morto naquele dia e as investigações não tivessem apontado o que realmente ocorreu, o assunto ocuparia o debate público até hoje. Mas sobreviveu e o responsável está atrás das grades. Já Marielle Franco foi morta em um esquema profissional que envolveu até matador de aluguel – seu vizinho, aliás. E ninguém foi condenado por isso até agora.

Há uma grande dose de vergonha alheia quando Bolsonaro, sucessivas vezes, demanda a mesma atenção concedida a uma vereadora executada. Isso vai além das estratégias de comunicação do presidente para excitar seus seguidores contra a imprensa. Há ressentimento em suas palavras, como se quisesse ser tratado como um mártir vivo – por mais contraditório que isso soe.

Quarto, o presidente prova dominar a comédia stand up ao afirmar que nunca fez nada para constranger a mídia.

Diante do desabafo presidencial, podemos constatar que, na verdade, é ele quem se vitimiza, projetando nos jornalistas que não mais estavam para ouvir insultos e agressões seu próprio diagnóstico.

É de desconfiar que precisasse de um abraço sincero naquele momento – não um abraço do tipo "tira uma selfie comigo para eu postar no Insta" da superficialidade da relações efêmeras. Mas estamos em uma pandemia assassina de um vírus transmitido por contato social, então isso não é recomendável. Além disso, enquanto não provar que seu terceiro teste de covid-19, realizado na Fiocruz com o pseudônimo "Paciente 05", é dele mesmo, continua sendo um risco para as pessoas à sua volta. Pois não existe anticorpo para falta de apreço pela vida.


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