29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Ameaças, milícia e morte: a nova cara do Velho Chico

Publicado em 28/05/2020 12:00 -

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As histórias de tocaias e jagunços nas terras banhadas pelo rio São Francisco não estão apenas no século passado ou imortalizadas nas páginas de livros como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A violência que permeou a travessia de Riobaldo e Diadorim ressurge nas margens do Velho Chico no norte de Minas Gerais com uma nova roupagem. Drones, helicópteros, homens desfilando em picapes com armas de grosso calibre e uma milícia rural que atua com o aval de autoridades que avançam sobre comunidades tradicionais.

Nos últimos seis anos, um sem-terra morreu e outros nove ficaram feridos em ataques armados. Quase a metade das lideranças de movimentos sociais de Minas Gerais que estão sob ameaça vive no norte do Estado. Uma comunidade de pescadores teve casas destruídas e foi expulsa sem ordem judicial. Lideranças só andam à noite – camuflados pela escuridão – e usam os atalhos do rio para escaparem de emboscadas.

O temor é que, se não houver uma mudança na política fundiária promovida pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, as águas do Velho Chico podem ficar vermelhas. De sangue. A Repórter Brasil visitou 12 comunidades tradicionais de pescadores, vazanteiros e quilombolas, além de grupos que lutam pela reforma agrária na região, e mostra neste especial a violência do agronegócio que voltou a assolar camponeses que vivem às margens do rio São Francisco.

Enquanto o trabalhador rural sem-terra Sebastião Aparecido de Paula, 70 anos, desmonta sua casa – com lágrimas nos olhos – e coloca telhas e móveis em um caminhão, a empresária Virgínia Tofani Maia conversa amigavelmente com os policiais que acompanham a ação de reintegração de posse da Fazenda Norte América, em Capitão Enéas, no norte de Minas Gerais.

É ela quem confirma à Repórter Brasil que um grupo chamado Segurança no Campo, composto por cerca de 300 produtores rurais da região, conta com a participação do atual secretário de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, o general da reserva Mário Lúcio Alves Araújo. “O general Mário Araújo faz parte do nosso grupo. Ele é o interlocutor”, afirma Maia. “Ele é bem jeitoso para ir lá e conversar.”

Oito meses antes de assumir o comando da secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, o general Mário Araújo participou de uma ação organizada por fazendeiros, em abril de 2018, que impediu integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) de ocuparem a fazenda Bom Jesus, na área rural de Montes Claros. Na ação – realizada sem autorização judicial –, os fazendeiros expulsaram os integrantes do MST, queimaram a bandeira do movimento, bloquearam os acessos e impediram a entrada de água e alimentos, além de ameaçarem as famílias sem-terra. Após o ato, o grupo Segurança no Campo foi denunciado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais como sendo uma milícia rural.

“A milícia rural não teria legitimidade para promover uma reintegração de posse, muito menos sem ordem judicial”, afirma denúncia assinada por 30 entidades, incluindo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG (Ordem dos Advogados do Brasil), o MST e organizações sindicais. Consta, na denúncia, uma fotografia do general Mário Araújo conversando com policiais durante a ação.

Além do episódio com a presença do general, o Segurança no Campo participou de outras ações semelhantes, chegando a fazer duas emboscadas armadas contra trabalhadores rurais sem-terra em 2017 e 2018. Ambas na fazenda Norte América – onde Sebastião de Paula e outras dezenas de famílias foram despejadas em dezembro do ano passado.

Em abril de 2017, os sem-terra foram chamados para uma reunião na sede da fazenda. Foram recebidos com tiros disparados de uma picape. Três integrantes do MST foram baleados.

Um novo ataque ocorreu, dessa vez no estilo “Cavalo de Tróia”, em março de 2018, quando a coordenação do acampamento deixou de ser do MST e passou para a Frente Nacional de Lutas no Campo e na Cidade (FNL). Um caminhão com carroceria do tipo baú entrou no acampamento, com o argumento de que iria buscar móveis e ração. Quando a porta da carroceria foi aberta, saíram 20 homens armados, que atiraram contra os acampados. Um sem-terra foi baleado e outros cinco ficaram feridos.

A Polícia Civil investigou o caso e apontou Leonardo Andrade, ex-secretário da prefeitura de Montes Claros, como o mandante da ação. Ele chegou a ser considerado foragido. Outras 12 pessoas foram presas, entre eles o advogado e a gerente da fazenda. Andrade havia sido preso em 2016, no escopo da operação Catagênese, acusado de irregularidades com recursos públicos e ficou 35 dias na prisão, saindo após determinação do STF (Supremo Tribunal Federal).

‘Tentamos apaziguar’

Na mesma fazenda palco das emboscadas, onde em dezembro do ano passado aconteceu a ação de despejo das famílias sem-terra –, Virginia Maia representava os interesses de Leonardo Andrade.

Questionada pela Repórter Brasil se o Segurança no Campo é uma milícia, ela respondeu: “Nunca. Não tem uma arma. Muito antes pelo contrário.” Segundo Maia, o grupo “nunca usou um porrete”. Ela explica que os fazendeiros vão para as ações carregando a bandeira do Brasil, vestindo uma camisa com o nome do grupo e fazem a proteção somente com o corpo. “Tentamos apaziguar”, afirma.

A respeito dos atos violentos que já ocorreram na fazenda Norte América, Maia afirma que não teve participação e que somente acompanhou os desdobramentos pela cobertura da imprensa. “O proprietário aqui teve um prejuízo irrecuperável”, afirma. “O que aconteceu [ataques aos sem-terra] foi uma reação contrária da outra parte”, justifica.

Leonardo Andrade disse à Repórter Brasil que estima prejuízo de R$ 7 milhões com as ocupações. A maior parte, segundo ele, foi causado após a segunda ação, comandada pela FNL. “Quando eles chegaram parecia um assalto a banco de tanto armamento que tinham”, afirma. Andrade diz que pulou a janela e fugiu, pois estava debilitado por causa de um tratamento de câncer.

Segundo ele, 12 bois foram mortos e outros 300 roubados; 70 vacas leiteiras tiveram a ordenha interrompida por uma semana e morreram. Outras 65 vacas perderam valor, pois as tetas pararam de ordenhar. Ele afirma que os sem-terra foram cruéis com animais e atiraram na cabeça de uma égua premiada e cortaram os pés de um burro.

Sobre os dois ataques aos sem-terra que ocorreram na fazenda, Andrade diz que não estava no local. O primeiro ataque ele atribui a uma “reação normal” dos funcionários que atiraram ao ver os trabalhadores rurais sem-terra caminhando em direção à sede da fazenda. Sobre o segundo ataque, executado no estilo “Cavalo de Tróia”, Andrade nega que tenha ocorrido.

Questionado sobre o seu pedido de prisão pós ataque, Andrade diz que foi uma injustiça cometida por policiais civis. Ele entende que havia uma ligação dos policiais civis com deputados petistas da região e que foi perseguido politicamente. “A Polícia Civil era servil em relação ao PT”, afirma.

O coordenador da FNL no norte de Minas, Geraldo Pires de Oliveira, nega que os acampados tenham usado armas, atacado e ferido os animais da fazenda. Oliveira entende que há um alinhamento de toda polícia com os fazendeiros. “Não temos dúvida do que representa o latifundiário arcaico, que pensa em resolver tudo na bala, como é o problema do norte de Minas”, completa.

Colega de Bolsonaro

Tanto a empresária Virgínia Maia quanto o general Mário Araújo foram candidatos na última eleição. Ambos derrotados, ela para deputada estadual e ele para federal. Os dois concorreram pelo PSL, partido que elegeu o presidente Jair Bolsonaro.

Araújo, o secretário do governo de Romeu Zema (Novo), é um antigo conhecido do presidente. Eles estudaram na mesma turma na Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação de oficiais, em Resende (RJ). Uma foto sua circulou pelas redes sociais e grupos de whatsapp do país no final de fevereiro e início de março: é ele o primeiro dos quatro generais cuja foto estampa cartaz produzido por movimentos de extrema direita para convocar a manifestação de 15 de março: “Vamos à rua em massa. Os generais aguardam as ordens do povo. Fora Maia [Rodrigo Maia, presidente da Câmara] e Alcolumbre [Davi Alcolumbre, presidente do Senado]”, afirma o cartaz.

Convidado pelo governador mineiro para assumir a secretaria de Justiça e Segurança Pública, Araújo tomou posse em janeiro de 2019. Antes de ser secretário e de participar do movimento Segurança no Campo, ele comandou o Estado Maior da 4ª Região Militar, em Belo Horizonte. O general também foi um dos responsáveis pela operação de busca de ossadas dos guerrilheiros do Araguaia empreendida pelo Exército em 2009.

Procurado, Araújo disse que não comentaria “declarações de terceiros”. Em nota enviada pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública, ele não respondeu às perguntas feitas sobre sua participação no Segurança no Campo. Informou apenas que tem “como função zelar pela manutenção da lei e da ordem e trabalhar contra qualquer manifestação de violência, no campo ou espaço urbano, independente de segmento ou classe social”.

Quando a esperança morre

“A formação de grupos armados e de uma defesa ilícita de propriedade do campo é uma tendência”, afirma o coordenador das promotorias de conflitos agrários de Minas Gerais (MP-MG), procurador Afonso Henrique de Miranda Teixeira. Para ele, o país está retomando situações que já tinham ficado no passado. Teixeira analisa que a inviabilização da reforma agrária como política praticada pelo governo federal impede a busca por direitos constitucionais e que a maior violência é “a retirada da esperança de conquistar um espaço para sobreviver.”

Aos 70 anos, Sebastião Aparecido de Paula não imaginava que teria que recomeçar do zero. Depois de anos vivendo e plantando na Fazenda Norte América, não sabe se conseguirá trabalho depois de ser despejado. “A gente tem que ir para cidade. Vou para rua, mas vou ficar contrariado.”

Enquanto desmonta seu próprio barraco, ele lembra de tudo o que colheu ali, inclusive uma abóbora de 24 quilos. “A única esperança que a gente tinha era que podia lutar por um pedaço de terra.”

O lobby ruralista contra demarcação nas margens

Rogério da Conceição agradece ao rio São Francisco não só pelos peixes e pela água. Ele agradece pela própria vida. “Estavam me esperando a 30 metros da beira do rio. Atravessei com o barco para o outro lado e consegui escapar. Graças ao rio São Francisco”, conta um dos líderes da comunidade pesqueira e quilombola de Caraíbas, em Pedras de Maria do Cruz, no norte de Minas Gerais, sobre como fugiu de uma emboscada. Naquele mesmo dia, 22 de outubro de 2014, outra liderança não teve a mesma sorte. Cleomar Rodrigues de Almeida, então coordenador da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), recebeu um tiro de espingarda à luz do dia, quando ia para o acampamento.

Apesar de o assassinato e a emboscada terem acontecido há quase seis anos, a tensão permanece latente na comunidade, onde 26 famílias vivem da pesca e da agricultura familiar. Os moradores temem novos ataques e estão sob a constante ameaça de perderem suas casas e plantações. O medo se intensificou no último ano, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro – que tem discurso contrário aos direitos de indígenas e quilombolas – e com o abandono, por parte do governo federal, dos processos de demarcação das margens do Velho Chico.

As margens dos rios são, segundo lei de 1946, áreas que pertencem à União. Um decreto de 2007 e uma portaria de 2010 do governo federal permitiram que as comunidades tradicionais da região vivam nas margens, também chamadas de ‘áreas de vazante’, terras que ficam banhadas na cheia do rio. Em 2013, moradores de Caraíbas chegaram a obter do governo um Termo de Autorização de Uso Sustentável (Taus), que garante o uso da terra para moradia, pesca e agricultura com a manutenção do bioma natural. Foi quando o conflito com grandes fazendeiros da região se acirrou. Menos de um ano depois mataram Cleomar e tentaram o mesmo com Rogério.

A comunidade, para conseguir a posse definitiva da terra, depende que a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) faça a demarcação das áreas e determine o “tamanho” das margens do Velho Chico, levando em conta a média das últimas cheias. O processo estava em andamento, mas parou em 2018, no governo de Michel Temer. Audiências públicas foram canceladas em cima da hora e os processos de reconhecimento de comunidades tradicionais foram interrompidos.

Servidores de carreira da SPU também passaram a encarar pressão explícita de ruralistas. Eles chegaram a denunciar, em documentos inéditos obtidos pela Repórter Brasil, a pressão feita pela Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) – a bancada ruralista – , para que paralisassem a demarcação no norte de Minas. Os dois órgãos atuaram a pedido de fazendeiros.

CNA e FPA encaminharam ofício ao então presidente Temer, no final de 2018, pedindo a revogação do decreto 6.040 de 2007, que trata da política de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. Quem presidia a bancada ruralista à época e assinou o documento foi a atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina, então deputada federal.

Para a CNA e a FPA, o decreto deixa “margem a várias interpretações que estimulam e culminam em atos que afrontam a ordem e a segurança, além de violarem a garantia constitucional de proteção à propriedade privada e à dignidade humana, imputando aos proprietários rurais a perda de suas terras, de suas produções e de seu sustento familiar”, diz o documento, citando o processo de demarcação nas margens do rio São Francisco.

Servidores da SPU rebateram, em nota técnica, as acusações dos ruralistas. Afirmaram que estavam seguindo a lei. O Ministério Público também se pronunciou, defendendo que o pedido dos ruralistas não fosse atendido. Em nota técnica, procuradores disseram que “constituiria retrocesso” a suspensão das demarcações e “resultaria em graves danos sociais a essa parcela vulnerável da sociedade brasileira”.

A mobilização dos servidores da SPU foi em vão. As audiências públicas seguiram sendo desmarcadas com ordens do comando central da secretaria. Em alguns casos, os servidores estavam na estrada, a caminho das cidades, quando eram avisados do cancelamento.

Em outro ofício interno a que a Repórter Brasil teve acesso, servidores da SPU afirmam que as audiências foram canceladas a pedido de Adriano Pinto Coelho e dos sindicatos dos produtores rurais de Pirapora e Várzea da Palma. Coelho é parte interessada na ação reintegração de posse que culminou na retirada e na destruição das casas de 30 famílias de pescadores da comunidade de Canabrava, em Buritizeiro, descumprindo uma decisão judicial. (leia mais sobre essa história em ‘Venho olhar a água’: os pescadores expulsos das margens do rio ).

Os funcionários da Secretaria de Patrimônio da União também denunciaram a presteza do órgão em atender os pedidos dos ruralistas. “A sequência dos acontecimentos foge à normalidade. Adriano Pinto Coelho enviou mensagem em 4 de abril de 2018 e a audiência foi adiada em 5 de abril”, relataram os servidores. A Repórter Brasil procurou a FPA e a CNA, mas elas não responderam às perguntas enviadas.

Pinto Coelho não quis dar entrevista à Repórter Brasil, mas afirmou, em audiência realizada na Assembleia de Minas Gerais que SPU e Ministério Público atuam de maneira tendenciosa, pois dão atenção a falsas acusações feitas contra ele, enquanto ignoram crimes praticados pelas comunidades que reivindicam as terras.

Patrimonialismo arcaico

Pouco antes de morrer, Cleomar estava sendo ameaçado de morte por pistoleiros conhecidos na região, que atuavam a mando de fazendeiros, segundo o advogado Felipe Nicolau, presidente da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (Abrapo), que participa como assistente no processo judicial sobre o assassinato.

Hoje, no acampamento em que vivia, na área rural de Pedras de Maria da Cruz (150 km de Montes Claros), cruzes e placas resgatam sua memória – e não deixam os camponeses se esquecerem do conflito que enfrentam há quase quase uma década no norte de Minas. Na porteira do acampamento onde ele foi assassinado, há uma faixa vermelha com letras amarelas: ‘Cleomar vive! Morte ao latifúndio!’

A Liga dos Camponeses Pobres denunciou quatro fazendeiros pela morte de Cleomar, mas nenhum foi indiciado pela polícia nem se tornou réu. Duas pessoas chegaram a ser presas, Marcos Ribeiro de Gusmão e Marco Aurélio da Cruz e Silva, acusados pela polícia de serem os executores, mas ficaram menos de um ano na prisão, pois receberam um habeas corpus. Seis anos depois do assassinato, o crime ainda não foi julgado.

A região vive um “patrimonialismo muito antigo”, segundo o procurador Edmundo Antônio Dias, do Ministério Público Federal. Para ele, os fazendeiros usam as áreas nas margens do rio São Francisco como se fossem donos, mas não são, pois as terras pertencem à União. O procurador critica a postura do governo federal de permanecer inerte e não demarcar as áreas, além de deixar que os fazendeiros continuem usufruindo da terra. “As comunidades tradicionais têm uma relação de preservação com o meio ambiente. Elas podem viver nessas áreas, pois a finalidade [da demarcação das margens do rio] é preservar o meio ambiente”, afirma Dias.

O resultado é um cenário de medo e ameaças. Quase a metade das lideranças (34 de 72) que estão no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos de Minas Gerais vive no norte de Minas.

Os pescadores expulsos das margens dos rios

Todas as manhãs, o pescador Edmar Gomes acorda e caminha pelas ruas de Buritizeiro, cidade com 27 mil habitantes no norte de Minas, até alcançar o rio São Francisco. “Venho olhar a água”. São saudades do tempo em que vivia, com demais pescadores, nas margens do rio, na comunidade Canabrava. Sua família e outras 30 que viviam ali foram expulsas da beira do Velho Chico em 2017 e tiveram suas casas e plantações destruídas – em uma ação que descumpriu liminar judicial que garantia a permanência dos pescadores no local.

A ação foi comandada por Adriano Pinto Coelho, um dos fazendeiros mais articulados da região, integrante e entusiasta do Segurança no Campo, grupo formado por 300 produtores rurais e denunciado por movimentos sociais como milícia rural. Foi Coelho quem pediu à Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e à Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) para que interferissem junto ao governo federal e à Secretaria de Patrimônio da União para paralisar as demarcações das margens do São Francisco. O bom trânsito levou Coelho a conseguir – na Justiça estadual – uma decisão de reintegração de posse de uma área considerada do governo federal.

A Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP) fez diversos questionamentos e protestos, pois considera que a área em disputa é da União e, por isso, o tema deveria ser tratado na justiça federal, não na estadual. No dia do despejo, a comunidade conseguiu uma liminar para suspender a ação. Mesmo assim, policiais militares destruíram 13 casas da comunidade, até serem convencidos da existência da liminar e pararem com a destruição.

Passados dois dias, um grupo de funcionários de Coelho destruiu as casas que restavam de pé, as plantações e, segundo os moradores, levaram os animais de criação. Dois meses depois, a Justiça estadual concedeu outra reintegração de posse em favor de Coelho.

Sem possibilidade de permanecer na área, a comunidade intensificou a busca pelo Termo de Autorização de Uso Sustentável, expedido pela Secretaria de Patrimônio da União, que garante o uso das terras, mas esbarrou na organização dos fazendeiros e no lobby dos ruralistas no órgão. O termo foi indeferido em setembro do ano passado.

“Fomos expulsos e escorraçados a mão armada. Tiraram uma terra sagrada da mão da gente para entregar para o fazendeiro, que não é o proprietário, mas que usa e abusa dela da forma que ele bem quer”, lamenta o pescador Clarindo Pereira dos Santos sobre a ação que os expulsou da comunidade.

Aos 66 anos, Edmar lamenta os últimos três anos que passou longe do rio. “Vivíamos tão sossegados comendo o peixinho fresco da gente”, recorda. Para continuarem com a pesca, eles se refugiaram em uma ilha do rio, a Ilha da Esperança e em uma faixa de dez metros, no barranco do rio, encurralados entre as cercas dos fazendeiros e a água. A grande maioria dos ex-pescadores, no entanto, passou a viver na área urbana, em casas de familiares.

‘SPU é parcial’

Para Adriano Coelho, o fazendeiro que comandou a ação contra os pescadores, o grupo Segurança no Campo foi uma resposta aos movimentos sociais como o MST. “Aí, vieram com a história de que lá reside uma comunidade tradicional. Estão criando comunidades que pleiteiam 120 mil hectares na região”, disse Coelho, em depoimento durante audiência na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em maio de 2018. Na visão dele, as comunidades tradicionais estão requisitando porções demasiado extensas de terra. A Repórter Brasil conversou com Coelho, que não quis conceder entrevista e nem responder s perguntas enviadas. Ele afirmou que mantém o que disse durante a audiência na assembleia.

Coelho também acusou a SPU de ser parcial ao definir os limites das terras nas margens do rio São Francisco. Ele disse ainda, durante a audiência, que a SPU e o Ministério Público atuam de maneira tendenciosa, pois dão atenção a falsas acusações feitas contra ele, enquanto ignoram crimes praticados pelas comunidades tradicionais. Durante o encontro na assembleia, a bancada dos deputados estaduais estava enfeitada com uma faixa: “Movimento Segurança no Campo! Prosperidade no campo, fartura na cidade! Todos unidos em defesa da propriedade privada!”

Avanço das cercas

A tensão entre pescadores e fazendeiros é constante nas margens do rio São Francisco. Em Ibiaí, cidade vizinha de Buritizeiro, os pescadores também são ameaçados. O presidente da colônia de pescadores da cidade, Magno Seixas, explica que eles têm o hábito de ficarem vários dias no rio e, por isso, usam as margens para construir barracos de lona para descansarem. “Estamos sem acesso às margens dos rios. Não estão aceitando mais que a gente faça um barraquinho para poder pescar”, lamenta.

Na comunidade de Barra do Pacuí também há tensão entre fazendeiros e pescadores. Sem conseguirem acesso às margens do rio para plantarem, os moradores da comunidade aproveitam o período que o rio não está cheio e cultivam nas ilhas.

“A gente trabalha na ilha porque não tem acesso às margens. O negócio deles [fazendeiros] é plantar capim e criar boi para eles venderem”, reclama Maria do Carmo Paiva Silva. As ilhas, porém, têm limitações. Silva explica que é muito difícil plantar mandioca, pois descer o barranco da ilha para chegar até o barco e depois subir para desembarcar, carregando o peso da produção é muito penoso.

O avanço das cercas dos fazendeiros em direção ao rio impediu outra atividade da comunidade tradicional de Barra do Pacuí: o extrativismo de frutos e sementes do cerrado, como a castanha de baru. “Faz três anos que não conseguimos coletar. O fazendeiro disse que ia quebrar nossa carroça se pegasse a gente na área dele”, conta Nélia Rodrigues Souza. Antes, a comunidade vendia o quilo da castanha de baru por R$ 20. “É uma coisa que eles não usam para nada, mas não deixam a gente pegar.”

De grande sertão a Bacurau          

Dois mega empresários – o maior produtor de bananas do país e um sócio de três dos principais supermercados de Minas Gerais – são apontados por moradores de quatro comunidades tradicionais como mandantes de ameaças na disputa pelas terras localizadas nas margens do rio São Francisco, em Itacarambi e Januária, no norte de Minas. Entre as estratégias de intimidações estão funcionários armados, abordagens agressivas e o voo constante de drones vigiando os passos dos quilombolas e vazanteiros.

O empresário que disputa as terras com as comunidades quilombolas de Croatá, em Januária e Cabaceiras, em Itacarambi, é Walter Santana Arantes, que além de ser um dos maiores latifundiários da região, é sócio de três das maiores redes de supermercados mineiras: EPA, BH e Mineirão.

Já quem está em conflito com os moradores das comunidades vazanteiras de Barrinha e Maria Preta, em Itacarambi, é a Brasnica Frutas Tropicais, empresa fundada por Yuji Yamada na década de 1960. Yamada nasceu no Japão e foi o primeiro japonês a ser prefeito de uma cidade brasileira. Entre 2013 e 2016, foi o chefe do executivo de Janaúba, no norte de Minas. Com cerca de 2 mil hectares plantados na região, a empresa comercializa 3 mil toneladas de frutas por semana.

“Perturbam a gente demais. Já mandaram a polícia para nos intimidar”, reclama Celso Lourenço dos Santos, morador da comunidade de Barrinha, em litígio com Yamada, da Brasnica Frutas Tropicais. De acordo com os moradores de Croatá, o empresário supermercadista Walter Arantes também usa métodos semelhantes de intimidação. “Ele [Arantes] fala que é dono do norte de Minas todo. Coloca os capangas e os vaqueiros para passarem zombando da gente. Ficam falando que temos que fazer acordo para sair da área ou então teremos que sair na marra”, afirma o morador de Croatá, Arnaldo da Silva Vieira.

Os moradores das quatro comunidades se sentem vigiados por drones, que sobrevoam suas casas e plantações. “Começaram a aparecer uns drones que a gente não sabe de onde vêm”, reclama Enedina Souza Santos, de Croatá. A associação com o enredo do filme Bacurau é imediata. Na ficção – dirigida e escrita por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles –, os moradores de Bacurau são vigiados por drones.

Disputa pela água

Assim como na ficção, outro problema é a disputa pela água. Adauto Gomes de Sá estica os braços e espalma as mãos para mostrar o tamanho dos peixes que tinham na lagoa do Juazeiro, na comunidade vazanteira de Maria Preta. Não tem mais. A lagoa está seca, pois uma barragem construída pela Brasnica Frutas Tropicais impede que a água chegue na lagoa, mesmo nos períodos de chuva.

“Não desce água e não desce peixe. Não posso irrigar e nem dar água para minha criação beber”, lamenta Sá, que sustenta a família criando cabras. A Repórter Brasil entrevistou, em dezembro, o vazanteiro onde seria o fundo da lagoa – uma área com capim seco, que mais parece um pasto. “É o quarto ano que a lagoa não enche. Aqui era para estar com a profundidade de dois metros”, detalha. Sem a água que “vazava” do rio, Sá não consegue plantar na margem e fica exclusivamente dependente da criação de cabras para sobreviver.

Em março, depois das fortes chuvas em Minas Gerais e da reportagem questionar a Brasnica Frutas Tropicais, a água foi liberada da barragem e chegou na lagoa.

A comunidade vazanteira de Maria Preta é vizinha de outra comunidade, conhecida como Barrinha. Ambas são afetadas pelo Projeto Jaíba, uma iniciativa do governo mineiro que atraiu para região empresários interessados em produzir frutas usando a irrigação de canais provenientes do rio São Francisco.

Os moradores de Maria Preta e Barrinha estão lutando pelo reconhecimento como tradicionais, pois se identificam como vazanteiras (que plantam nas vazantes do rio nos períodos de seca). Porém, com a paralisação do processo de demarcação das margens que era realizado pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), as comunidades estão em um limbo legal.

Nenhuma das duas recebeu o Termo de Autorização de Uso Sustentável, que é o primeiro passo do processo para ter direito de viver e produzir nas margens do rio. A pressão dos ruralistas e a mudança de política com a chegada do governo do presidente Jair Bolsonaro deixaram as duas comunidades vulneráveis às investidas de empresas e fazendeiros, que buscam na Justiça – e com ameaças – a reintegração de posse.

‘Não há negociação possível com a comunidade’

A Brasnica Frutas Tropicais não reconhece os moradores da Barrinha como uma comunidade tradicional. “Não há negociação possível com a comunidade Barrinha por se tratar de ocupação ilegal e ilegítima, em área de proteção ambiental que tem sido degradada pelos invasores”, afirma o gerente administrativo da empresa, Jônatas Percídio.

A empresa já teve duas decisões judiciais favoráveis para reintegração de posse, mas, segundo o gerente, há uma “novela processual” com indefinição sobre o juízo competente, se é a Justiça estadual ou federal.

Percídio informa também que as captações de água da empresa seguem as determinações da Agência Nacional de Águas (ANA) e que a barragem construída pela Brasnica não causa prejuízo ou dano ambiental. “As alegações dos ocupantes da comunidade Maria Preta são totalmente sem fundamento”, afirma. Leia aqui a íntegra da resposta da empresa.

Um dos líderes da comunidade Maria Preta, Reinaldo Pereira da Silva, percebeu uma mudança no tom das ameaças desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o governo. “Eles [fazendeiros] vêm para cima, andam armados e mostrando que estão armados”, completa.

Parceria com policiais

Além das ameaças, os moradores das comunidades reclamam da parceria entre policiais e empresários. “Nunca vi esse negócio de fazendeiro ou gerente andar junto com a polícia”, reclama Enedina Souza Santos, de Croatá. A ligação das polícias com os fazendeiros é explicitada pela participação do secretário de Justiça e Segurança Pública do governo mineiro, general da reserva Mário Lúcio Alves Araújo, em um grupo chamado Segurança no Campo, que reúne 300 fazendeiros e foi denunciado como uma milícia rural.

Questionado se participa do Segurança no Campo, Arantes respondeu: “Sou uma pessoa evangélica, temente a Deus e por princípios religiosos não participo de qualquer grupo e nunca ouvi falar disso.”

Arantes é também vice-presidente da Associação Mineira de Supermercados (Amis) e sócio do Supermercado BH, que tem 200 lojas em Minas Gerais, e da DMA distribuidora, que engloba os supermercados EPA e Mineirão, com 148 unidades em Minas e no Espírito Santo, sendo o sétimo maior grupo supermercadista do Brasil.

Ele chegou a ser um dos 16 presos, em 2018, na Operação Capitu, da Polícia Federal, em um suposto esquema de corrupção envolvendo o Ministério da Agricultura. Também foram detidos na mesma operação o empresário Joesley Batista, sócio da JBS e Antônio Andrade, que era vice-governador e foi ministro da Agricultura entre 2013 e 2014.

Ao ser questionado se pessoas contratadas por ele ameaçam os quilombolas, Arantes respondeu: “Desconheço totalmente essa informação, mas caso estes fatos sejam comprovados judicialmente, serão sumariamente demitidos. Sou contra qualquer tipo de violência.”

Arma no banco de trás

“Eles [funcionários de Arantes] ficam passando de caminhonete com os capangas mostrando a arma no banco de trás”, descreve Enedina Souza dos Santos, de Croatá. “Isso é para gente se sentir amedrontado”, completa.

Na comunidade quilombola de Cabaceiras, em Itacarambi, os relatos são parecidos. “Passaram dois motoqueiros aqui e gritaram. ‘Sem-terra tem é que tomar bala na cara’”, conta Luciano Josino de Araújo. Ele diz que as ameaças são constantes. “Já me ameaçaram várias vezes. Dizem que vão me pegar na rua.”.

Em meio a ameaças, ataques e vigilância de drones, em uma violência que vai de Grande Sertão: Veredas a Bacurau, Reinaldo Silva, da comunidade Maria Preta, segue o protocolo de segurança de Zumbi, líder do quilombo dos Palmares. Ele só se locomove nas estradas e pelo rio durante a noite, para se proteger na escuridão. “Um cara bom de tiro, que eles [fazendeiros] têm condição de pagar, pode me matar com 200 metros de distância. Na barroca de um rio é fácil demais. Você está dentro da canoa e morre.”


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