26/04/2024 - Edição 540

Saúde

Estudo com 96 mil pacientes não encontra benefício de uso de cloroquina contra Covid-19 e detecta risco de arritmia cardíaca

Publicado em 22/05/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Uma pesquisa científica publicada na renomada revista "The Lancet" com 96 mil pacientes aponta que a hidroxicloroquina e a cloroquina não apresentam benefícios contra a Covid-19. Os resultados divulgados nesta sexta-feira (22) mostram que também não há melhora na recuperação dos infectados, mas existe um risco maior de morte e piora cardíaca durante a hospitalização pelo Sars CoV-2.

O estudo:

96.032 pacientes internados foram observados;

Idade média de 53,8 anos e 46,3% eram mulheres;

Pacientes são de 671 hospitais em 6 continentes;

14.888 pacientes receberam 4 tipos de tratamentos diferentes com a cloroquina e a hidroxicloroquina;

As hospitalizações ocorreram entre 20 de dezembro de 2019 e 14 de abril de 2020.

Este é o maior estudo feito com pacientes infectados e internados com a Covid-19 e a prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou na quarta-feira (20) que as substâncias podem causar efeitos colaterais e não têm eficiência contra doença. Marcos Espinal, diretor do departamento de doenças comunicáveis da Opas, também disse que "não há evidências para recomendar cloroquina e hidroxicloroquina".

De acordo com os autores da pesquisa publicada nesta sexta-feira, os pacientes medicados com as substâncias, incluindo em combinações com outros medicamentos aprovados, apresentaram um risco maior de morte hospitalar e de desenvolvimento de arritmia cardíaca.

"Este é o primeiro estudo em larga escala a encontrar evidências robustas estatisticamente de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina não traz benefícios a pacientes com Covid-19", disse o autor Mandeep Mehra, líder da pesquisa e diretor do Brigham and Women's Hospital Center for Advanced Heart Desease, em Boston, nos Estados Unidos.

Estudo de Nova York

Em 8 de maio, outra revista, a britânica "The New England Journal of Medicine", publicou os primeiros resultados robustos internacionais sobre a efetividade do tratamento da hidroxicloroquina em pacientes hospitalizados com coronavírus. De acordo com os autores, não foram encontradas evidências de que a droga tenha reduzido o risco de entubação ou de morte.

A pesquisa revisada por outros cientistas (pares) antes da publicação foi feita no Presbyterian Hospital, em Nova York, e observou pacientes com teste positivo para o vírus. Todos estavam em um quadro moderado a grave, definido pelo nível de saturação de oxigênio no sangue inferior a 94%. Foram admitidas 1.446 pessoas com a doença entre 7 e 8 de abril de 2020, e 70 delas foram excluídas por já terem recebido alta, morrido ou sido entubadas.

Até o início deste mês, não haviam estudos mais efetivos a respeito do uso desses medicamentos. A primeira pesquisa divulgada foi feita na França e analisou 26 pacientes, mas excluiu 6 deles com uma piora do quadro após o uso do medicamento. Mesmo que alguns infectados tenham apresentado uma melhora no quadro, a retirada do pequeno grupo dificultou a interpretação dos dados. A pesquisa foi bastante criticada pela comunidade científica.

Protocolo para uso no Brasil

Na quarta-feira (20), o Ministério da Saúde do Brasil divulgou um documento que orienta o uso da hidroxicloroquina no país em pacientes infectados pelo Sars CoV-2. Na quinta-feira (21), uma nova versão foi editada com a assinatura de secretários da saúde da pasta.

A mudança no protocolo era um desejo do presidente Jair Bolsonaro, defensor da cloroquina no tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. Não há comprovação científica de que a cloroquina é capaz de curar a Covid-19. Outros estudos internacionais também não encontraram eficácia no remédio e a Sociedade Brasileira de Infectologia não recomenda o uso.

O protocolo da cloroquina foi motivo de atrito entre Bolsonaro e os últimos dois ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Em menos de um mês, os dois deixaram o governo.

O texto do ministério mantém a necessidade de o paciente autorizar o uso da medicação e de o médico decidir sobre a aplicar ou não o remédio. A cloroquina não está disponível para a população em geral.

Irresponsabilidade

O protocolo divulgado nesta quarta-feira não prioriza ou segue as evidências científicas e as experiências de outros países para o tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. A avaliação é da docente do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e presidenta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) Gulnar Azevedo e Silva. 

A especialista comenta a decisão do Ministério da Saúde que, sem assinatura de médico responsável e com autoria desconhecida, publicou nova diretriz recomendando o uso das drogas desde os primeiros sinais da covid-19. Com estudos incipientes e muitos deles apontando complicações cardíacas, será, no entanto, o próprio paciente que se responsabilizará pelo uso da cloroquina.

Defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro como a “cura certa”, os medicamentos podem ainda causar muitos efeitos colaterais, como adverte a presidenta da Abrasco. “É um risco altíssimo para as pessoas receberem a informação de que ele foi liberado para casos leves de covid-19. Porque casos leves podem não evoluir”, pontua. “Tomar a cloroquina pode ser um risco maior do que os efeitos daquele caso que não ia evoluir. É muito preocupante”, contesta Gulnar. 

De acordo com a docente, o governo Bolsonaro, deveria nesse momento estar preocupado com outras medidas, entre elas as de proteção social para que os trabalhadores possam cumprir as medidas de isolamento. Na contramão disso, o presidente é contundente na defesa das substâncias. O estoque de cloroquina no país aumentou 30%. E o Exército contribuiu para esse volume, produzindo 1,25 milhão de comprimidos.

“Houve uma indução sim de fabricação”, crítica a presidenta da Abrasco. “Tanto que as pessoas que precisam da cloroquina, que fazem uso contínuo para tratar seus problemas de saúde, com prescrição do médico e acompanhamento, tiveram dificuldade em encontrar nas farmácias no começo. E há outras pessoas que acabaram comprando para se prevenir da covid-19. Não há prevenção para isso, a única prevenção neste momento é as pessoas entenderem a necessidade do distanciamento social”, ressalta. 

A opinião da especialista também encontra respaldo junto aos pesquisadores da Academia Nacional de Medicina, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade de São Paulo (USP) e de outras entidades que se posicionaram contra a liberação da cloroquina e da hidroxicloroquina por risco, inclusive, de maior letalidade. 

A secretaria de Saúde do Distrito Federal, por exemplo, já informou que não seguirá a recomendação do ministério. E que o uso do medicamento na rede pública continuará restrito aos casos graves da doença. Gulnar reforça a posição da pasta. “Espero que esses gestores possam seguir realmente o que a saúde pública está falando. Seguir o que a gente tem observado como sendo evidência científica e de proposta da Organização Mundial da Saúde (OMS).”

A especialista finaliza advertindo que Bolsonaro cria maiores cisões, quando o momento pede união e esforços conjuntos da federação, estados e municípios para controle da pandemia e dos problemas econômicos e sociais por ela agravados. “É uma ilusão pensar que a cloroquina vai resolver”, lamenta. 

Para STF, é ‘erro grosseiro’ ignorar ciência

Em uma derrota para o presidente Jair Bolsonaro, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram na quinta-feira (21) restringir a blindagem jurídica proposta por uma Medida Provisória (MP) editada por Bolsonaro a agentes públicos que “agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro” durante a pandemia do novo coronavírus. A MP foi editada pelo governo há uma semana e prevê a não responsabilização civil ou administrativa nestes casos.

A decisão do STF foi tomada em uma sessão virtual por nove votos a um, no sentido de que as autoridades devem basear suas decisões em opiniões e evidências científicas, sob pena de serem responsabilizadas por eventuais violações. A maioria do Supremo manteve a previsão de punição somente em caso de “erro grosseiro”, determinando, contudo, que se enquadra como tal desrespeito a normas e critérios científicos e técnicos.

O voto do relator das ADIs, ministro Luís Roberto Barroso, dado na sessão de ontem, foi seguido nesta quinta pelos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, presidente do STF. O ministro Marco Aurélio Mello foi vencido.

O decano do Supremo, Celso de Mello, não participou da sessão virtual. Ele tem se dedicado à decisão sobre a divulgação ou não do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, que pode provar que Bolsonaro buscou interferir politicamente na Polícia Federal.

Crítico do isolamento social, Jair Bolsonaro relativiza com frequência a pandemia de Covid-19, que até esta quinta infectou 310.087 pessoas e matou 20.047 no país. O presidente se referiu à doença como “gripezinha”, desrespeitou diversas vezes as orientações das autoridades sanitárias, como a OMS e o próprio Ministério da Saúde, provocando aglomerações e cumprimentando simpatizantes com apertos de mão e abraços. Ele também já respondeu de forma irônica ao ser questionado sobre as mortes. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, declarou no final de abril.

A postura anticientífica do presidente já derrubou dois ex-ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Mandetta se opôs a Bolsonaro publicamente por causa das críticas do presidente ao isolamento social como medida eficaz para combater a pandemia, enquanto Teich pediu para deixar o cargo na semana passada, 29 dias depois de assumir, por não concordar com o uso massivo da cloroquina como remédio para conter a infecção.

Nesta quarta-feira, 20, menos de uma semana depois da demissão de Nelson Teich, a pasta da Saúde, comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello, divulgou o novo protocolo para uso da cloroquina em pacientes no início do tratamento, diante dos primeiros sintomas. Até então, a pasta recomendava o remédio apenas a doentes internados em estado grave.

Nas novas recomendações, são prescritas doses diárias de 450 mg do medicamento junto com o antibiótico azitromicina. Na recomendação anterior do ministério, as porções diárias chegavam a 900mg, aplicadas em ambiente hospitalar devido ao risco de efeitos colaterais para o sistema cardíaco. O novo protocolo atenta para essa particularidade da cloroquina e recomenda aos médicos que entreguem ao paciente um termo de consentimento para ser assinado.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *