25/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O Vídeo de Rorschach

Publicado em 21/05/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Pelo jeito, o tal vídeo da reunião ministerial que o Moro quis vazar (com o perdão do pleonasmo) é uma espécie de teste de Rorschach. Uma mancha amorfa onde cada um enxerga aquilo que quer. 

Teve gente que ficou indignada. Achou uma bomba. Motivo para impeachment e "nossa, que boca suja tem esse Bolsonaro". Reinaldo Azevedo espumou. "Eu não uso esse vocabulário nem para falar com minha esposa!", disse o comentarista em seu programa na Band News, onde se dedica a fazer a notícia girar em torno dele. 

Já no curralzinho virtual da presidência, o vídeo foi aclamado. Um verdadeiro catnip de reacionário. 

O problema é que tudo que era comprometedor e reprovável no video já tinha sido divulgado antes. Sua exibição na íntegra encontrou uma opinião pública anestesiada. Acabaram tendo mais impacto justamente as partes que não dizem respeito à interferência de Bolsonaro na PF, ou seja, os momentos que os bolsominions celebraram e a oposição ogerizou. 

Eu assisti ao video como um especial do Discovery Planet sobre parasitas que se hospedam em insetos. Asqueroso, mas fascinante.

A começar por aquele que meus amigos ricos insistem em dizer que é o "adulto à mesa". Paulo Guedes. Foi elucidador vê-lo em ação em seu habitat natural, a bravata acadêmica. Eu não sei, amigo leitor, qual é a sua familiaridade com o ambiente da pesquisa científica. Mas é raro encontrar pesquisador, mestrando, doutorando ou professor que afirme seu domínio sobre um tema pela quantidade de livros que leu sobre o assunto. "Eu já li oito livros sobre cada recuperação econômica", disse Guedes. Mais uma vez, um exemplo de Rorschach. Jair demonstrou reverência diante desta autoridade que lê oito livros por assunto. Eu achei engraçada a picaretagem.

Outro ponto que insuflou os apoiadores do governo foi a defesa do armamento da população. O presidente disse que era para impedir que uma ditadura se instaurasse no país. Caso algum presidente malvadão tentasse tomar o poder, bastava o seu João da Padaria pegar o 32 dele e ir dar tiro na polícia. Acontece que nós sabemos de que lado Bolsonaro ficaria caso a população se armasse contra um governo opressor. Bolsonaro aplaude torturadores. Na cabecinha do Jair, democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim. Bem, está claro que a única liberdade que interessa a Bolsonaro é a dos seus asseclas. Sua preocupação com a liberação do porte de armas tem a ver com a discriminalização-soft de milícias que formam sua "rede particular de informação", como ele confessou no vídeo. 

Sabia, amigo leitor, que a reunião ministerial em questão foi convocada para falar da crise da pandemia? Mas não foi esse o tema da reunião, não é mesmo? Não se debateram estratégias coordenadas para lidar com o problema. Bolsonaro não exigiu que seus ministros se esforçassem para encontrar solucões. No entanto, ordenou que seus ministros o defendessem na mídia. A principal reclamação de Bolsonaro era que alguns ministros do seu governo recebiam elogios e ele só era criticado. "Eu que escolhi o time, ^$&#$^!", lembrou o estadista. Jair estava incomodado com a percepção de que alguns membros da sua equipe se esquivavam das declarações polêmicas do chefe, ao invés de endossá-las. 

Em função disso, o que se viu a seguir foi uma live privada do presidente executando seu top hits de retóricas esfarrapadas na esperança de convencer a equipe a defendê-lo. 

É verdade a percepção na base bolsonarista de que Jair foi muito sincero. É verdade, também, que ele não está nem aí pra reeleição. Sua preocupação real é com a cadeia. Seu objetivo imediato é impedir que ele e a família sejam investigados e condenados. Daí a preocupação eleitoral. Ele disse isso com todas as letras, na sua natural disconexão discursiva. "Se eu cair vocês caem juntos" e "um homem na cadeia não vale nada". A mensagem para os ministros era: lutem por mim, ou corram o risco de cumprir cana. Os arroubos coléricos de Jair Bolsonaro só atestam aquilo que já sabíamos. São demonstrações de insegurança fermentada em 65 anos de masculinidade tóxica. Ou as manifestações de alguém que pensa como você, tanto em qualidade quanto em quantidade, no mais alto cargo do Executivo. Depende de como você lê essa mancha nas páginas da história do país.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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