26/04/2024 - Edição 540

Poder

‘Entrou no terreno do desrespeito, tenho um nome a zelar’, disse Teich sobre atitude de Bolsonaro

Publicado em 15/05/2020 12:00 -

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O ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu exoneração do cargo nesta sexta-feira, 15. Empossado no dia 17 de abril no lugar de Luiz Henrique Mandetta, ele não chegou a completar um mês no cargo.

Teich vinha sendo pressionado pelo presidente Jair Bolsonaro para apoiar o uso da cloroquina em pacientes com sintomas leves de coronavírus, além de oficializar a flexibilização da quarentena. Na quinta-feira, 14, em reunião com empresários organizada pelo presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Paulo Skaf, Bolsonaro disse que iria liberar o uso da cloroquina mesmo a revelia de Teich.

O agora ex-ministro vinha sendo questionado por médicos que lhe cobravam coerência em relação ao uso da cloroquina já que Teich, enquanto especialista em oncologia, sempre condenou uso de medicamentos sem comprovação científica, algo que ocorre com frequência em tratamentos de pacientes com câncer.

Na quarta-feira, 13, Teich havia cancelado entrevista coletiva em que anunciaria diretrizes para atribuir aos estados a decisão de relaxar a quarentena, com base em cálculos que levam em conta números de casos confirmados e leitos de UTIs disponíveis, entre outros dados. Para publicar a portaria com as determinações, Teich precisa do apoio de secretários de Saúde estaduais e municipais, que são a favor do isolamento social. Esse parâmetro técnico foi uma promessa de Teich a Bolsonaro pouco antes da nomeação. A demora de Teich em formalizar esses critérios irritava Bolsonaro.

O ministro também ficou contrariado quando foi informado por jornalistas na segunda-feira, 11, que Bolsonaro havia publicado decreto tornando salões de beleza, barbearias e academias como atividades essenciais — portanto, liberadas para funcionar durante a quarentena. Teich não havia sido consultado. A maior parte dos governadores sinalizou que não irá seguir a determinação.

Desrespeito

Nelson Teich, passou a considerar seriamente o desembarque do governo na terça-feira 12. “Entrou no campo do desrespeito”, desabafou o agora ex-ministro a um médico carioca de quem é colega há mais de duas décadas, referindo-se à sua relação com Jair Bolsonaro. “A ficha caiu. Ele entendeu que o presidente acha que pode mandar em questões altamente sérias e complexas mesmo sem entender nada sobre o assunto. Continuar no governo seria suicídio da reputação dele. E, se ele entrou no governo por ambições políticas, que foi o caso, acabaria enterrando  a carreira antes mesmo de começá-la”, completou o mesmo médico, sob condição de anonimato.

Teich ficou perplexo com a postura do presidente, que deixou claro que não precisa ouvir a posição do ministro da Saúde no meio de uma crise sanitária. Um dia antes, o presidente havia assinado o decreto que permite a abertura de academias de ginástica, salões de beleza e barbearias em todo país, sem consultar nem informar previamente o ministro.

Segundo o amigo, Teich relevou o episódio, considerando que a medida fosse apenas uma iniciativa política, ainda que atabalhoada, de Bolsonaro agradar seus apoiadores, que pedem o fim do isolamento. O ministro ainda entendeu que o decreto não surtiria grandes efeitos, já que prefeitos e governadores barrariam a abertura dos estabelecimentos na maior parte do país.

A atitude mais desrespeitosa, porém, ocorreu na noite de terça-feira, 12, quando o presidente discutiu o desempenho de Teich com um apoiador na porta do Palácio da Alvorada. Descontente com a postura do ministro, o homem instou Bolsonaro a avaliar o titular da Saúde. Perguntou o que o presidente estava achando do ministro e completou, “e essas declarações dele sobre lockdown”, referindo-se à afirmação de Teich, que admitiu que, a depender da situação da epidemia, o bloqueio total não pode ser descartado.

Bolsonaro respondeu que ainda “não podia cobrar muito dele”, deixando subentendido que não estava satisfeito com o ministro: “Ainda é cedo. Se coloque no lugar dele. Pegou uma situação complicada. O ministério da Saúde, em si, já é um problema, tendo em vista vícios que tínhamos aí. Ainda pega com a crise da pandemia. Não é fácil. Não posso cobrar dele muita coisa”.

Em seguida, ao ser lembrado por um jornalista que Teich só soube pela imprensa do decreto das academias, salões de beleza e barbearias, o presidente deixou claro que não considera importante ouvir a área da saúde. “Eu baixo o decreto”, disse Bolsonaro, gesticulando como quem assina um papel. E continuou: “O major Jorge (Jorge Oliveira, ministro da Secretaria Geral da Presidência) já se penitenciou. Faltou ele fazer o contato com o ministro. Não é porque faltou um contato que a gente vai desclassificar o decreto. Quantas vezes você chega em casa com um colega para o almoço e não avisa a esposa? Vai acabar o casamento por causa disso?”, finalizou o presidente.

Cotados

O mais cotado para assumir o cargo é o número 2 do Ministério da Saúde, general Eduardo Pazuello, que é o atual secretário-executivo da pasta – ele assumiu após a nomeação de Teich, num processo de militarização da pasta tocado pelo Palácio do Planalto. A avaliação dentro do ministério é que Pazuello deve ser o substituto em razão da estrutura que ele montou com os militares e pelo fato de que a equipe já obedece somente a ele – seria muito difícil para um sucessor diferente mudar isso.

Outro nome bastante cogitado é o deputado federal Osmar Terra, que também é médico – ele tem se notabilizado como um ferrenho crítico da política de isolamento social e é muito próximo a Bolsonaro, de quem foi ministro da Cidadania., Outra possibilidade é de que o cargo entre na negociação com o Centrão – o grupo parlamentar que o governo tenta atrair cobiça o posto.

Mandetta se manifesta

Em post publicado logo após a demissão de Teich nas redes sociais, o ex-ministro Mandetta pediu orações. Numa curta mensagem no Twitter, Mandetta pediu para que as pessoas respeitem o isolamento social e acreditem na ciência para combater a Covid-19. “Oremos. Força SUS. Ciência. Paciência. Fé! #FicaEmCasa”, escreveu Mandetta.

Para Mandetta, Bolsonaro é leigo em relação ao uso da cloroquina e é influenciado por médicos que defendem o medicamento para tratar pacientes de coronavírus. Em sua gestão, Mandetta atribuiu ao Conselho Federal de Medicina a responsabilidade por determinar o uso do medicamento. A entidade recomendou a administração apenas em casos graves e com monitoramento dos sinais vitais. “Desconfio que muitas das mortes que ocorreram em casa desses pacientes se deu em função da arritmia provocada pela cloroquina, principalmente em pacientes idosos”, disse o ex-ministro.

Análise

Teich, o Breve, foi um ministro da Saúde perdido, incompetente e inexpressivo. Foi humilhado repetidas vezes pelo chefe, que ocupou militarmente a pasta e não teve pudores de demonstrar publicamente que o empresário-médico não apitava nada. O resumo de sua passagem foi a patética cena em que descobriu pela imprensa que Jair Bolsonaro decidiu liberar da quarentena academias, salões de beleza e barbearias sem lhe consultar.

Mas nestas poucas semanas que ficou no cargo, apesar das concessões para sua própria dignidade, não abraçou duas aberrações do chefe: o libera-geral da cloroquina para tratar todos os pacientes de covid-19 e a defesa do "isolamento vertical" – a ficção infanto-juvenil de que o vírus mata apenas idosos e pessoas imunodeprimidas e, portanto, para combatê-lo basta trancar esses grupos em casa. Isso levou Nelson Teich ao cadafalso.

O presidente não quer alguém que atue de forma minimamente técnica no Ministério da Saúde. Quer um semovente que diga a ele "sim, senhor!" e "amém".

Bolsonaro tem duas apostas hoje. Primeiro, forçar que a economia volte ao "normal", pois sabe que um desemprego prolongado transformará seu mandato em morto-vivo e sua reeleição, em 2022, em conto da carochinha. O problema é que voltar ao trabalho e reabrir comércios não vai afugentar o vírus, pelo contrário: será o empurrãozinho que ele precisa para passarmos de tragédia para massacre.

Entra, então, a segunda aposta: caso hospitais entrem em colapso, cadáveres se amontoem, faltem recursos para milhões sobreviverem e ocorram saques e protestos, o presidente poderá tomar medidas autoritárias, centralizando poder, em um estado de sítio, suspendendo direitos e liberdades, agindo em nome da garantia da ordem. Com o apoio do que ele chama de "povo, que é o naco radical de seus apoiadores, e setores das Forças Armadas. Um antigo sonho de consumo.

Bolsonaro ataca as quarentenas, chamando-as de "inúteis" em lives nas redes sociais. Afirma, de forma cínica, que elas não foram capazes de impedir as quase 14 mil mortes por covid-19, sendo que as medidas de isolamento social têm sido responsáveis por postergar o colapso do sistema de saúde e, portanto, evitado que o número de óbitos seja muito maior. Culpa governadores e prefeitos pelo desemprego decorrente do isolamento e conclama empresários para uma "guerra" pela reabertura forçada da economia.

Ao mesmo tempo, anunciou, na quinta (14), que quer a previsão de uso da cloroquina para sintomas leves de covid-19 e não apenas em quadros mais graves. O presidente não tem provas de que isso dará certo, mas lhe sobram convicções. A questão é que nada indica que o medicamento salvador seja este, como apontam pesquisas em todo o mundo, como as que analisaram milhares de pacientes e foram publicadas no New England Journal of Medicine e no Journal of the American Medical Association. Pelo contrário, há mais problemas do que soluções envolvendo o produto.

Mas a promessa de um elixir mágico e barato ajuda a enfraquecer a importância da quarentena. "Quando um remédio é apontado como a solução, parte da população relaxa os cuidados preventivos. Nesta pandemia, pode parar de usar a máscara, ignorar a quarentena", explica André Nathan, médico pneumologista do Hospital Sírio-Libanês. Afinal, se há uma cura, para que ficar em casa?

Bolsonaro confunde propositadamente o uso compassionado do remédio, quando a situação é limite e há uma suspeita de que, em um caso específico, possa ajudar, com o uso preconizado, baseado em trabalhos científicos. A autorização dada pelo Conselho Federal de Medicina significa que um médico não será acusado de cometer má prática se tratar um paciente ou fizer testes com ele. O que é bem diferente de indicar o uso, o que depende de mais estudos científicos.

Independentemente de quem seja o próximo ministro, Bolsonaro quer alguém obediente, que aceite passar por cima da ciência e da medicina, e o ajude a devolver o Brasil à "normalidade". No fórceps, se for preciso. Ou seja, que em nome da tranquilidade de seu mandato ou da proteção de sua visão autoritária, entregue a população brasileira à própria sorte.


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