18/04/2024 - Edição 540

Poder

MP da Impunidade: Bolsonaro teme o futuro

Publicado em 15/05/2020 12:00 -

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Um dia depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou, por unanimidade, a abertura de uma auditoria no pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 devido a suspeitas de que 73 mil militares da ativa, da reserva e pensionistas tenham recebido ilegalmente o benefício, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que está dando o que falar. Trata-se da MP 966, que livra qualquer agente público de processos civis ou administrativos por erros cometidos durante a pandemia do novo coronavírus. 

A MP estabelece que esses agentes só poderão ser responsabilizados se ficar provado que agiram ou se omitiram “com dolo ou erro grosseiro“. E para caracterizar um ou outro, prevê que se levem em conta coisas como o “contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia e das suas consequências, inclusive as econômicas”.

Por tudo isso, a medida provisória já ganhou diversos apelidos: seria a “MP da impunidade” ou a “MP do excludente de ilicitude”, em referência à ‘licença para matar’ defendida por Bolsonaro para livrar policiais de processos. Em poucas horas, provocou diversas reações. 

A Associação Brasileira de Imprensa entrou com ação direta de inconstitucionalidade no Supremo. Já o Movimento Brasil Livre (MBL) ingressou com uma ação popular contra a MP na Justiça Federal de Brasília. Os líderes da Rede, do PSOL e do PSB na Câmara e no Senado protocolaram requerimentos em que pedem a devolução da medida provisória – algo que só pode ser feito pelo presidente do Congresso, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que não se pronunciou sobre o assunto ontem.  

Existem duas críticas principais à MP. A primeira ataca o conteúdo. Diversos especialistas ouvidos pela imprensa (e também ministros do STF, mas reservadamente) argumentam que o texto é inconstitucional. Iria de encontro ao artigo 37 da Constituição, que fala sobre os direitos e deveres do agente público e prevê sanções a atos ilícitos, como o reembolso de recursos desviados e a perda do cargo. “Essa MP do Bolsonaro eleva de forma absurda as exigências para que essa responsabilização seja realizada”, disse o procurador do Estado de São Paulo, José Luiz Souza de Moraes, em entrevista ao Globo

“Essa MP blinda todo mundo”, resumiu, por sua vez, José Múcio, presidente do TCU, ao mesmo jornal. Além da investigação sobre o pagamento irregular de militares, o Tribunal abriu outras 26 ações de  acompanhamento das medidas adotadas pelo governo federal durante a crise. “É dinheiro público, não podemos fechar os olhos e ser parceiros do liberou geral. Quando tudo isso passar, vamos ter que fazer contas para saber quem salvou vidas e quem se aproveitou da emergência para melhorar a sua vida.  Não quero criar polêmicas, mas não podemos estimular a pandemia dos mal intencionados”, criticou Múcio.

Mas há também muita desconfiança de que a MP possa ter um beneficiário principal: o próprio presidente, que incentiva a livre circulação de vírus e pessoas, contrariando tudo o que se faz no resto do mundo. “Tirar a responsabilização dos agentes públicos em um momento no qual se precisa de ainda mais cuidado é uma forma de tentar isentar de dolo e responsabilidade os agentes que não preservarem a vida do povo, que é infelizmente o caso de Bolsonaro”, afirmou a, deputada federal Fernanda Melchiona (RS), que é líder do PSOL na Câmara. Já para a líder do Cidadania, senadora Eliziane Gama (MA), a MP encobre erros como o incentivo do uso da cloroquina feito pelo presidente na contramão das evidências científicas.

Fato é que Bolsonaro se fez de desentendido. Questionado sobre a MP pela manhã em frente ao Palácio do Alvorada, fingiu que não sabia de nada e respondeu que iria ver do que se tratava quando chegasse ao Planalto. De noite, durante transmissão em suas redes sociais, fez questão de confundir a MP 966 com outra medida provisória, a 930, editada em março. O texto é parecido e determina que ninguém do Banco Central será responsabilizado por atos praticados como resposta à crise da covid-19. Desse teatro participou o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães. 

Bolsonaro participou de uma videoconferência organizada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) com empresários na qual a MP 966 foi defendida pelo ministro da Economia. “No Brasil, se você quiser soltar dinheiro para governador, você solta R$ 100 bilhões em dez minutos, todo mundo aprova. Mas se quiser soltar R$ 1 bilhão para uma empresa privada, exatamente em função do que já aconteceu lá atrás, que teve roubalheira, ninguém quer assinar. O próprio funcionário público não quer assinar. Então nós tivemos que lançar agora uma medida para blindar, a MP 966, porque o próprio funcionário do BNDES não queria assinar”, justificou Paulo Guedes – que também assina a medida provisória.

Como toda a MP, a 966 já está em vigor. O texto pode ser devolvido pelo Congresso. Caso contrário, tem prazo de 120 dias para ser votado pela Câmara e pelo Senado. Caso isso não aconteça, a medida provisória caduca e perde a validade. 

Parlamentares de oposição criticaram a medida provisória como uma suposta tentativa do presidente de blindar a si mesmo e agentes públicos em geral de serem responsabilizados por má gestão de recursos ou condução inadequada de políticas públicas na pandemia.

"Bolsonaro não é só aliado do vírus, é aliado da corrupção, de criminosos e predadores do erário!", escreveu no Twitter o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), um dos que protocolou um pedido ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) para devolver a medida provisória ao presidente.

Já o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), José Múcio Monteiro, disse ao jornal Estado de S.Paulo que a MP vai estimular uma "pandemia de mal-intencionados".

O procurador Marinus Marsico, do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), disse que "nada mudará" no seu trabalho caso a medida provisória seja aprovada pelo Congresso.

Segundo o procurador, está ocorrendo um "descalabro" em mau uso de recursos públicos durante a pandemia, quando aquisições foram liberadas sem licitação, mas ele diz que é possível punir os agentes públicos porque são decisões que se enquadram em "erro grosseiro".

"Eu nunca responsabilizaria alguém, nem acho que qualquer gestor deva ser responsabilizado, por estar no meio de uma pandemia e ter que tomar uma decisão que se reveste de caráter de urgência. Mas o que eu tenho observado é que estão ocorrendo gastos absolutamente despropositados", disse.

Nesta semana, Marinus Marsico abriu uma investigação sobre um contrato de R$ 144 milhões entre o Ministério da Saúde e uma empresa de assistência hospitalar para os serviços de aconselhamento, informações, monitoramento e triagem de casos suspeitos da covid-19 por atendimento telefônico.

Segundo a representação movida pelo MP-TCU, há indícios de superfaturamento no contrato, já que o custo por cada atendimento estava previsto em R$ 5,80 inicialmente, mas, ao longo do processo, subiu para R$ 21.

Para o procurador, esse caso, por exemplo, representa erro grosseiro porque não teria havido sequer uma pesquisa rápida para comparar preços de fornecedores.

"Quando num processo você vai procurar uma empresa para fazer um serviço de telemedicina, mesmo com a dispensa de licitação, você é obrigado a procurar opções, fazer uma minipesquisa. O gestor diz que simplesmente não conhece nenhuma empresa e que o sistema (para comparação) de preços do Ministério da Economia estava fora do ar para consulta", ressalta ele.

"Isso não é justificativa para dizer que não existe outra empresa. Se você procura é justamente porque você não conhece outras empresas. E se o sistema de consulta de preços está fora do ar, você espera voltar e faz a consulta. São erros grosseiros como esse que têm ocorrido, completamente injustificáveis", argumenta.

Barroso será o relator

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), será o responsável por analisar a ação apresentada na quinta-feira (14) pelo partido Rede Sustentabilidade contra a Medida Provória (MP) 966.

Barroso foi escolhido relator do caso por meio do sistema de sorteio do tribunal. O partido Cidadania protocolou uma ação semelhante na corte, mas o relator não tinha sido sorteado até a última atualização desta reportagem. Por tratarem do mesmo tema, as duas ações diretas de inconstitucionalidade devem ser analisadas pelo mesmo ministro.

Na ação protocolada, a Rede Sustentabilidade afirma que a MP restringe a responsabilização de agentes públicos no momento em que há uma flexibilização no controle dos atos da administração pública – inexigibilidade de licitações, por exemplo. “Assim, a União, no conjunto de suas ações, acaba por permitir que danos ao erário não sejam devidamente ressarcidos”, diz a ação.

Ainda segundo o partido, “a blindagem do agente público causa, de modo reflexo, o efeito sistêmico de inúmeros prejuízos à sociedade, na medida em que não precisará refletir adequadamente sobre suas decisões, pois estará blindado a priori a qualquer pretensa responsabilização, bastando-lhe alegar que não agiu por culpa grave (erro grosseiro) ou dolo”.

“Tem-se um verdadeiro prato cheio para que a atuação ilícita (civil e administrativa) de agentes públicos fique impune”, diz ainda o partido.

Para a Rede, "é justamente em contextos de crise que a sociedade mais quer transparência e atuação correta e eficiente da Administração Pública”.

Análise

A pretexto de proteger servidores públicos contra punições futuras por erros cometidos de boa-fé na gestão da crise do coronavírus, o governo editou uma medida provisória que desprotege o brasileiro em dia com seus impostos. Na prática, a MP concede um salvo-conduto para o desmazelo e a corrupção. A coisa foi assinada por Jair Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União)

Sem essa medida provisória, é muito difícil punir servidores relapsos ou desonestos. Com ela, a punição administrativa ou judicial, com eventual ressarcimento de verbas desviadas, se torna virtualmente impossível. A MP prevê que o servidor só poderá ser responsabilizado se ficar provado que houve o dolo, que é a intenção deliberada de delinquir, ou um "erro grosseiro". São dois conceitos subjetivos.

Para piorar, o texto estabeleceu critérios para definir se o erro do servidor foi grosseiro ou leve. Será necessário considerar desde "os obstáculos e as dificuldades reais" que a pandemia impôs aos agentes públicos até "o contexto de incerteza" sobre as "medidas mais adequadas" para enfrentar a covid-19. Em português claro: o servidor passou a dispor de uma anistia prévia para tudo o que der errado.

Ao reduzir o medo de punição, a MP conduz a dois tipos de comportamento, ambos nefastos. O servidor honesto pode se sentir à vontade para afrouxar o autocontrole que inibe o erro. O desonesto ficará ainda mais estimulado a exercitar sua safadeza. Se essa MP passar, o crime, além de compensar, vai mudar de nome. Passará a se chamar deslize não intencional. Ou erro não grosseiro.


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